Velhos mitos sobre finanças estão
em xeque. Movimentos
como o Green New Deal começam a mostrar que é possível apropriar-se da moeda
para distribuir riqueza e garantir serviços públicos de excelência para todos
Ann Pettifor, no site do Transnational Institute | Outras Palavras
Foi apenas uma montagem de palavras, inseridas num vídeo no final de 2018. Logo as palavras se tornaram virais. Eles ajudaram a derrubar um membro do Partido Democrata favorável a Wall Street preparado para ser o próximo líder do Congresso dos EUA. Foram proferidos por Alexandria Ocasio-Cortez.
É uma disputa de pessoas versus
dinheiro. Nós temos pessoas. Eles têm dinheiro. Uma Nova York para muitos é
possível — e não são necessários cem anos. É preciso coragem política.
Ela estava certa. Não foram
precisos cem anos. Bastaram um verão, coragem política, uma grande ideia — o Green
New Deal – e duro. Uma nova ordem econômica subordinaria o sistema
financeiro aos interesses da sociedade e do ecossistema, e ajudaria a afastar a
economia de seu vício em combustíveis fósseis, argumentou Alejandria.
A grande ideia, sua coragem e
trabalho duro eram tudo o que era preciso para aproveitar o poder latente: o
poder do povo do Bronx.
Sua história irá sustentar o tema
que se segue. O poder latente e inexplorado dos cidadãos — em países com
sistemas de tributação sólidos — para responsabilizar as elites financeiras e
implementar um Green New Deal. Pode ser usado para transformar a correlação de
forças entre a sociedade e o setor financeiro privado. Este poder social continua
desaproveitado. A classe dominante e endinheirada o reprime. Mas ele também é
reprimido pela visão estreita e míope que nós, e nossos políticos, temos sobre
poder econômico potencial dos cidadãos.
Para aproveitar o poder dos
cidadãos é importante compreender que os contribuintes possuem capacidade de
ação [orig: “agency“] sobre os mercados financeiros globais. Em todo o mundo,
os contribuintes subsidiam, estimulam e enriquecem centros de poder financeiro
como os da Wall Street e da City de Londres.
Os salvamentos de grandes bancos
após a Grande Crise Financeira demonstraram que os cidadãos e suas instituições
financiadas pelo poder público têm o poder de proteger os rentistas do
capitalismo financeirizado da disciplina do “livre mercado”. Graças ao apoio e
poder de fogo fornecidos por milhões de cidadãos honestos, os bancos centrais
empregaram imenso poder financeiro e resgataram o sistema bancário globalizado
— resultando em uma cascata de desalavancagem da dívida que poderia ter
contraído a oferta monetária, o crédito e a atividade econômica e aprofundado a
crise.
Graças aos contribuintes os
banqueiros centrais preveniram outra Grande Depressão. Foi um grande poder
empregado em nome dos cidadãos, embora sem sua autorização – ou mesmo seu
conhecimento.
Para compreender e empregar esse
poder financeiro no interesse da sociedade e da natureza, os cidadãos precisam
entender que este poder era e é, em última instância, nosso. É o poder
latente, não utilizado pelos cidadãos para defender o interesse público, mas pelos
tecnocratas para defender os interesses da riqueza privada.
Dinheiro e Dívida
A razão de nossa impotência
política pode ser encontrada na névoa e no mistério que cercam a criação do
dinheiro e a operação do sistema monetário. Graças à negligência
dos economistasem relação ao dinheiro, às dívidas e aos serviços bancários,
há uma grande quantidade de mal-entendidos e confusão sobre dinheiro e o sistema
financeiro.
Os argumentos giram em torno de
se dinheiro é criado a partir do nada — ou se ouro ou bitcoin são dinheiro
real. Se banqueiros e/ou governos podem simplesmente imprimir dinheiro ad
infinitum. Ou se há limites para a impressão de dinheiro. A ignorância e a
confusão provavelmente não são por acaso. Isso ajuda a proteger o setor
financeiro privado do exame público: “É para seu próprio bem”, para citar o
lobo no conto de fadas.
As pessoas sensatas (incluindo o
Banco da Inglaterra) concordam que o dinheiro, como Joseph Schumpeter explicou,
nada mais é do que uma promessa de pagamento, como em “Eu prometo pagar ao
portador”. Ou seja, o dinheiro é uma construção social, baseada na confiança ou
promessas de pagamento e sustentada pela lei.
Quando alguém solicita um
empréstimo, o dinheiro não está no banco. Em vez disso, os bancos comerciais
licenciados “criam” dinheiro toda vez que um tomador de empréstimo promete
pagar. Eles abrem o crédito digitando números em um computador e (digitalmente)
depositando fundos na conta do tomador. Este promete devolver o dinheiro criado
pelo banqueiro. Como garantia, o mutuário oferece bens (“colateriais”), em
linguagem financeira, assina um contrato e concorda em pagar juros sobre o
empréstimo.
Para que a confiança no negócio
seja sustentada, as instituições que criam dinheiro (bancos comerciais
autorizados) são apoiados e regulados por um Banco Central com respaldo
público, que emite a moeda. A regulação garante que a confiança entre o
banqueiro e o devedor seja mantida.
Os banqueiros privados só podem
criar dinheiro novo e operar efetivamente quando são parte de um sistema
monetário — o que inclui um Banco Central. Embora os banqueiros comerciais
possam criar digitalmente dinheiro novo a pedido de um tomador de empréstimo,
eles não podem imprimir moeda. Apenas o Banco Central pode fazer isso. O grande
poder do Banco Bentral é emitir a moeda — dólar, euro, yuan, real — em que o
dinheiro novo é criado. E para ajudar a determinar o valor da moeda.
Esse poder só pode ser exercido
pelos bancos centrais por causa do colateral que sustenta a moeda que
eles criam. Essa garantia é composta pelas receitas fiscais dos cidadãos.
Quanto mais contribuintes contribuírem com a moeda, mais sólido o sistema de
cobrança de impostos, maior será o valor da moeda.
Esta noção fica mais clara se
compararmos a garantia que sustenta o Federal Reserve dos EUA com o do Malawi.
O banco central do Malawi, como o Federal Reserve, emite uma moeda. Mas o
Malawi tem muito menos contribuintes e poder arrecadatório do que os EUA.
Graças, em grande medida, ao
colonialismo e às políticas do FMI, o Malawi também carece de instituições
públicas importantes: um banco central independente; um sistema sólido de
coleta de impostos; um sistema para fazer cumprir contratos ou promessas de
pagamento (justiça civil criminal); e um sistema contábil bem regulado para
avaliar ativos e passivos. Consequentemente, a moeda do Malawi — o kwacha — tem
pouco valor comparado ao dólar.
Ainda pior: devido à ausência ou
fraqueza das instituições públicas, o Malawi depende do dinheiro de outras
pessoas — obtido através de outros sistemas monetários. O acesso a sistemas
monetários estrangeiros assume principalmente a forma de empréstimos em
dólares, libras esterlinas ou ienes – que incluem condições. Embora parte do
dinheiro possa beneficiar o povo do Malauí, o custo do pagamento a instituições
financeiras estrangeiras invariavelmente invalida os recursos financeiros da
nação, seus ativos humanos e ecológicos.
É a falta da autonomia monetária
proporcionada por instituições públicas sólidas, incluindo um sistema de
arrecadação de impostos, que torna cidadãos em países como o Malawi
relativamente sem poder e vulneráveis a credores estrangeiros predatórios. Isso
também explica como e por que os países pobres continuam dependentes e
subordinados aos países ricos.
Lamentavelmente, o FMI e o Banco
Mundial desencorajam ativamente os países de baixa renda a investir nas
instituições públicas vitais essenciais a um sistema monetário sólido — que
restauraria sua autonomia financeira e econômica.
Cidadãos em países com
instituições monetárias e sistemas tributários sólidos possuem um considerável
poder potencial e capacidade de agir sobre o sistema financeiro globalizado.
Os constribuintes — não os bancos
— sustentam o sistema financeiro
Entender como os impostos
sustentam o valor da moeda de uma nação para financiadores privados é um
primeiro passo para entender o poder potencial dos cidadãos. Os especuladores e
rentistas financeiros globais preferem negociar em moedas sustentadas por instituições
públicas estáveis, financiadas e apoiadas por milhões de contribuintes. Embora,
é claro, haja negociação em muitas moedas de mercados emergentes, os
especuladores preferem manter dólares, libras esterlinas, euros e ienes. Estas
moedas são apoiadas por economias fortes. Mas seu valor é, em última análise,
derivado dos contribuintes — dispostos, honestos e cumpridores da lei — que
fornecem as receitas que sustentam a moeda.
Os contribuintes não apenas pagam
impostos diretos e indiretos todos os dias, meses ou anos. Como novos
contribuintes nascem todos os dias, os cidadãos pagarão taxas por décadas no
futuro. Se nossas instituições estatais financiadas publicamente permanecerem
estáveis, os recém-nascidos de amanhã continuarão pagando impostos no futuro.
Para entender a duração do poder
do contribuinte, vale a rever a história do sistema financeiro britânico. Em
1748, o governo britânico emitiu bônus perpétuos, que eram dívidas sem data de
vencimento para pagamento, mas que pagavam juros aos credores a 3% ao ano. O
governo não teve dificuldade em vender esses títulos (conhecidos como “consols“) ao público. A
confiança em que o governo britânico cumpriria suas obrigações de pagar juros
sobre os empréstimos de modo perpétuo – era alta. Essa confiança foi
justificada, já que os juros eram pagos a cada ano até que finalmente foram
resgatados, em 2015.
Nenhum outro ativo tem esse tipo
de suporte seguro e de longo prazo.
A ambiciosa e manipuladora Becky
Sharp, em Feira das Vaidades, um romance satírico britânico do século
XIX, escrito por William Thackeray, desejou que pudesse
Trocar minha posição na sociedade
e todas as minhas relações por uma quantia confortável em consoles de três por
centos … pois assim foi [escreveu Thackeray] que Becky sentiu a Vaidade dos
assuntos humanos, e era naqueles títulos que ela teria gostado lançar âncora.
A inveja de Becky derivava da
segurança concedida àqueles com fundos suficientes para investir na dívida do
governo britânico – conhecida então, e por vários séculos, como Three Per Cent Consols (abreviação
de dívida consolidada, ou consolidated). Com uma herança 10 mil libras,
mulheres jovens e ricas do século XIX podiam viver com a quantia de 300 libras por ano; 25 mil
libras gerariam uma confortável renda de £ 750 por ano.
A dívida pública é um ativo que
gera renda — assim como um imóvel comprado com o objetivo de gerar aluguel para
seu dono. Mas enquanto um investidor que compra para uma casa para locação tem
que suar para manter, anunciar e alugar o ativo, a dívida ganha renda sem
esforço para os ricos e para os especuladores. Faz isso pagando juros, a uma
determinada porcentagem por ano
Ao contrário de uma propriedade
de um investidor, a dívida é leve como o ar, intangível, invisível. A única
evidência de sua existência é encontrada em entradas de banco de dados, números
em um balanço ou em palavras em um “título de portador”.
As diferenças não terminam aí. Um
edifício ou propriedade estão sujeitos às leis da física. Pode envelhecer,
desmoronar ou ser destruído. Clubes de futebol são ótimos ativos — porque os
torcedores se comprometem a longo prazo, e de bom grado e regularmente pagam
“rendas” ao dono do ativo, pelo privilégio de assistir a sua equipe ou pela
compra de uma camiseta do clube. Mas os clubes podem perder valor caindo nas
tabelas de classificação. Obras de arte — digamos, uma pintura de Rembrandt —
são ativos com maior longevidade, mas também tendem a se deteriorar e, de
qualquer forma, estão sujeitas aos caprichos da moda.
Não é assim com os títulos do
governo de países como a Grã-Bretanha. Enquanto as dívidas soberanas podem ser
inadimplentes, as dívidas seguras do governo não apodrecem com a idade, como o
professor Frederick Soddy (1877-1956) explicou uma vez. Isso porque as dívidas
não estão sujeitas às leis da termodinâmica, mas às leis da matemática. Como
tal, a dívida produz, sem esforço, renda para os aplicadores, a taxas
matemáticas. E se a dívida é a dívida pública segura de nações como a Grã-Bretanha,
os EUA ou o Japão, isso pode prosseguir por longos período de tempo.
O governo inglês tem honrado suas
obrigações de dívida desde 1694, sem falhas. Em um mundo de fluxos de capitais
globalizados, nos quais o capital flui de uma parte do mundo para outra, o
preço dos títulos do governo britânico pode subir e cair, mas sua segurança e
longevidade nunca estão em
questão. Isso ocorre porque o sistema é administrado pela
autoridade pública, não abandonado à “mão invisível do mercado” — mas
principalmente porque a maioria dos cidadãos britânicos paga regularmente e
fielmente os impostos.
É a Garantia, estúpido
E para entender por que a
segurança é uma questão tão importante para o setor financeiro privado,
lembre-se disso: o sistema financeiro global congelou em agosto de 2007 e
depois entrou em colapso.
Não porque os financistas ficaram sem dinheiro. Não por causa
de uma corrida aos bancos. Mas porque todos no setor — todos — perderam a
confiança no valor dos ativos usados como garantia, particularmente o valor das
hipotecas de propriedades sub-prime nos balanços dos bancos.
Por que isso importava? Porque o
valor dos ativos sub-prime (hipotecas) tinha sido usado para alavancar
quantidades excessivas de financiamento adicional através de empréstimos. Se o
ativo ou a garantia contra a qual o empréstimo tinha sido oferecido não valesse
nada — então a dívida provavelmente não seria paga com a venda da garantia
prometida.
O colapso da confiança nos
valores dos ativos (ou colaterais) levou ao colapso do sistema financeiro
globalizado.
E é aí que nós, cidadãos
pagadores de impostos, entramos. A garantia do cidadão, na forma de receitas
fiscais, não entrou em colapso na crise. Em vez disso, as garantias públicas
mantinham a autoridade dos bancos centrais e davam-lhes o poder de emitir nova
moeda (liquidez) em troca de ativos de banqueiros privados. O processo foi
chamado de Quantitative Easing (QE).
O apoio dos contribuintes
permitiu que os banqueiros centrais socorressem Wall Street e a City de
Londres. A segurança e a solidez de nossos impostos sustentaram o valor das
moedas, apesar da crise. Isso foi mais evidente nos EUA. Mesmo quando a
economia global despencou e a turbulência financeira aumentou, o valor do dólar
subiu.
Os bancos centrais usaram a
garantia oferecida pelos cidadãos para alavancar grandes quantidades de
dinheiro — cerca de US$ 16 trilhões – para socorrer o sistema
bancário global.
A dívida pública como presente
para os financistas e rentistas
Para entender inteiramente o
poder exercido pelos banqueiros centrais é importante entender que cada vez que
o governo solicita um empréstimo ou emite um título, ele cria uma dívida – uma
obrigação (passivo) — para o governo. Ao mesmo tempo, ao contrair empréstimos,
o governo cria um ativo financeiro valioso para o setor privado.
Os governos regularmente (uma ou
duas vezes por mês) convidam os financiadores privados a financiar seus títulos
ou empréstimos, em troca de promessas de pagar juros anualmente, e reembolsar o
principal integralmente ao final do prazo do empréstimo.
Esse processo na verdade não é
diferente do de uma mulher contraindo uma hipoteca. Ela convida um banqueiro a
aceitar seu “bônus” — a promessa de repagamento — respalda esta atitude com
“colaterais” (as garantias) e se compromete a pagar juros anualmente e o
principal integralmente ao fim do prazo do empréstimo.
Uma vez que o banqueiro comercial
tenha concedido o financiamento e aceitado o bônus, a mulher tem uma obrigação
(passivo) – de pagá-lo. O banqueiro, por outro lado, tem um “ativo” – o bônus ou
hipoteca da mulher. Isso é valioso para o banco privado porque, ao contrário do
ouro, o empréstimo gera renda para cada ano em que a mulher paga juros. É
provavelmente amparado pela garantia do seu apartamento existente. Além disso,
o principal em seu empréstimo provavelmente valerá mais em termos reais quando
for finalmente pago.
Os governos levantam financiamento
tanto do setor financeiro privado, quanto de um banco central, exatamente da
mesma maneira que um devedor comum levanta dinheiro de um banco comercial. O
governo promete pagar juros e oferece garantias. A diferença entre o título de
um governo e a hipoteca da mulher é que um título emitido por um governo com um
bom histórico de pagamento é um ativo mais valioso. Como tal, serve como
garantia vital para o sistema financeiro privado.
A hipoteca da mulher também é um
ativo, mas será menos valiosa porque ela pode não ter construído um bom
histórico de crédito, e em alguns casos pode ser respaldada apenas uma renda (a
sua própria). O Estado, ao contrário, é respaladado por um fluxo de receita de
milhões de contribuintes.
Isso explica por que os títulos
do governo (ou dívida do governo) são ativos extremamente valiosos para o setor
financeiro privado. Eles são seguros e confiáveis. Eles geram renda (pagamento
de juros) regularmente. A dívida como garantia ou ativo pode ser usada para
emprestar (ou “alavancar”) financiamento adicional.
Assim como o título de uma
propriedade permite que um proprietário a re-hipoteque e obtenha quantias
adicionais, garantidas por essa propriedade, ativos financeiros seguros e
valiosos agem como garantia para o levantar novos financiamentos. Dinheiro
recém-emprestado, garantido pelo fluxo de pagamentos de juros decorrentes da
dívida, pode então ser investido ou emprestado a uma taxa de retorno mais alta.
Para entender a alavancagem,
pense em uma proprietária que toma 80.000 libras
emprestadas com apenas £ 20.000 em capital. Ela tem um índice de alavancagem de
quatro. Em outras palavras, ela tomou empresto quatro vezes o capital de seu
ativo.
No momento de sua quebra,
dizia-se que o banco Lehman Brothers possuía um índice de alavancagem de 44. É
como ter um ativo que rende 10.000 libras por ano e, em seguida, contratar
um empréstimo de 440.000
libras para fazer uma farra de apostas. De acordo com o
Banco de Compensações Internacionais (BIS)k for International Settlements, os
bancos de investimento de Wall Street começaram com um índice de alavancagem de
22 em 1990, que subiu para “a vertiginosa altura de 48 no pico”.
A alavancagem nessa escala é mais
facilmente alcançada contra garantias que são tão seguras quanto a dívida
pública. A escala de riqueza gerada seria inimaginável para um Creso dos dias de hoje.
O “Shadow Banking” e a Fábrica de
Garantia
Há outro aspecto para garantias
públicas seguras que não é amplamente compreendido. Trata-se das formas como
são usadas no sistema financeiro paralelo (ou shadow banking), que opera
na “estratosfera” financeira, além do alcance dos estados e das regulações
democráticas.
As entidades para-bancárias não
regulamentadas, que concentram as economias do mundo (por exemplo, fundos de
gestão de ativos, fundos de pensão, companhias de seguros) mantêm imensas
quantidades de dinheiro. Uma delas — a BlackRock, por exemplo — tem US$ 6
trilhões em ativos.
Essas quantias não podem ser
depositadas com segurança em um banco tradicional, onde apenas uma quantia
limitada é garantida pelos governos. Para proteger o valor do dinheiro, um
fundo de gestão de ativos poderá, por exemplo, fazer um empréstimo temporário
de dinheiro a outro que dele necessite, em troca de garantia. Essa bolsa é
conhecida como um acordo de recompra ou recompra.
Como argumentou Daniela Gabor, os
mercados de recompra dos EUA e da Europa, os maiores do mundo, são construídos
sobre dívidas de governos. Em outras palavras, “o Estado tornou-se uma fábrica
de garantia para o sistema financeiro paralelo (Shadow banking)”
Os riscos deste mercado não
regulamentado para o sistema financeiro global são assustadores. Uma das razões
é que, enquanto alguém operando no mundo real — digamos, um proprietário de
imóvel — pode re-hipotecar apenas uma vez seu ativo ou propriedade, os gestores
de bancos que atuam no sistema paralelo não regulamentado podem usar uma única
unidade de garantia para re-alavancar um sem número de vezes. Manmohan Singh,
do FMI, estimou que, no final de 2007, as garantias eram usadas aproximadamente
três vezes para alavancar empréstimos adicionais em mercados especulativos.
É como usar o valor de um único
ativo — a propriedade de alguém — para garantir empréstimos adicionais de três
bancos diferentes. No mundo real da regulação financeira, os proprietários não
podem fazer isso.
Se quisermos entender a história
de como os ricos se tornaram imensamente, grotescamente, mais ricos em rendas
capturadas, enquanto os rendimentos médios da maioria caíram em termos reais,
devemos olhar para os índices de alavancagem com base em ativos públicos nos
setores bancário real e no shadow banking.
Em suma, a capacidade de drenar
regularmente um governo fazendo-o pagar juros e usar o ativo da dívida pública
para alavancar financiamentos adicionais é a razão pela qual os bancos,
especuladores financeiros, seguradoras, empresas de gestão de ativos, empresas
de private equity e fundos de pensão aumentaram maciçamente seus
ganhos de capital. É também por isso que aos títulos da dívida pública jamais
faltam demanda. Os financiadores privados precisam muito deles.
A escassez de dívida pública e as
políticas de “austeridade”
A Grande Crise Financeira (GCF)
desencadeou uma fuga da dívida privada em direção à segurança proporcionada
pela dívida pública — especialmente as mais seguras: a britânica, a europeia e
a norte-americana.
Este enorme choque financeiro
levou a uma contração maciça da oferta monetária global e ameaçou a deflação —
uma queda generalizada nos preços, que por sua vez levaria a falências,
desemprego e cortes salariais.
Para neutralizar essa ameaça, os
bancos centrais — em nosso nome — expandiram seus balanços e, em troca de
garantias recebidas do sistema financeiro privado (muitas das quais eram
“tóxicas”), forneceram a este níveis extraordinários de novo crédito ou
liquidez. No processo, os tecnocratas do funcionalismo público nos bancos
centrais protegeram os participantes do livre mercado da bancarrota e da
disciplina do mercado livre — causando um golpe considerável na ideologia
liberal.
O choque da deflação exigiu uma
resposta fiscal maciça. Houve uma expansão fiscal inicial, mas limitada, que
levou ao que o banco Credit Suisse chamou de “fluxo de garantia segura que fez
com que o dinheiro público público (Treasuries, títulos lastreados em
hipotecas, agências do governo dos EUA) subisse, compensando totalmente a
contração no “dinheiro sombra” privado (obrigações de empresas, títulos
garantidos por ativos e hipotecas não relacionadas com agências públicas).
Como resultado da demanda em
pânico por dívida pública, o preço dos títulos do governo subiu e, devido à
maneira como o mercado de títulos opera, o rendimento (taxa de juros) dos
títulos caiu drasticamente. A demanda por dívida pública aliviou muito os
custos de empréstimos (juros) do governo.
Rapidamente, porém, políticos e
autoridades do tesouro dos governos, aplaudidos por economistas ortodoxos, think
tanks de direita e pela mídia, voltaram à teoria neoliberal ou ordoliberal
e impuseram contração fiscal — ou “austeridade”. O investimento público —
gastos do governo — foi cortado ou impedido de aumentar.
Esses padrões duplos – a expansão
das finanças para o setor financeiro privado e a contração para o setor público
— são intrínsecos à economia ortodoxa, mas raramente desafiados pela profissão
de economista.
Como resultado, a produção de
garantias do governo (dívida pública) caiu.
Desde 2010, a “austeridade”, simultânea
aos congelamentos e cortes de salários, agravou a crise. O efeito dessa
política econômica atrasada foi aumentar o emprego inseguro, de baixa
remuneração, pouco qualificado e improdutivo, ao mesmo tempo em que reduzia os
salários em todos os setores.
Nos EUA, o estímulo inicial
determinado por Obama evitou a depressão mas foi insuficiente para restaurar a
estabilidade a longo prazo. Ao invés disso, houve severos cortes de gastos do
governo estadual e local, não houve socorro às famílias que haviam hipotecado
suas casas e os salários caíram em termos reais. Entre 2009 e 2014, os
salários ajustados à inflação nos EUA ficaram estacionados ou decresceram, após
uma série de decisões polítias. Mais recentemente, os salários reais cresceram,
mas as taxas de crescimento para a recuperação como um todo ainda estão muito
atrás das taxas anuais de 2,0
a 2,2% de 1947
a 1979.
Como resultado da austeridade, a
emissão de dívida pública segura diminuiu. Por que isso deveria importar?
Porque a baixa oferta de dívida do governo tende a impulsionar (na verdade,
“deslocar para”) a criação de dívida privada insegura, ou ativos. Esses ativos
privados inseguros são usados pelo
sistema bancário e pelo sistema bancário “das sombras” para expandir os
empréstimos e o crédito. Os bancos centrais preocupam-se, com razão, com o fato
de que essa expansão do crédito sobre ativos desregulamentados e desregulados
provavelmente levará a outra crise financeira.
Observando a dívida pública pelo
lado errado de um telescópio
Entender o valor da dívida
pública muda nossa visão sobre o assunto. Como um empréstimo obtido para um
projeto que criará emprego e gerará renda, a dívida pública, se investida em
atividade produtiva, é uma coisa boa. Gerará renda. Não apenas salários para os
empregados; não apenas lucros para o setor privado, quando os salários são
gastos em seus bens e serviços; mas também receitas fiscais. Impostos sobre as
rendas das corporações e dos consumidores, usados pelo governo para pagar a
dívida.
Os empréstimos e os gastos
públicos são especialmente importantes depois de uma crise, quando o setor
privado está fraco e não tem confiança para fazer dívidas, investir e gastar.
No entanto, a maioria dos economistas das escolas de Chicago vê a dívida
pública como uma ameaça à economia. Governos que não podem “equilibrar as
contas” são considerados incompetentes e perseguidos pela mídia
A hostilidade à dívida pública
varia, mas o medo está embutido na psiqué alemã, porque a palavra para dívida –
“Schuld” – é o mesmo que a palavra para “culpa”. A frase de São Mateus —
“perdoa-nos as nossas dívidas, pois perdoamos aos nossos devedores” — foi
interpretado por São Lucas como “perdoa os nossos pecados como perdoamos
aqueles que pecam contra nós”.
Culpa, pecado e dívida pública
estão profundamente conectados, mas apenas nas mentes dos economistas,
jornalistas e do público. Dívida torna-se algo bem diferente nas mentes dos
financistas e rentistas. Para Wall Street e a City de Londres, a dívida pública
segura da Grã-Bretanha, da Europa e dos EUA é um presente verdadeiramente
impressionante e fenomenal.
Nunca é suficiente para eles.
Enquanto não compreendermos
plenamente a importância da dívida pública para o setor financeiro, as
corporações imensamente abastadas e globalizadas continuarão a extrair
parasitariamente renda de ativos públicos; a desigualdade mundial continuará a
aumentar; e nós, os muitos, ficaremos relativamente mais pobres e sem poder.
Quando um número suficiente de
pessoas vier a entender esse poder oculto, descobriremos que outro mundo é
realmente possível.
Esquerda e Sistema Financeiro
No coração da ideologia
neoliberal — ideias compartilhadas por aqueles que o historiador econômico
Quinn Slobodian define como “globalistas” — está a crença de que a participação
do Estado na economia deve encolher. Além disso, os mercados privados de
capital devem permanecer “livres” para vagar globalmente e sem restrições. Em
outras palavras, os mercados de capitais globalizados devem ter a “liberdade”
de se desvincular dos Estados do mundo e da regulação democrática.
Como explicado acima, a profunda
ironia da obsessão ideológica com os mercados de capital auto-regulados,
“austeridade” e o encolhimento do Estado é que os mercados financeiros privados
não podem funcionar sem o apoio dos governos, seus contribuintes e a segurança
da dívida pública.
O “rato tímido”, que é o setor
financeiro privado, não pode operar sem a proteção do “leão que ruge”, que é o
setor público, para citar Mariana
Mazzucato.
Dado que os ativos públicos
seguros são tão fundamentais para a estabilidade do sistema financeiro privado,
por que políticos e funcionários de direita querem reduzir sua oferta? A
resposta só pode ser: a ignorância, alimentada pela ideologia oposta ao papel
coletivo do Estado.
Mas e a da esquerda? A Grande
Crise Financeira foi recebida com choque e descrença à esquerda. Muitos
economistas progressistas concentraram-se na economia doméstica e tangível —
Estado, mercados, trabalho e comércio –, ignorando amplamente a economia
intangível, o setor financeiro globalizado.
E muitos abraçaram a
“globalização” — a capacidade de viajar amplamente e atrair dinheiro em
qualquer parte do globo; a facilidade com que a globalização facilitou a
importação de frutas e vegetais exóticos; smartphones baratos; e os
presentinhos oferecidos pela tecnologia no sistema globalizado. Tudo isso foi
recebido com entusiasmo por partidos social-democratas, que fecharam os olhos a
um sistema financeiro global e desregulamentado que facilitou essas atividades,
mas também criou a ameaça de desastre sistêmico.
Como resultado, a esquerda não
teve uma resposta coerente ao colapso dos mercados de capitais globalizados.
Durante todo o período de “austeridade”, a esquerda — tanto nos EUA quanto na
Europa — viu-se em desvantagem, na defensiva diante dos governos social-democratas
que haviam acumulado dívidas como resultado da Grande Crise Financeira. Os
governos social-democratas endossaram o Quantitative Easing para os
banqueiros e “austeridade” para a maioria. Essa abordagem garantiu sua queda e
até a extinção. (O Partido Socialista Francês não existe mais como uma força
política ou organização, e foi obrigado a vender sua
própria sede.)
Esses fracassos enfraqueceram a
capacidade da esquerda de argumentar que, em um momento de fracasso
catastrófico da economia privada, o investimento público em empregos era
essencial para restaurar a estabilidade social, política e econômica. Em vez
disso, subsídios e ativos apoiados pelos contribuintes foram implantados pelos
bancos centrais via QE para proteger os lucros privados e os ganhos de capital.
Não é de se admirar que a
população tenha se revoltado.
O que Fazer?
Um primeiro dos muitos passos que
devem ser dados para transformar a economia é a compreensão. As pessoas não
podem agir para transformar o que não entendem.
A compreensão de como os
contribuintes garantem e endossam as atividades do setor financeiro privado
globalizado e desregulamentado deve ser mais difundida. Só então poderemos
começar a exigir “termos e condições” para subsídios e garantias públicas — e
usar esse poder para regular e subordinar o setor financeiro globalizado aos
interesses da sociedade como um todo. Exigir que os ativos financeiros públicos
sejam usados para benefício público,
não privado.
Esse entendimento é fundamental
se quisermos responder à maior ameaça à segurança que a humanidade enfrenta: o
colapso climático.
Armados de compreensão,
precisaremos de um plano. O New Deal Verde é esse plano.
O New Deal Verde
A genialidade do New Deal Verde
de Alexandria Ocasio Cortez é que ele fornece um plano amplo e abrangente para
transformar a economia dos EUA e enfrentar o colapso do clima. Se os esforços
do Partido Democrata norte-americano levarem a uma campanha internacionalmente
coordenada para implementá-lo, o plano tem o potencial de transformar muitas
economias em todo o mundo e garantir um planeta habitável no futuro.
Mas — e é um grande mas — um
plano abrangente para a transformação econômica exigirá financiamento em grande
escala, comparável ao de uma nação que está entrando em guerra. Nós sabemos
que isso pode ser feito. Os governos sempre encontraram dinheiro para financiar
guerras.
Em 1933, o plano do presidente
norte-americano Franklin D. Roosevelt — o New Deal — encontrou dinheiro para
uma guerra contra o desemprego e a pobreza. Seu governo fez isso revertendo a
economia neoliberal e implementando a teoria e as políticas monetárias
keynesianas. Ao garantir que o sistema monetário e financeiro fosse
administrado por autoridades públicas, e não privadas, seu governo levantou o
financiamento necessário para tirar os EUA da catástrofe econômica da Grande
Depressão. O New Deal de Roosevelt não apenas criou empregos e gerou renda
nacional. Ele também abordou a catástrofe ecológica que foi o Dust Bowl,
popularmente conhecido pelas enormes tempestades de areia.
A implementação do New Deal foi
alcançada, em primeiro lugar, porque o governo de Roosevelt tinha uma
compreensão clara da natureza do dinheiro e do sistema monetário com respaldo
público. Mas seu sucesso em lidar com os interesses de Wall Street deveu-se à
mobilização política, organização e ação. Roosevelt teve a coragem e o lastro
político para confrontar e subordinar os interesses do Wall Street aos da
sociedade e do meio ambiente.
Qualquer movimento internacional
para um New Deal Verde terá que reunir a mesma coragem política em muitos
países no mundo. Os ativistas terão que mobilizar, organizar e agir para
superar a ideologia econômica que permite que os 1% enriqueçam incrivelmente
com subsídios, salvamentos e garantias apoiados pelos contribuintes — enquanto
negam recursos financeiros para investimentos públicos, transformação econômica
e ecológica. Os ativistas terão que descobrir, e então implantar, seu poder latente
para subordinar as finanças globais aos interesses da sociedade e do
ecossistema.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário