terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Regionalização pt. | Quem quer que mil Terreiros do Paço floresçam?


Portugal é constituído por um só Povo, que fala uma só Língua. Não está dividido por quaisquer conflitos étnicos ou religiosos. Não tem sequer nenhuma tradição de administração regional autárquica – a menos que alguém queira tomar como exemplo, ou termo de comparação, o poder arbitrário e quase absoluto exercido pelos senhores feudais sobre os camponeses, na Idade Média

Alfredo Barroso | jornal i | opinião

1. Quanto custarão os “feudos”? – Claro que ainda ninguém fez as contas, até porque, em rigor, só poderão ser feitas depois de sabermos em quantos feudos políticos os adeptos da regionalização tencionam retalhar Portugal. Mas uma coisa é certa: regionalizar o país iria custar os olhos da cara. Basta pensarmos, desde logo, no brutal aumento da despesa pública que resultaria dos vencimentos a pagar aos deputados de cada mini-parlamento e aos membros de cada mini-executivo em cada região político-administrativa (que seria bem mais política do que administrativa), assim como os vencimentos a pagar aos vários assessores, consultores, adjuntos e et cetera que iriam preencher os respectivos gabinetes dos políticos regionais, além das mordomias que acompanham sempre o pessoal político, tanto o nacional como o local, que já são bastantes.

E nem será bom falar das despesas ainda maiores que teriam de ser feitas pelo poder central, para colmatar as inevitáveis assimetrias económicas, financeiras, sociais e culturais, com as regiões mais pobres a protestar e a sublevar-se, dando-se conta de que as regiões mais ricas tinham, é claro, receitas bem maiores. Com tantas soberanias regionais em acção, lá iria pelo cano abaixo o que ainda nos resta de soberania nacional, depois da UE já nos ter tirado uns bons bocados. Um sarilho dos diabos, digo-vos eu, se a regionalização fosse avante.

Disse-o em 1998 e repito-o agora: a regionalização político-administrativa do país é uma divisão completamente arbitrária e artificial, absolutamente desnecessária e, além disso, extremamente perigosa. Não corresponde a qualquer necessidade de autonomia política, económica ou cultural reivindicada pelas populações. Não tem qualquer justificação histórica. Não se fundamenta em quaisquer diferenças absolutamente contrastadas, de natureza geográfica, política, cultural ou outra.

Portugal é constituído por um só Povo, que fala uma só Língua. Não está dividido por quaisquer conflitos étnicos ou religiosos. Não tem sequer nenhuma tradição de administração regional autárquica – a menos que alguém queira tomar como exemplo, ou termo de comparação, o poder arbitrário e quase absoluto exercido pelos senhores feudais sobre os camponeses, na Idade Média.

Portugal tem, isso sim, uma fortíssima tradição municipalista, que é multisecular e anterior à própria nacionalidade. E o seu povo também tem, há muitos séculos, aquilo que José Mattoso designa por “uma inequívoca consciência da identidade nacional”. Portugal é o mais velho e o mais sólido Estado-Nação da Europa - é ele próprio um Estado-Região perfeito, com as fronteiras mais antigas e mais estáveis do Velho Continente. Por isso digo que a regionalização é uma pura ficção política. E é uma péssima solução artificial para um problema que só seria agravado pela divisão de Portugal em “quadradinhos”. Se alguma vez for por diante, poderá, até, provocar uma perigosa dinâmica de desagregação do Estado e de fragmentação do País. Iria transformá-lo numa autêntica manta de retalhos, pondo seriamente em causa a coesão nacional e diminuindo o peso específico de Portugal na União Europeia e no Mundo. É contra isso que continuo a bater-me, como republicano e patriota. Quem quer que mil Terreiros do Paço floresçam? Eu não!

2. Nada de confusões – Digo sempre que não há que confundir regionalização com descentralização. Em Portugal, qualquer proposta de regionalização político-administrativa do continente não é, de maneira nenhuma, o procedimento mais adequado para pôr em prática uma política de descentralização mais racional e melhor coordenada, que vise tornar as diferentes administrações públicas mais eficazes, mais desburocratizadas e mais acessíveis aos cidadãos. Pelo contrário, tais propostas são reveladoras de incapacidade e impotência.

A tentativa de regionalizar é, de facto, uma verdadeira confissão de impotência. É um reconhecimento envergonhado da incapacidade dos sucessivos governos para fazerem o ‘trabalho de casa’ que lhes compete e promoverem uma reforma séria e profunda do Estado – tornando-o mais organizado, mais ágil e mais moderno – sem pôr em causa a sua unidade essencial, a autoridade democrática e a sua credibilidade interna e externa. Por isso, acho incompreensível:

- Que não seja seriamente incentivada a cooperação intermunicipal;

- Que não seja mais estimulada a criação de novas Associações de Municípios;

- Que não seja devidamente apoiada a actividade das Associações de Municípios já existentes, conferindo-lhes poderes efectivos de coordenação e planeamento em áreas específicas de intervenção;

- Que não sejam adequadamente exploradas todas as potencialidades das Áreas Metropolitanas já existentes - e que não seja seriamente estudada a possibilidade de criação de novas Áreas Metropolitanas - encarando-as como verdadeiros pólos de desenvolvimento do País;

- Que não haja acordo entre os partidos para aprovar a sempre tão proclamada e reclamada reforma da lei eleitoral da Assembleia da República, com o objectivo de aproximar os eleitores dos eleitos e de tornar os deputados mais responsáveis perante os cidadãos que representam no Parlamento.

3. Desequilíbrios brutais – A regionalização político-administrativa do continente é, de facto, a forma mais perigosa e preguiçosa de concretizar a descentralização. É precisamente aquele tipo de tratamento que, ao pretender curar um doente, corre o risco de fazer com que ele morra da cura. Isto porque: por um lado, divide artificialmente o País entre regiões mais ricas e regiões mais pobres; por outro lado, divide arbitrariamente o País entre regiões do litoral e regiões do interior; e, por fim, divide politicamente o País entre regiões com vários milhões de votos e regiões com escassos milhares. Vale pena avaliar alguns exemplos concretos retirados de um dos mapas apresentados em 1998:

– Se porventura viessem a ser instituídas, a região de Lisboa e Setúbal e a região de Entre Douro e Minho ficariam, cada uma, com cerca de dois milhões e 300 mil eleitores. E a da ‘Beira Litoral’ com cerca de um milhão e 200 mil eleitores. Estas três regiões do litoral concentrariam, só nelas, quase seis milhões de votos;

– Em contrapartida, as restantes cinco regiões concentrariam pouco mais do que dois milhões de votos, no seu conjunto. A região da Estremadura e Ribatejo teria cerca de 700 mil eleitores. A região do Alentejo teria cerca de 450 mil. A região de Trás-os-Montes e Alto Douro teria cerca de 400 mil.

A região da Beira Interior teria cerca de 350 mil. A região do Algarve teria cerca de 300 mil.

Como se vê, os desequilíbrios seriam brutais - e fontes de injustiça, desigualdade, egoísmo e falta de solidariedade. Isto, para já nem falar na famosa querela das capitais ou sedes das regiões, onde ficariam instalados, além do parlamento e do executivo, os diferentes serviços e organismos públicos regionais.

4. Invocando Mário Soares - Cabe aqui, neste ensaio contra a regionalização, uma justa homenagem a Mário Soares, citando algumas das mais significativas afirmações sobre o tema, na importante entrevista que concedeu ao “Diário de Notícias” em Abril de 1998. Ontem como hoje, tais afirmações continuam a ser um sério aviso à navegação. Disse, então, Mário Soares:

– “Relativamente à proposta de regionalização que será submetida a referendo, sou absolutamente contra.

A partilha do território em regiões, quase regiões-Estados, com o pessoal político intermédio eleito, portanto legitimado pelo voto e a partir de então incontrolável, parece-me insensata, inútil, perigosa e altamente lesiva dos interesses portugueses no seu conjunto”;

– “Portugal é um Estado-Nação, com esplêndida e exemplar unidade nacional, há quase nove séculos. Com as mesmas fronteiras, os mesmos valores e a mesma língua. Nessa matéria, não temos de copiar nada do estrangeiro. É um Estado-Nação perfeito. Por isso mesmo é que sou contra que se criem artificialmente regiões politicamente legitimadas, que poderão ser embriões de futuras divisões do nosso Estado-Nação. Acho que a regionalização que se anuncia é um perigo para Portugal”.

– “Ninguém poderá dizer, com segurança, onde nos conduzirá a regionalização e que consequências nos trará. Sabemos, isso sim, que cada região criará imediatas conexões directas com as autonomias espanholas vizinhas - por exemplo: o Norte com a Galiza; as Beiras com La Mancha-Léon; o Alentejo com a Extremadura; o Algarve com a Andaluzia - com reflexos centrífugos óbvios em relação a Lisboa e a Madrid”.

– “Temo a eclosão de ‘patriotismos’ regionais, que podem vir a assanhar-se com a regionalização. Já vimos algumas antecipações desse tipo com as ‘guerras’ locais entre Guimarães e Vizela, para dar um exemplo recente... Tais ‘guerras’ podem repetir-se em muito maiores proporções. E eu pergunto: com que vantagem?”.

5. O futuro radioso – Termino, com algumas pitadas de humor, recordando um lindo sonho que tive sobre o futuro radioso, na noite de 12 de Setembro de 1998. Digo-vos que, nessa noite admirável, sonhei com a reforma do século (XX, claro!). Não, não foi um pesadelo, foi mesmo um sonho. Estava na “Praça Sony”, no meio de esmagadora multidão de portuguesas e portugueses. No palco, o novo bardo lusitano, Quim Barreiros, interpretava – cheio de coesão – uma canção deveras patriótica sobre a Internet. Às tantas, a sua voz foi abafada por um coro celestial oriundo do alto da Torre de Cabo Ruivo. A multidão olhou para cima e para trás: numa nuvem tão amarela como as bandeiras do PS, o “nosso primeiro” (António Guterres) descia suavemente à Terra, rodeado por querubins com a pronúncia do Norte. Logo se ouviram trombetas do lado da Torre Vasco da Gama: noutra nuvem – esta, porém, cor-de-rosa – o “nosso presidente” (Jorge Sampaio) também descia suavemente à Terra, rodeado por querubins com um ar muito british. Calou-se o Quim Barreiros e calou-se a multidão. E o palco transformou-se numa gigantesca Tenda dos Milagres. Só então o “nosso presidente” rompeu o silêncio e proclamou, certamente inspirado pelos Monty Python, e num inglês irrepreensível: “And now for something completely different, here we have the Regionalization!” Loucura na praça – na da Expo-98, não na de Barrancos. Finalmente a regionalização e, com ela, um futuro radioso para todas as portuguesas e portugueses!

Em sonhos, eu vi esse futuro radioso e quero dar testemunho. A regionalização é a varinha de condão, a poção mágica, a banha da cobra, a panaceia que dá vida aos mortos e saúde aos enfermos, faz crescer o cabelo aos carecas e torna as feias bem bonitas. Com regionalização, nada é impossível. Os cegos vêem, os mudos falam, os surdos ouvem. A regionalização lava mais branco e não faz pregas no peito nem rugas no colarinho. Com a regionalização, passará a haver “sol na eira e chuva no nabal”, brotará petróleo aos borbotões no Beato e todos os eucaliptos se transformarão em árvores das patacas. Cada português passará a ter uma casa, à porta de cada casa vai passar uma autoestrada (ou um IP, ou um IC). E também passará a haver uma escola em cada esquina, uma universidade em cada bairro, um hospital em cada freguesia. E haverá metropolitanos para todos – não só em Lisboa e no Porto, mas também em Aljezur, Cacilhas e Freixo-de-Espada-à-Cinta. E Ferraris. E micro-ondas. E smartphones. E, evidentemente, antenas parabólicas e descodificadores para a malta do pontapé-na-bola ver futebol na TV.

A regionalização, meus amigos, é o novo milagre das rosas, que se transformam em pãezinhos (e não estes em rosas) no regaço dos presidentes dos executivos regionais (tal como já sucedia, aliás, no regaço do doutor Alberto João Jardim). E assim, com tanto pão, é uma autêntica revolução gastronómica que se prepara. De fazer inveja a Galileu e a Copérnico. Porque a regionalização, digo-vos eu, é o novo Sol da Terra, em volta do qual passarão a girar os estômagos de todas as portuguesas e portugueses. Sim, eu vi o futuro radioso. Nele haverá acepipes de arromba e iguarias prodigiosas - até hoje desconhecidas do homo lusitanus, mas absolutamente dignas de Pantagruel - tais como o cozido à portuguesa, a feijoada à transmontana, as tripas à moda do Porto e a açorda à alentejana (sem esquecer as favas com chouriço e entrecosto, evidentemente). E também haverá vinho, a rodos e a granel, de fazer estalar o céu-da-boca. E o vinho será tinto e será branco – mas, atenção, em algumas regiões do país também será verde. Como o Sporting, que voltará, finalmente, a ser campeão, logo que o Porto e o Benfica comecem a jogar na Superliga Europeia (o que é tão certo como Bill Clinton passar a ter juízo e Boris Ieltsin deixar de beber vodka). E haverá, ainda, o Boi Ápis de Barrancos: será morto e renascerá todos os anos – para gáudio dos nossos estômagos, iracúndia dos juízes, repouso da GNR e sossego do ministro Armando Vara.

Sim, eu vi o futuro radioso. E digo-lhes que a regionalização há-de ser - sobretudo quando cantada por Quim Barreiros - o “Viagra” dos portugueses. Com ela, haverá um espantoso incremento da procriação, que é tão necessária ao povoamento do Portugal interior, recôndito e desertificado. Sem ela, o desastre demográfico seria inevitável, e os portugueses tornar-se-iam uma “espécie em vias de extinção” - e o homo lusitanus passaria a ser tão raro como o lince da Malcata… Por isso eu digo:

“Vão por mim. Não estejam assim tão carrancudos. Façam como os Monty Python. Divirtam-se à brava com tudo isto. Não deixem que o ar fique tão carregado como nos tempos do ‘cavaquismo’. Olhem que uma reforma destas não se faz todos os séculos. E, feita esta, não será preciso fazer mais nenhuma...”

De resto, quanto ao que ela custaria, “é só fazer as contas”, como diria Guterres.

*Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

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