Portugal é constituído por um só
Povo, que fala uma só Língua. Não está dividido por quaisquer conflitos étnicos
ou religiosos. Não tem sequer nenhuma tradição de administração regional
autárquica – a menos que alguém queira tomar como exemplo, ou termo de
comparação, o poder arbitrário e quase absoluto exercido pelos senhores feudais
sobre os camponeses, na Idade Média
Alfredo Barroso | jornal i |
opinião
1. Quanto custarão os “feudos”? –
Claro que ainda ninguém fez as contas, até porque, em rigor, só poderão ser
feitas depois de sabermos em quantos feudos políticos os adeptos da
regionalização tencionam retalhar Portugal. Mas uma coisa é certa: regionalizar
o país iria custar os olhos da cara. Basta pensarmos, desde logo, no brutal
aumento da despesa pública que resultaria dos vencimentos a pagar aos deputados
de cada mini-parlamento e aos membros de cada mini-executivo em cada região
político-administrativa (que seria bem mais política do que administrativa),
assim como os vencimentos a pagar aos vários assessores, consultores, adjuntos
e et cetera que iriam preencher os respectivos gabinetes dos políticos
regionais, além das mordomias que acompanham sempre o pessoal político, tanto o
nacional como o local, que já são bastantes.
E nem será bom falar das despesas
ainda maiores que teriam de ser feitas pelo poder central, para colmatar as
inevitáveis assimetrias económicas, financeiras, sociais e culturais, com as
regiões mais pobres a protestar e a sublevar-se, dando-se conta de que as
regiões mais ricas tinham, é claro, receitas bem maiores. Com tantas soberanias
regionais em acção, lá iria pelo cano abaixo o que ainda nos resta de soberania
nacional, depois da UE já nos ter tirado uns bons bocados. Um sarilho dos
diabos, digo-vos eu, se a regionalização fosse avante.
Disse-o em 1998 e repito-o agora:
a regionalização político-administrativa do país é uma divisão completamente
arbitrária e artificial, absolutamente desnecessária e, além disso,
extremamente perigosa. Não corresponde a qualquer necessidade de autonomia
política, económica ou cultural reivindicada pelas populações. Não tem qualquer
justificação histórica. Não se fundamenta em quaisquer diferenças absolutamente
contrastadas, de natureza geográfica, política, cultural ou outra.
Portugal é constituído por um só
Povo, que fala uma só Língua. Não está dividido por quaisquer conflitos étnicos
ou religiosos. Não tem sequer nenhuma tradição de administração regional
autárquica – a menos que alguém queira tomar como exemplo, ou termo de
comparação, o poder arbitrário e quase absoluto exercido pelos senhores feudais
sobre os camponeses, na Idade Média.
Portugal tem, isso sim, uma
fortíssima tradição municipalista, que é multisecular e anterior à própria
nacionalidade. E o seu povo também tem, há muitos séculos, aquilo que José
Mattoso designa por “uma inequívoca consciência da identidade nacional”.
Portugal é o mais velho e o mais sólido Estado-Nação da Europa - é ele próprio
um Estado-Região perfeito, com as fronteiras mais antigas e mais estáveis do
Velho Continente. Por isso digo que a regionalização é uma pura ficção
política. E é uma péssima solução artificial para um problema que só seria
agravado pela divisão de Portugal em “quadradinhos”. Se alguma vez for por
diante, poderá, até, provocar uma perigosa dinâmica de desagregação do Estado e
de fragmentação do País. Iria transformá-lo numa autêntica manta de retalhos,
pondo seriamente em causa a coesão nacional e diminuindo o peso específico de
Portugal na União Europeia e no Mundo. É contra isso que continuo a bater-me,
como republicano e patriota. Quem quer que mil Terreiros do Paço floresçam? Eu
não!
2. Nada de confusões – Digo
sempre que não há que confundir regionalização com descentralização. Em
Portugal, qualquer proposta de regionalização político-administrativa do
continente não é, de maneira nenhuma, o procedimento mais adequado para pôr em
prática uma política de descentralização mais racional e melhor coordenada, que
vise tornar as diferentes administrações públicas mais eficazes, mais
desburocratizadas e mais acessíveis aos cidadãos. Pelo contrário, tais
propostas são reveladoras de incapacidade e impotência.
A tentativa de regionalizar é, de
facto, uma verdadeira confissão de impotência. É um reconhecimento envergonhado
da incapacidade dos sucessivos governos para fazerem o ‘trabalho de casa’ que
lhes compete e promoverem uma reforma séria e profunda do Estado – tornando-o
mais organizado, mais ágil e mais moderno – sem pôr em causa a sua unidade
essencial, a autoridade democrática e a sua credibilidade interna e externa.
Por isso, acho incompreensível:
- Que não seja seriamente
incentivada a cooperação intermunicipal;
- Que não seja mais estimulada a
criação de novas Associações de Municípios;
- Que não seja devidamente
apoiada a actividade das Associações de Municípios já existentes,
conferindo-lhes poderes efectivos de coordenação e planeamento em áreas
específicas de intervenção;
- Que não sejam adequadamente
exploradas todas as potencialidades das Áreas Metropolitanas já existentes - e
que não seja seriamente estudada a possibilidade de criação de novas Áreas
Metropolitanas - encarando-as como verdadeiros pólos de desenvolvimento do
País;
- Que não haja acordo entre os
partidos para aprovar a sempre tão proclamada e reclamada reforma da lei
eleitoral da Assembleia da República, com o objectivo de aproximar os eleitores
dos eleitos e de tornar os deputados mais responsáveis perante os cidadãos que
representam no Parlamento.
3. Desequilíbrios brutais – A
regionalização político-administrativa do continente é, de facto, a forma mais
perigosa e preguiçosa de concretizar a descentralização. É precisamente aquele
tipo de tratamento que, ao pretender curar um doente, corre o risco de fazer
com que ele morra da cura. Isto porque: por um lado, divide artificialmente o
País entre regiões mais ricas e regiões mais pobres; por outro lado, divide
arbitrariamente o País entre regiões do litoral e regiões do interior; e, por
fim, divide politicamente o País entre regiões com vários milhões de votos e
regiões com escassos milhares. Vale pena avaliar alguns exemplos concretos
retirados de um dos mapas apresentados em 1998:
– Se porventura viessem a ser
instituídas, a região de Lisboa e Setúbal e a região de Entre Douro e Minho
ficariam, cada uma, com cerca de dois milhões e 300 mil eleitores. E a da
‘Beira Litoral’ com cerca de um milhão e 200 mil eleitores. Estas três regiões
do litoral concentrariam, só nelas, quase seis milhões de votos;
– Em contrapartida, as restantes
cinco regiões concentrariam pouco mais do que dois milhões de votos, no seu
conjunto. A região da Estremadura e Ribatejo teria cerca de 700 mil eleitores.
A região do Alentejo teria cerca de 450 mil. A região de Trás-os-Montes e Alto
Douro teria cerca de 400 mil.
A região da Beira Interior teria cerca de 350 mil. A região do Algarve teria cerca de 300 mil.
Como se vê, os desequilíbrios
seriam brutais - e fontes de injustiça, desigualdade, egoísmo e falta de
solidariedade. Isto, para já nem falar na famosa querela das capitais ou sedes
das regiões, onde ficariam instalados, além do parlamento e do executivo, os
diferentes serviços e organismos públicos regionais.
4. Invocando Mário Soares - Cabe aqui,
neste ensaio contra a regionalização, uma justa homenagem a Mário Soares,
citando algumas das mais significativas afirmações sobre o tema, na importante
entrevista que concedeu ao “Diário de Notícias” em Abril de 1998. Ontem como
hoje, tais afirmações continuam a ser um sério aviso à navegação. Disse, então,
Mário Soares:
– “Relativamente à proposta de
regionalização que será submetida a referendo, sou absolutamente contra.
A partilha do território em regiões, quase regiões-Estados, com o pessoal político intermédio eleito, portanto legitimado pelo voto e a partir de então incontrolável, parece-me insensata, inútil, perigosa e altamente lesiva dos interesses portugueses no seu conjunto”;
– “Portugal é um Estado-Nação,
com esplêndida e exemplar unidade nacional, há quase nove séculos. Com as
mesmas fronteiras, os mesmos valores e a mesma língua. Nessa matéria, não temos
de copiar nada do estrangeiro. É um Estado-Nação perfeito. Por isso mesmo é que
sou contra que se criem artificialmente regiões politicamente legitimadas, que
poderão ser embriões de futuras divisões do nosso Estado-Nação. Acho que a
regionalização que se anuncia é um perigo para Portugal”.
– “Ninguém poderá dizer, com
segurança, onde nos conduzirá a regionalização e que consequências nos trará.
Sabemos, isso sim, que cada região criará imediatas conexões directas com as
autonomias espanholas vizinhas - por exemplo: o Norte com a Galiza; as Beiras
com La Mancha-Léon ;
o Alentejo com a Extremadura; o Algarve com a Andaluzia - com reflexos centrífugos
óbvios em relação a Lisboa e a Madrid”.
– “Temo a eclosão de
‘patriotismos’ regionais, que podem vir a assanhar-se com a regionalização. Já
vimos algumas antecipações desse tipo com as ‘guerras’ locais entre Guimarães e
Vizela, para dar um exemplo recente... Tais ‘guerras’ podem repetir-se em muito
maiores proporções. E eu pergunto: com que vantagem?”.
5. O futuro radioso – Termino,
com algumas pitadas de humor, recordando um lindo sonho que tive sobre o futuro
radioso, na noite de 12 de Setembro de 1998. Digo-vos que, nessa noite
admirável, sonhei com a reforma do século (XX, claro!). Não, não foi um
pesadelo, foi mesmo um sonho. Estava na “Praça Sony”, no meio de esmagadora
multidão de portuguesas e portugueses. No palco, o novo bardo lusitano, Quim
Barreiros, interpretava – cheio de coesão – uma canção deveras patriótica sobre
a Internet. Às tantas, a sua voz foi abafada por um coro celestial oriundo do
alto da Torre de Cabo Ruivo. A multidão olhou para cima e para trás: numa nuvem
tão amarela como as bandeiras do PS, o “nosso primeiro” (António Guterres)
descia suavemente à Terra, rodeado por querubins com a pronúncia do Norte. Logo
se ouviram trombetas do lado da Torre Vasco da Gama: noutra nuvem – esta,
porém, cor-de-rosa – o “nosso presidente” (Jorge Sampaio) também descia
suavemente à Terra, rodeado por querubins com um ar muito british. Calou-se o
Quim Barreiros e calou-se a multidão. E o palco transformou-se numa gigantesca
Tenda dos Milagres. Só então o “nosso presidente” rompeu o silêncio e
proclamou, certamente inspirado pelos Monty Python, e num inglês
irrepreensível: “And now for something completely different, here we have the
Regionalization!” Loucura na praça – na da Expo-98, não na de Barrancos.
Finalmente a regionalização e, com ela, um futuro radioso para todas as
portuguesas e portugueses!
Em sonhos, eu vi esse futuro
radioso e quero dar testemunho. A regionalização é a varinha de condão, a poção
mágica, a banha da cobra, a panaceia que dá vida aos mortos e saúde aos
enfermos, faz crescer o cabelo aos carecas e torna as feias bem bonitas. Com
regionalização, nada é impossível. Os cegos vêem, os mudos falam, os surdos
ouvem. A regionalização lava mais branco e não faz pregas no peito nem rugas no
colarinho. Com a regionalização, passará a haver “sol na eira e chuva no
nabal”, brotará petróleo aos borbotões no Beato e todos os eucaliptos se
transformarão em árvores das patacas. Cada português passará a ter uma casa, à
porta de cada casa vai passar uma autoestrada (ou um IP, ou um IC). E também
passará a haver uma escola em cada esquina, uma universidade em cada bairro, um
hospital em cada freguesia. E haverá metropolitanos para todos – não só em
Lisboa e no Porto, mas também em Aljezur, Cacilhas e Freixo-de-Espada-à-Cinta.
E Ferraris. E micro-ondas. E smartphones. E, evidentemente, antenas parabólicas
e descodificadores para a malta do pontapé-na-bola ver futebol na TV.
A regionalização, meus amigos, é
o novo milagre das rosas, que se transformam em pãezinhos (e não estes em
rosas) no regaço dos presidentes dos executivos regionais (tal como já sucedia,
aliás, no regaço do doutor Alberto João Jardim). E assim, com tanto pão, é uma
autêntica revolução gastronómica que se prepara. De fazer inveja a Galileu e a
Copérnico. Porque a regionalização, digo-vos eu, é o novo Sol da Terra, em
volta do qual passarão a girar os estômagos de todas as portuguesas e
portugueses. Sim, eu vi o futuro radioso. Nele haverá acepipes de arromba e
iguarias prodigiosas - até hoje desconhecidas do homo lusitanus, mas
absolutamente dignas de Pantagruel - tais como o cozido à portuguesa, a
feijoada à transmontana, as tripas à moda do Porto e a açorda à alentejana (sem
esquecer as favas com chouriço e entrecosto, evidentemente). E também haverá
vinho, a rodos e a granel, de fazer estalar o céu-da-boca. E o vinho será tinto
e será branco – mas, atenção, em algumas regiões do país também será verde.
Como o Sporting, que voltará, finalmente, a ser campeão, logo que o Porto e o
Benfica comecem a jogar na Superliga Europeia (o que é tão certo como Bill
Clinton passar a ter juízo e Boris Ieltsin deixar de beber vodka). E haverá,
ainda, o Boi Ápis de Barrancos: será morto e renascerá todos os anos – para
gáudio dos nossos estômagos, iracúndia dos juízes, repouso da GNR e sossego do
ministro Armando Vara.
Sim, eu vi o futuro radioso. E digo-lhes
que a regionalização há-de ser - sobretudo quando cantada por Quim Barreiros -
o “Viagra” dos portugueses. Com ela, haverá um espantoso incremento da
procriação, que é tão necessária ao povoamento do Portugal interior, recôndito
e desertificado. Sem ela, o desastre demográfico seria inevitável, e os
portugueses tornar-se-iam uma “espécie em vias de extinção” - e o homo
lusitanus passaria a ser tão raro como o lince da Malcata… Por isso eu digo:
“Vão por mim. Não estejam assim
tão carrancudos. Façam como os Monty Python. Divirtam-se à brava com tudo isto.
Não deixem que o ar fique tão carregado como nos tempos do ‘cavaquismo’. Olhem
que uma reforma destas não se faz todos os séculos. E, feita esta, não será
preciso fazer mais nenhuma...”
De resto, quanto ao que ela
custaria, “é só fazer as contas”, como diria Guterres.
*Escreve sem adopção das regras
do acordo ortográfico de 1990
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