O demagogo afaga e bajula o
“cérebro reptilário”, ou seja, a parte do cérebro humano que partilhamos com os
répteis, os peixes e os vertebrados inferiores, e é o nicho dos nossos
instintos
Alfredo Barroso* | jornal i |
opinião
O termo demagogia dá pano para
mangas porque a sua prática remonta à antiguidade clássica. Mas como não quero
maçar quem me lê, terei de recorrer a um modo sintético. Na democracia
ateniense, o termo demagogo queria dizer, literalmente, chefe do povo - era a
junção de “demos”, o povo, com “agogos”, o que conduz - e demagogos eram os
líderes dos partidos populares que se opunham aos partidos das “gentes belas e
boas”, como os aristocratas se designavam - modestamente - a si próprios.
Nesse tempo, porém, o demagogo
começou por ser, no contexto da democracia praticada na cidade-Estado de
Atenas, o chefe político que usava a sua inteligência e saber com o propósito
de defender lealmente a multidão dos mais desfavorecidos, contra o pequeno
número de privilegiados. Péricles (494- 429 a . C.) por exemplo, a quem se deve esse
milagre grego que foi a invenção da democracia, era um extraordinário chefe
político que poderíamos designar por “demagogo bom” e, claro, “bom
demagogo”.
Mas foi dois anos depois da morte
de Péricles, com o aparecimento na praça pública do demagogo e implacável
Creonte, com os seus excessos brutais e a sua arrogância vulgar, que o termo
demagogo passou ser claramente desfavorável e politicamente depreciativo. E foi
o grande historiador Tucídides (460- 400 a .C.) - na sua admirável “História da
Guerra do Peloponeso” (entre Esparta e Atenas, ocorrida no século V a. C.,
entre os anos 431 e 404 a .
C.) - que registou para sempre esse arquétipo do demagogo incendiário,
indecente e brutal. Creonte, rico curtidor de peles, era partidário da guerra à
“outrance” contra Esparta. Tucídides detestava-o, tendo escrito que “não havia
Ateniense mais brutal do que ele”. Era impiedoso e achava que era preciso
“governar pelo medo” não hesitando, perante uma multidão de seis mil atenienses
em delírio, em incitá-los a punirem com um massacre os Mitilenos já derrotados,
que eram uma parte - parafraseando a tão facciosa e sempre hostil Assunção
Cristas - dos “inimigos encostados” de Atenas.
E vem muito a propósito falar de
Assunção Cristas, porque ela é, sem qualquer dúvida, no contexto da democracia
portuguesa actual, um exemplo flagrante da “demagoga má” - e “má demagoga” - no
que só é superada pelo seu número dois, Nuno Melo, o bracarense que é
“testa-de-ponte” da lista do CDS-PP ao Parlamento Europeu - “recandidato” que,
a crer nas faltas que já deu, tanto vê Braga como o PE por um canudo. Mas ambos
têm, à direita, outro “demagogo mau” - e “mau demagogo” - perfeitamente à
altura: o inefável Paulo Rangel, um agitado refilão, “cabeça-de-atum” da lista
do PPD-PSD ao Parlamento Europeu. Infelizmente, a demagogia política que os
três praticam tem a espessura duma lâmina de barbear, a consistência do puré de
batata e a subtileza dum tijolo.
Assim como Eusébio Macário não
tinha, segundo Camilo, “tineta para boticário”, também eu acho que Assunção
Cristas não tem tineta para a “política a sério”. A sua agressividade em
relação a Rui Rio e a sua hostilidade brutal para com António Costa tocam as
raias da indigência e da indecência. Cristas consegue ser infantil, malcriada e
grotesca. Puxa-lhe o pé para a chinela. Usa permanentemente os mesmos
argumentos, óbvios e mal aviados. É chocarreira, falta-lhe sainete. Faz o
estilo da menina esperta e “marrona”, que se porta com ar de quem sabe tudo
quando vai à prova oral. E falta-lhe, sobretudo, o incontestável talento que
tinha Paulo Portas para o anexim, a frase curta e incisiva, o manto diáfano da
fantasia a esconder a nudez forte da verdade. Cristas nem aos calcanhares lhe
chegará. E crê que nós, lisboetas, não percebemos que a sua proeza eleitoral na
autarquia de Lisboa se deveu, sobretudo, à ruína do “passismo”. Foi mesmo
“bater em mortos”!
Primo Levi avisou: “Uma grande
lição da vida é que os imbecis têm por vezes razão. Mas é preciso que não
abusem. Chama-se demagogia à arte de abusar”. Todos nós teremos, se calhar,
recorrido alguma vez à demagogia. Mas o que constitui a essência do demagogo é,
precisamente, o abuso da própria demagogia. E das palavras. O demagogo crê que
só ele é que diz e detém a verdade. E vai incutindo essa falsa ideia na multidão
que o ouve e que ele não se cansa de lisonjear, para a conquistar e explorar a
favor dos seus intentos. O demagogo simplifica tudo, recorre a um número
limitado de regras, de figuras de estilo, de receitas, que têm atravessado
todas as épocas com mais ou menos eficácia, segundo as circunstâncias
históricas e políticas. Para o demagogo, regra geral de direita, que está na
oposição e não se cansa de insultar e tentar rebaixar o Governo democrático que
está no poder, são sempre os mesmos os argumentos a que recorre, não só contra
o Executivo mas também contra o Parlamento, a saber: incompetência, inércia,
palração, trapalhada, fuga às responsabilidades, favoritismo, volubilidade,
corrupção. Nada há de positivo: nem um louvor, nem uma crítica construtiva, nem
uma oposição séria e sem impropérios. Todo o demagogo é do contra, envenena o
ambiente, quer provocar a crise e o caos.
E vou terminar, que eu não quero
inquietá-los ainda mais. O demagogo afaga e bajula o “cérebro reptilário”, que
é a parte do cérebro humano que partilhamos com os répteis, os peixes e os
vertebrados inferiores, e é o nicho dos nossos instintos, como a agressividade,
a sensualidade, o instinto de sobrevivência ou a fome. Ora, o “cérebro
reptilário”, a par do “cérebro límbico” - sede do gosto, do olfacto, do
instinto lúdico e toda uma outra série de emoções, como a cólera, o entusiasmo,
o ódio e por aí fora - constituem, por assim dizer, o “cérebro antigo”, que
envolve a esmagadora quantidade de massa cinzenta com os dez mil milhões de neurónios
do neocórtex, que nos proporcionam, por seu turno, tudo aquilo nos distingue
dos animais: linguagem, lógica, razão. Encurtando caminhos: é o “cérebro
antigo”, designadamente o “cérebro reptilário”, que o demagogo quer atingir
quando se dirige às multidões, ao povo ignaro, à populaça, que delira com os
insultos e baixezas de todo o tipo a que um demagogo recorre na sua lamentável
“argumentação” política. Daí que, à pergunta: “Mas porque é que as multidões
podem descer tão baixo?”, seja costume responder: “Por causa do crocodilo”…
Lembram-se do fascismo e do nazismo?
*Escreve sem adopção das
regras do acordo ortográfico de 1990
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