Revoltante e irresponsável. E de
ambos os lados. O que está acontecendo nas fronteiras da Venezuela não é
fornecimento de ajuda humanitária, mas o uso político dela. Isso é um crime,
afirma Astrid Prange.
Astrid Prange | Deutsche Welle |
opinião
Vamos deixar uma coisa bem clara:
a população da Venezuela precisa de ajuda humanitária. O número de pessoas que
luta pela simples sobrevivência aumenta a cada dia, e o fornecimento de
alimentos e medicamentos é uma catástrofe no país.
Tanto pior, portanto, que o
autointitulado presidente interino Juan Guaidó e seus apoiadores
abusem da ajuda humanitária e a usem como instrumento de poder. Aparecer do
lado de pacotes de comida para bebê rende boas imagens para a televisão, mas
pouca credibilidade política.
Pior ainda é o presidente Nicolás
Maduro. O sucessor de Hugo Chávez arruinou economicamente o país, e de forma
sistemática. Ele mandou prender os adversários políticos, tirou poder do
Parlamento, que é dominado pela oposição, e abandonou a população à própria
sorte.
Agora, a ajuda humanitária deve
servir, para os dois lados, de cobertura para o fracasso político. As sanções
contra o regime de Maduro, impostas desde 2015 pelos Estados Unidos, não
tiveram o "sucesso" esperado, ou seja, a queda do "Socialismo do
Século 21".
Elas apenas aceleraram o declínio
da Venezuela e empurraram Maduro cada vez mais para os braços de Moscou e
Pequim. Na semana passada, Maduro falava que não havia fome na Venezuela.
Agora, ele anuncia, às vésperas do embate de 23 de fevereiro, que 300 toneladas
de ajuda humanitária estão chegando da Rússia.
A Rússia é o principal aliado da
Venezuela. Já nos tempos de Chávez, o Kremlin enviava armas para as Forças
Armadas venezuelanas. Além disso, Caracas deve 12 bilhões de dólares para
Moscou – como garantia para empréstimos, a Venezuela empenhou nada menos que a
metade das ações da Citgo, uma rede de postos de gasolina nos Estados Unidos
que pertence à estatal petrolífera PDVSA.
A Rússia tem, com isso, dois
trunfos contra o presidente Donald Trump: por meio da Citgo, pode influenciar o
abastecimento de combustíveis nos Estados Unidos; e, por meio da presença na
Venezuela, se estabeleceu como importante ator internacional, ao lado da
China e dos EUA, na América Latina.
O mais novo exemplo é o veto da
Rússia no Conselho de Segurança da ONU, na semana passada. À resolução dos EUA
que exigia novas eleições e ajuda humanitária, Moscou contrapôs seu
próprio projeto de resolução.
O imbróglio deixa antever um
retorno à Guerra Fria. Que ela tenha como palco justamente a América Latina é
especialmente trágico. Afinal, a confrontação entre os Estados Unidos e a
Rússia foi oficialmente encerrada apenas em 2014, com a normalização das
relações diplomáticas entre EUA e Cuba.
Se houvesse um real interesse em
enviar ajuda humanitária para a população da Venezuela, agências da ONU, como o
Programa Alimentar Mundial, poderiam levar alimentos para o país – se
necessário, com um mandato do Conselho de Segurança. Organizações de ajuda
humanitária americanas e russas, bem como doadores de todo o mundo, poderiam
entregar suas remessas para a ONU em vez de usá-las para elevar a divisão
política dentro do país.
E ainda mais importante: o
governo da Venezuela poderia, ele mesmo, pedir ajuda à comunidade
internacional. Ajuda humanitária também poderia ser transportada a pé, por
voluntários, por outros pontos da fronteira além de Cúcuta – sem toda essa
cobertura midiática.
O atual uso político da ajuda
humanitária é tudo menos humanitário. Ele faz uma população inteira refém e
transforma quem presta ajuda humanitária em cúmplice de uma acirrada disputa
política de poder. Isso é um crime.
Na imagem: Venezuelanos
atravessem a fronteira para chegar a Cúcuta, na Colômbia
Sem comentários:
Enviar um comentário