É ético que existam, quando
tantos passam fome? Sua presença implica deformações econômicas, políticas e
sociais. Sua adulação pela mídia é aberração moral. Ao nos livrarmos deles,
daremos um enorme passo civilizatório
Farhad Manjoo | Outras Palavras | Tradução: Marianna
Braghini | Imagem: Colleen Kong-Savage
No último outono, Tom Scocca,
editor do blog essencial Hmm Daily,
escreveu um pequeno post que está mexendo com minha cabeça desde então.
“Algumas ideias de como tornar o
mundo melhor, requerem um pensamento cuidadoso e com nuances, sobre como melhor
equilibrar interesses comflitantes,” ele começou. “Outras, não: Bilionários são ruins. Nós devemos nos livrar deles
preventivamente. De todos eles.”
Scocca — escritor por muito tempo
no Gawker, até que o site foi abafado
por um bilionário — ofereceu um argumento direto para dar um tranco
nos mais ricos. Um bilhão de dólares é muito mais do que alguém precisa, mesmo
fazendo os maiores excessos da vida. É muito mais do que aquilo a que qualquer
um poderia alegar ter direito, não importa o quanto acredite ter contribuído
com a sociedade.
Em algum nível de riqueza
extrema, o dinheiro inevitavelmente corrompe. Na esquerda e na direita, ele
compra poder político, silencia dissidências, serve principalmente para
perpetuar uma riqueza cada vez maior, frequentemente sem relação com qualquer
bem social recíproco. Para Scocca, esse nível é evidentemente algo em torno de
um bilhão de dólares; com mais do que isso, você é irredimível.
Escrevo sobre tecnologia. Muito
de minha carreira exigiu uma pesquisa profundamente antropológica entre o reino
dos bilionários. Mas estou envergonhado em dizer que nunca tinha considerado a
ideia de Scocca — que se almejarmos, por meio de políticas públicas e sociais,
simplesmente desencorajar as pessoas de possuir mais de um bilhão, estaremos
construindo um mundo melhor.
Devo dizer que, em outubro,
abolir bilionários me pareceu fora de lugar. Soava radical, impossível, e mesmo
Scocca pareceu sugerir esta noção como um mero devaneio.
Mas o fato de esta ideia ter se
tornado um tema central da esquerda democrática revela, paradoxalmente, a
fragilidade política dos bilionários. Nos Estados Unidos, Bernie Sanders e
Elizabeth Warren estão propondo novos impostos voltados aos super ricos —
incluindo taxas especiais para bilionários. A deputada Alexandria
Ocasio-Cortez, que também é a favor de impostos mais altos sobre os ricos, tem
feito um
caso moral contra a existência de bilionários. Dan Riffle, seu assessor
político, recentemente mudou
seu nome no Twitter para “Todo Bilionário É Uma Falha Política.”
Semana passada, o Huffpost perguntou, “Bilionários
deveriam existir?”
Suspeito que se a questão está
recebendo tanta atenção, é porque tem uma resposta óbvia: Não: bilionários
não deveriam existir — com seu poder de engolir o mundo, conquistando esse
nível de adulação, enquanto o resto da economia se debate para sobreviver.
Abolir bilionários pode não
parecer como uma ideia prática, mas se você pensar na proposta como um objetivo
a longo prazo, à luz dos desarranjos econômicos mais profundas de hoje em dia,
pode ser tudo — menos radical. Banir bilionários — buscando cortar seu poder
econômico, trabalhar para reduzir seu poder político e tentar questionar seu
status social — é uma visão perfeitamente clara para sobreviver ao futuro
digital.
A abolição de bilionários poderia
tomar diversas formas. Poderia significar evitar que as pessoas tenham mais de
um bilhão em cash, mas provavelmente significaria maiores impostos sobre
rendimentos, riqueza e propriedades para bilionários e pessoas a caminho de se
converterem nisso. Essas ideias de políticas revelaram-se
muito populares ainda que provavelmente não sejam suficientemente
redistributivas para converter a maior parte dos bilionários em sub-bilionários.
Mais importante, o objetivo de
abolir bilionários iria envolver remodelar estrutura da economia contemporânea,
para que produza uma proporção mais igualitária entre os super ricos e restante
de nós.
A desigualdade está definindo a
condição econômica da era tecnológica. O software, por sua própria natureza,
leva a concentrações de riqueza. Por meio dos efeitos em rede, em que a própria
popularidade de um serviço assegura que ele se torne cada vez mais popular; e
de economias de escala sem precedentes — em que a Amazon pode fazer a
assistente digital Alexa uma única vez e vê-la trabalhar em todos os lugares,
para todo mundo — a tecnologia instila uma dinâmica de o-vencedor-leva-tudo em
grande parte da economia.
Alguns destes efeitos já
começaram a aparecer. Corporações
muito famosas, muitas de tecnologia, são responsáveis pelo grosso dos
lucros corporativos, enquanto a maior parte do crescimento econômico, desde os
anos 1970, foi
para um pequeno número de super-ricos.
Mas o problema está prestes a
piorar. A Inteligência Artificial está criando novas indústrias muito
prósperas, que não
empregam muitos trabalhadores. Se forem deixadas sem controle, tecnologia
criará um mundo em que alguns bilionários controlarão uma parcela sem
precedentes da riqueza global.
Mas a abolição não envolve apenas
política econômica. Pode também tomar a forma de vexame social e político. Há
pelo menos vinte anos vivemos uma relação amorosa devastadora com os
bilionários – um flerte em que o setor tecnológico avançou mais do que em
qualquer outro.
Assisti a uma geração de
esforçados empreendedores juntarem-se ao clube das três pontos [termo utilizado
para definir bilionários] e instantaneamente transformarem-se em super heróis
da ordem global, pelo que se considera ser sua sabedoria óbvia e irrefutável
sobre qualquer coisa e todas as coisas. Colocamos bilionários em capas de
revistas, especulamos sobre suas ambições políticas, saudamos suas grandes
visões para salvar o mundo e piscamos afetuosamente aos seus planos malucos
para nos ajudar a escapar — graças aos seus foguetes gigantes e
de-forma-alguma-sugestivos-freudianamente — para um novo mundo.
Mas a adulação que concentramos
nos bilionários obscurece o dilema moral no centro de sua riqueza. Por que
qualquer pessoa deveria ter um bilhão de dólares e sentir-se orgulhosa em
exibir seus bilhões, enquanto há tanto sofrimento no mundo? É como Alejandria
Ocasio-Cortez disse, num diálogo com Ta-Nehisi Coates: “Não afirmo que Bill
Gates ou Warren Buffet sejam imorais, mas um sistema quye permite a existência
de bilionários, quando há muitas partes do mundo em que as pessoas estão se
enchendo de verminoses porque não há acesso à Saúde pública está doente”.
Na semana passada, para ir mais
fundo na questão de se é possível ser um bom bilionário, eu falei com dois
especialistas.
O primeiro foi Peter Singer, o
filósofo da moral, de Princeton, que escreveu extensivamente sobre os
deveres éticos dos ricos. O Singer me disse que em geral, ele não achava
possível viver moralmente como bilionário, apesar de apontar algumas exceções:
Bill Gates e Warren Buffet, que se decidiram doar a maior parte de suas
riquezas para a filantropia, não teriam o desprezo de Singer.
“Eu tenho uma preocupação moral
com os indivíduos – nós temos tantos bilionários que não estão vivendo
eticamente, e não estão fazendo o melhor que podem, por uma larga margem,”
disse o Sr. Singer.
Além disso, há a complicação
adicional se, de fato, mesmo aqueles que estão “fazendo o bem” estão mesmo
fazendo o bem. Como argumentou
Anand Giridharadas, muitos bilionários aproximam-se da filantropia como uma
espécie de exercício de marca, para manter um sistema no qual conseguem manter
seus bilhões.
Quando um bilionário se
compromete a colocar dinheiro na política — seja para o seu lado ou o outro —
você deveria enxergar melhor de que se trata: um esforço para ganhar vantagens
sobre o sistema político, um esquema para causar um curto-circuito na revolução
e mitigar a revolta.
O que me leva ao meu segundo
especialista no assunto, Tom Steyer, o antigo investidor de fundos
multimercados, que está dedicando sua fortuna de bilhões de dólares para uma
onda de causas progressistas, como registro de eleitores, mudanças climáticas e
o impeachment de Donald Trump.
Steyer preenche todos os
requisitos de um liberal. Ele é
a favor de um imposto sobre fortunas e ele e sua esposa assinaram a Giving Pledge.
Ele não vive em luco excessivo — ele dirige um Chevrolet Volt. Ainda assim, eu
me perguntei quando conversei ao telefone com, semana passada: Não estaríamos
melhor se não tivéssemos que nos preocupar com pessoas ricas como ele tentando
alterar o processo político? Steyer foi afável e eloquente; ele falou comigo
durante quase uma hora sobre seu interesse em justiça econômica e suas crenças
em organizações de base. Em determinado ponto, comparei suas doações com as dos
Irmãos Koch, e ele pareceu genuinamente aflito com comparação.
“Eu compreendo os problemas reais
do dinheiro na política,” disse. “Nós temos um sistema que sei que não é certo,
mas é o sistema que temos, e nós estamos tentando o máximo possível para
mudá-lo.”
Eu admiro seu zelo. Mas se nós
tolerarmos os supostamente “bons” bilionários na política, inevitavelmente
deixamos as portas abertas para os ruins. E eles nos ultrapassarão. Quando o
capitalismo norte americano nos envia seus bilionários, não está enviando os
melhores. Está nos enviando pessoas que tem muitos problemas, e elas trazem
esses problemas com elas.
Elas estão trazendo desigualdade
e injustiça. Elas estão comprando políticos.
E alguns, creio eu, são boas
pessoas.
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