Da imprensa, filhos da imprensa.
Que é como quem diz filhos do ventre podre do capitalismo que sempre os pare e
os amamenta com o leite azedo do ódio em momentos de crise e falta de
capacidade do próprio sistema económico. Incapaz de produzir as condições económicas
para a satisfação das necessidades dos trabalhadores, confrontado com o
crescente descrédito e descontentamento, por vezes falham os seus mecanismos de
controlo ideológico de massas.
Miguel Tiago* | opinião
A educação viciada, a informação manipulada, o entretenimento degradante como cultura dominante, os presidentes palhaços, as falsas soluções reformistas, esbarram no limite imposto pelas condições materiais de vida dos trabalhadores. A história do capitalismo é a história do desenvolvimento dos meios de produção acompanhada pela concentração da riqueza. O empobrecimento relativo redunda, inevitavelmente, no empobrecimento absoluto. Portugal e muitos outros países ditos "democráticos", "ocidentais" ou "desenvolvidos" são um exemplo claro disso. Apesar de períodos de empobrecimento apenas relativo (aumento do fosso entre os mais pobres - que melhoram muito ligeira e gradualmente as suas condições de vida - e os mais ricos - que melhoram rápida e drasticamente as suas obscenas fortunas), o regime de acumulação capitalista acaba por impor aos trabalhadores o empobrecimento absoluto (perda de condições materiais), enquanto acentua o enriquecimento de uma minúscula elite.
Essa elite, contudo, domina os meios de comunicação social, a produção de conteúdos, o próprio Estado e os seus instrumentos. Ao ver-se incapaz de manter o contentamento nas massas trabalhadoras e nas camadas mais empobrecidas da pequena-burguesia, essa elite aposta no plano B: o da violência como forma de manutenção da sua ordem.
A conversão da social-democracia em fascismo é um processo, gradual, mas também com saltos qualitativos. Não é possível, porque existe uma realidade concreta de luta e de unidade entre os trabalhadores, impor a ditadura fascista de um momento para o outro. Mas é possível criar o caldo de cultura que se torna permissivo ou até fértil para o surgimento e ascensão do fascismo.
A aposta na criminalização da política, no descrédito das instituições democráticas - com o apoio dos seus próprios protagonistas -;
a aposta no sentimento de insegurança das populações - com jornais e canais de televisão concentrados explicitamente na divulgação do crime e na sua exaltação -;
a hostilização constante do movimento sindical e da luta dos trabalhadores, aliada ao silenciamento de importantes lutas, particularmente as de massas;
a substituição dos segmentos de notícias pelos de opinião, com opinadores escolhidos a dedo e que cacarejam as mesmas estafadas teses e ideias, um após outro após outro;
a contaminação de notícias com a falsificação, ou mesmo a invenção de notícias com vista a criar um determinado sentido de opinião pública;
o alinhamento total com os ditadores de extrema-direita e a promoção das suas opções políticas, apesar de um cínico desalinhamento com os comportamentos das personagens - como bem vemos no Brasil, nos Estados Unidos da América e até com as Filipinas, em que a boçalidade das figuras é criticada apenas como camuflagem mediática, enquanto que simultaneamente todas as suas opções são defendidas, como se os problemas desses tiranos fosse a forma e não o conteúdo;
a alimentação sistemática de abordagens racistas, por um lado, ou desacreditadoras das polícias e dos tribunais, por outro, assim criando a sensação de revolta contra as minorias que surgem como protegidas perante as polícias, quando a verdade demonstra que nem os polícias são intrinsecamente racistas, nem as minorias são intrinsecamente criminosas, mas iludindo a acção do sistema capitalista que, de facto, cria uma estrutura de poder racista e classista (independentemente das orientações dos seus agentes de campo) e económica e culturalmente segregadora perante os pobres e as minorias.
a atenção desproporcionada às aspirações da pequena-burguesia que se vê como progressista, mas que defende o entorpecimento das massas, a escravização das mulheres pelo proxenetismo, e que desvia lutas profundamente justas para movimentos inócuos e desligados da questão fundamental, que é política e de classe;
a busca incansável pelo ódio à representatividade popular - já debilitada e enviesada - com a promoção do fim da democracia como fonte de corrupção;
entre muitos outros mecanismos.
E não nos referimos aqui à vara que grunhe nos jornais assumidamente alt-right ou assumidos agentes mediáticos do neo-liberalismo mas fascizante e que visam pouco mais do que manter contente aquela fatia de fiéis seguidores que se vem de cada vez que um lemos esteves qualquer vomita o seu anticomunismo mais simplório.
Referimo-nos aos grandes jornais, ditos independentes, aos grandes canais de televisão ditos sérios, incluindo os públicos que, sendo ninho para sabujos e serventuários dos grandes grupos económicos, se dedicam afoitamente a mentir, deturpar, manipular e ocultar.
São os comentários aparentemente inocentes de pivots de telejornal, é a linguagem cunhada de ideologia em todas as colunas de jornal, é a competição constante entre quem consegue criar o mais degradante concurso de televisão, são as notícias que pintam terroristas como rebeldes libertadores e os trabalhadores que lutam como potenciais terroristas, são as notícias que criam personalidades onde antes não havia sequer um tumbleweed, são as promoções de visões dogmáticas e idealistas dos vários aspectos da vida, que retiram da esfera da reflexão e da ciência a opinião das massas e a colocam na esfera da crença, irracional e religiosa.
A comunicação social portuguesa, com a grande ajuda dos sucessivos governos PS, PSD e CDS, está a fazer o frete ao grande capital: cria o caldo de cultura que está apto a receber as sementes do fascismo e o desprezo pela democracia - ao invés de entender a insuficiência do regime "democrático" e a necessidade de o aprofundar, uma parte da população compreensivelmente desiludida é conduzida para abominar a pouca democracia que tem, guiada pelos pseudo-ideólogos da comunicação social e da academia. O caldo de cultura está a consolidar-se e só encontra travão na luta organizada dos trabalhadores e dos revolucionários.
Dirão que também os movimentos chamados identitários fazem esse trabalho. Direi que, acaso como já sucede em alguns casos, sejam desligados da luta mais vasta pela superação do capitalismo e pela organização férrea do proletariado, tornam-se enfeites, divisões, e até reaccionários. As lutas pelos justos motivos sexuais, emancipatórios, raciais, ambientais, e outros, se não for afluente do rio caudaloso da luta operária, torna-se numa barragem, numa drenagem desse grande rio pelo simples facto de alimentarem a ilusão de que o capitalismo precisa de ajustes e não de destruição. No momento da ascensão de uma força fascista apoiada pelo grande capital, tais movimentos sucumbirão se não forem parte da luta pelo fim do capitalismo, engolidos pela repressão da ditadura violenta dos monopólios.
A comunicação social está a fazer
esse trabalho de sapa dos grupos monopolistas: cria primeiro o grande
reservatório de massas tolerantes ao fascismo e mais tarde fará surgir a força
política que os representa. Os portugueses têm resistido e, mesmo neste contexto
adverso, têm derrotado os ensaios da comunicação social e desprezado os
venturas e outros palhacitos que se acham capazes de ser homens fortes da
demagogia fascista quando mais não são que fracos oportunistas. Essa realidade,
como todas, não é estática. Os primeiros a serem abatidos e perseguidos quando
uma força fascista se posiciona no poder, são os comunistas. Por maioria de
razão, esses são os primeiros e os últimos a fazer-lhe frente. Mas nunca sozinhos.
*em Manifesto 74
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