terça-feira, 26 de março de 2019

SÍNDROMA DE CORPO INERTE



1- A contraofensiva da hegemonia unipolar ao sabor do “the americans first” ciosa do papel do petrodólar, manifesta-se a pleno vapor e à escala global, no momento em que os Estados Unidos passam a 1º produtor mundial de petróleo e gaz de xisto.

Neste momento, com todos os instrumentos em progressão (diplomáticos, de inteligência, no âmbito do seu relativo domínio nas novas tecnologias e consolidando o “lobby” energético-armamentista que tradicionalmente suporta os republicanos) os Estados Unidos pretendem ser o mais evidente “reitor” das tão frágeis quão subservientes articulações de relacionamento internacional em função das aptidões hegemónicas...

Capitalismo produtivo, proteccionismo e um novo vigor vinculativo do sistema de choque brutal e influência, constituem eixos de acção no âmbito da hegemonia unipolar, versão Donald Trump e isso conduziu, mais que antes, à simplificação entre contrários, numa confrontação entre dois grupos de contingência: Estados Unidos – China.

A versão de capitalismo financeiro transnacional está em recuo, salvo em relação ao papel dos que accionam o terrorismo e o caos em algumas regiões pontuais do globo, como o caso dos redutos de resistência nas Américas (Cuba, Venezuela e Nicarágua).

Essa “simplificada” redundância coroa em função das contramedidas dos Estados Unidos em curso, a visão da contradição hegemonia unipolar versus multilateralismo!

 
No caudal das opções, ninguém escapa à feroz batalhada IIIª Guerra Mundial, duma forma ou de outra, a começar pelos imperativos sistemas de vassalagem dum lado e de persuasiva integração articulada do outro…

Mesmo assim, o capim vai sendo pisado pelos dois elefantes, provocando por vezes dramáticas alterações de curso, como é por exemplo o caso angolano, na ultraperiferia e na “reserva de matérias-primas e mão-de-obra barata” a que é remetida África!...

2- Os países que albergam bases estado-unidenses, de acordo com o presidente Donad Trump, vão passar a pagar os “bons serviços” da protecção hegemónica, algo que trará elevados custos às componentes europeias da NATO, a alguns países latino-americanos e ao Japão.

Quem se aninhar à protecção, terá de pagá-la e os “caloteiros” serão penalizados, conforme os “avisos à navegação” de acordo com a recém-inaugurada fórmula “Cost Plus 50”...

Trata-se de mobilizar recursos em jeito de contraofensiva, em torno da pirâmide estrutural do projecto hegemónico, de forma a prevenir a persuasão chinesa das “novas rotas da seda” que se vão estendendo por dentro do supercontinente euroasiático desde os portos chineses do Pacífico, até aos portos da costa atlântica da União Europeia.

Nessa mobilização de recursos pelo prisma do Presidente de turno nos Estados Unidos, é inevitável o salto da indústria armamentista, ela própria conectada às indústrias energéticas, que providenciará a aplicação acelerada de novas “aliciantes”, tendo em conta os impactos das novas tecnologias, aumentando os gastos nas novas armas e conceitos militares, refazendo arsenais quando o mundo tanto necessita de construir civilizadamente a paz e o respeito inadiável para com o planeta.

As tensões na Europa do Leste, em particular entre o Báltico e o Mar Negro com fulcro continental na Ucrânia, estão na ordem do dia…

Os Estados Unidos procuram inviabilizar no Báltico o projecto Nord Stream 2, colocando em cheque a Alemanha, tentando persuadir ao mesmo tempo a venda de seu petróleo e do seu gaz, a serem transportados por navios num serviço costa-a-costa por dentro do dilecto espaço físico-geográfico da NATO, o Atlântico Norte.

Os Estados Unidos aumentam a pressão do petrodólar sobre o euro, de forma a procurar reforçar as duas moedas sincronizando-as em torno de projectos estritamente comuns…

Os Estados Unidos reforçam o papel de charneira da Polónia, dos países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e da Ucrânia, mobilizando os vassalos da NATO em função da manobra que implica a concentração de unidades estratégicas junto às fronteiras com a Federação Russa, tida como ariete ocidental das transcontinentais novas rotas da seda…

Os Estados Unidos alimentam um contencioso especial de manobras e veladas pressões para com a Turquia, atraída para o campo multilateral a ponto de cometer o “sacrilégio” de adquirir armamento russo de quarta geração, rompendo com os cânones da NATO…

Os Estados Unidos impulsionam seus meios no Iémen, desde a coligação em torno da Arábia Saudita, até à Al Qaeda, por que se é obrigado a transigir no Golfo Pérsico (agora face à aproximação do Iraque ao Irão), pretende que o Mar Vermelho continue a ser um “mare nostrum”…

Os Estados Unidos aumentam a sua presença reorganizando suas forças e suas bases na Europa do Leste, Médio Oriente Alargado (onde o Irão tende a ser um dos alvos principais para o apêndice fulcral que constitui Israel reforçado pelas monarquias arábicas sunitas wahabitas)…

… e mesmo assim os Estados Unidos estão em vias de se retirar do Afeganistão, quando a Ásia Central baldeia a favor das novas rotas da seda…

3- No extremo oriente e África a manobra está também convulsiva:

A China reforça aceleradamente o seu potencial militar e de intervenção nos mares e regiões circundantes…

A China joga procurando diluir o contencioso radical entre o Paquistão e a Índia no Caxemira, quando apesar de tudo os dois estados passaram a ser membros activos da Organização de Cooperação de Shangai.

A China atrai à sua causa o Japão e a Coreia do Sul, países industrializados com capacidades de expansão nas suas conexões de relacionamento económico internacional, que não vão poder recusar, por causa da dinâmica de suas opções, participação nas novas rotas da seda, apesar das âncoras que os Estados Unidos lhes colocaram desde a IIª Guerra Mundial e Guerra da Coreia…

A China, abrandando o potencial de sua presença na ultraperiferia que é África, começa a investir na Síria, no Irão e no Iraque, reforçando as conexões a sul das novas rotas da seda, alargando a amplitude dos projectos já em curso na Ásia Central e Sibéria, (neste caso no miolo geoestratégico da Federação Russa, entre o leste e o oeste)…

A China cria a sua primeira base militar geoestratégica, no Djibouti, à entrada do Mar Vermelho e acesso à passagem do Suez, no Egipto, de forma a reforçar a vigilância sobre as conexões marítimas das novas rotas da seda entre o Índico Norte e o Mediterrâneo Oriental…

A China acaba de queimar os últimos cartuchos dos homens-de-mão que controlavam os clãs coloniais “híbridos” de Macau e de Hong Kong em África, (entre eles Sam Pa cuja visibilidade maior, por via do China International Found, foi em Angola), de forma a começar a estender os interesses de suas poderosas empresas estatais que numa primeira fase se começaram a implicar na África Oriental (Etiópia, Djibouti, Quénia e Tanzâna), em dircção ao miolo do continente (Grandes Lagos, Republica Democrática do Congo e Zâmbia)…

4- Nas Américas a batalha acende-se.

A administração de Donald Trump está a mobilizar as oligarquias tradicionais latino-americanas da Doutrina Monroe e procura isolar os focos que procuravam integração e articulação, como Cuba, Venezuela e Nicarágua, em manobras de contingência geométrica e intensidade variável, mas procurando bloquear, comprimir ou isolar, onde não conseguem vencer…

De facto a potencialidade de novas rotas da seda conectando o México ao Cabo Horn nunca existiram e as novas rotas da seda idealizadas pelo comandante Hugo Chavez, conectando em projectos articulados e integração a Venezuela ao Cabo Horn, foram guardadas nos baús, face à sua ofensiva…

O projecto do novo canal na Nicarágua enfrenta obstáculos de toda a ordem, alguns deles inesperados, tornando-se em mais um projecto protelado nas Américas…

Mesmo na ultraperiferia que são os pequenos estados insulares das Caraíbas, os termos da pressão dos Estados Unidos tornaram-se arrogantes nos exercícios que são distendidos em Porto Rico e no Haiti, tal como aliás em relação à América Central…

Os Estados Unidos tiram partido do que estão brutalmente a realizar contra as iniciativas energéticas lançadas pelo Comandante Hugo Chavez (PDVSA, CITGO, PETROCARIBE e sistema hidroeléctrico venezuelano em rede), sabendo que as conexões integradoras bolivaianas são inteligentes linhas resistentes aos projectos da hegemonia…

Nas Américas os BRICS sofreram violação com a eleição do fantoche Bolsonaro no Brasil e o multilateralismo está obrigado a uma porfiada e resoluta defensiva, desde a Bolívia a Cuba, comprimidas que também estão as organizações que compõem o sistema social progressista nas Américas, com uma única resposta em contrapartida: o México, que renunciou ao neoliberalismo e sente os efeitos na fronteira comum com os Estados Unidos, fronteira essa alvo das medidas de barragem em desespero de causa, do âmbito do “the americans first”…

5- Mesmo na ultraperiferia africana as coisas não se passam pacificamente em termos geoestratégicos e a comprovar estão vários casos dramáticos: Sahel, Sudão e… Angola… com uma África do Sul, a única componente africana dos BRICS, a constituir-se num caso aparte ainda que secundário em relação à dinâmica de tensões nas rotas marítimas internacionais…

Na África do Norte, a Líbia não mais se recuperou e a Argélia entrou numa fase de incertezas de prognóstico reservado, enquanto o Egipto garante aos Estado Unidos, desde que os militares voltaram ao poder, uma fluência inteligente adequada, tendo em conta o carácter do canal do Suez…

No Sahel após a destruição da Jamahiriya Árabe Líbia em 2011, distenderam-se as linhas de disseminação fundamentalistas-sunitas-wahabitas do Senegal à Somália…

O AFRICOM multiplica, face a essas redes muito móveis, as suas pequenas articulações operativas em jeito de resposta, mantendo a pressão“soft” duma guerra psicológica manipulada e cada vez mais abrangente, com “parceiros africanos” impotentes e sem melhor alternativa, ao mesmo tempo que contribui para a defesa das raras infraestruturas geoestratégicas dos seus vassalos europeus, como acontece com o urânio da AREVA no neocolonizado Níger (Agadez)…

Na África do Oeste (Sahel adentro), a neocolonial “FrançAfrique” é peça fundamental nos parâmetros da hegemonia unipolar em África, controlando sobretudo um sistema económico e financeiro de padrão neocolonizado que interessa às conexões da NATO com o AFRICOM, expostas aliás recentemente, ainda que de forma breve e acintosa, por alguns membros do governo italiano…

Os interesses económicos e financeiros da França são em África de tal maneira poderosos e de tendência aglutinadora que o seu feudo se estende ao poder do Paribas sobre as redes de bancos comerciais europeus, africanos e até estado-unidenses, em matéria de transacções energéticas no continente e dele para fora…

O Sudão pagou o preço da resistência: foi dividido e agora está absorvido pelo caudal de interesses das monarquias arábicas e de Israel, fornecendo contingentes para a guerra no Iémen, ainda que espreite a viabilidade de outras janelas, como aconteceu recentemente na Síria…

A região produtora de petróleo tornou-se “independente”, fraccionando o Sudão em desrespeito aos postulados da Conferência de Berlim, enquanto a saída para o mar do petróleo para exportação é feito pelo Norte, via Porto Sudão, no Mar Vermelho, pressionando com esse fracionamento os interesses chineses…

Em Angola se acabaram os efeitos perniciosos dos “lóbis” interconectados de Macau e Hong Kong, de tipologia social-democrata, a China entrou em perda precisamente na altura do alinhamento angolano até agora sem melhores alternativas, com o capitalismo produtivo segundo Donald Trump, que está a aproveitar a ofensiva contra a corrupção que foi sobretudo implantada no âmbito do capitalismo financeiro transnacional que as administrações democratas neoliberais, particularmente a de Barack Hussein Obama, injectaram previamente desde antes do Acordo de Bicesse a 31 de Maio de 1991, desde Março de 1986, há 33 anos…

Não foi por mero acaso que a saída do Presidente José Eduardo dos Santos e a entrada do Presidente João Lourenço, foi um processo contemporâneo às tensas transformações internas nos Estados Unidos (entrada do republicano Donald Trump, protecionista e reitor do capitalismo produtivo e a saída do democrata Obama, reitor do capitalismo financeiro transnacional, neoliberal e interessado directo na expansão de caos, terrorismo e desagregação a fim de, com isso, abrir espaço aos interesses transnacionais)…

A “reconversão” angolana está a ser feita com visibilidade “dramática”, não sendo transparente na sua profundidade e nela nos seus enredos humanos, ou seja na profundidade dos nexos dos interesses económicos e financeiros, tendo em conta que, apesar de estar inserida numa ultraperiferia, Angola continua a ser uma peça importante em relação ao fornecimento das matérias-primas e alvo de ferozes disputas das potências geoestratégicas com ementas tão diferenciadas (hegemonia unipolar versus multilateralismo), o que passa já por tensões internas nas suas elites, quase sempre em “circuitofechado”…

A intensidade do jogo que está a ser feitos sobre o capim em que se tornou Angola enquanto órfão dum socialismo que não houve, com todo o tipo de ingerências e manipulações que aproveitam as portas escancaradas do país, esbate-se na forja do projecto de criação duma elite angolana que tende a evoluir para a construção duma oligarquia, ainda que tudo isso esteja ainda longe de atingir maturação…

Neste momento o processo angolano tende a afastar-se do multilateralismo e enquadrar os processos da hegemonia unipolar, o que é decorrente da deriva do processo histórico interno, de há 33 anos a esta parte…

O papel adjacente e “transversal” de inteligência económica e financeira de Portugal, nutrindo processos de assimilação que advêm desde o tempo do tráfico de escravos por via da arregimentação de clãs e famílias “afins”, vão procurando alinhar no comprometimento dessas elites que em parte são compostas de famílias “tradicionais” aptas aos circuitos do poder desde então instalado em Luanda (desde os tempos das feitorias transformadas em portos de embarque de escravos na costa ocidental africana)…

Sobre os laços que vêm de longa a avassalada luso-ingerência sócio cultural, o regime oligárquico português trabalha como poucas ingerências para além da inteligência económica, na formatação mental dos angolanos e na superestrutura ideológica afeita às conveniências das patrocinadoras aristocracia financeira mundial e avassalada social-democracia portuguesa, ela própria constituída em regime desde o 25 de Novembro de 1975, ambas em níveis distintos, mas aptas à permissibilidade de “correias de transmissão” da NATO, da União Europeia e do AFRICOM…

Compreendem-se bem os silêncios, por exemplo em relação às prementes necessidades de renascimento africano, em relação à antropologia e à história das raízes transatlânticas do movimento de libertação desde a revolução dos escravos do Haiti (as elites angolanas são particularmente avessas ao conhecimento sobre o Haiti) e em relação à minha proposta de geoestratégia para um desenvolvimento sustentável com fulcro na região central das grandes nascentes…

6- Com toda a sensibilidade do sul, sobretudo África manifesta o síndroma de corpo inerte própria de capim exposto às elefantinas tensões globais contemporâneas entre a hegemonia unipolar e o multilateralismo e não é por acaso que não surge qualquer manifestação de novas rotas da seda por dentro do seu miolo… tudo se passa à ilharga e África até parece um contingente que não existe, sobrevivendo de tragédia em tragédia em profunda crise existencial!

Mesmo as poucas iniciativas infraestruturais estão desgarradas, sem força de integração e articulação, ainda que estejam inseridas em regiões como a da SADC, onde a África do Sul continua a gerir mais os interesses próprios no âmbito do “lóbi” dos minerais e cartel dos diamantes, assim como os dum quadro internacional alargado no Atlântico Sul e Índico Sul remotos, até à Antártida!...

As atávicas “missões internacionais” da África do Sul são visões contemporâneas da velha trilha da British South Africa Company, sob o génio de Cecil John Rhodes (“do Cabo ao Cairo”), pelo que nem com a entrada nos BRICS o poder económico e financeiro eminentemente elitista e indexado ao “loby” dos minerais e ao cartel dos diamantes, mudou de feição no que a África diz respeito…

O fenómeno Botswana comprova-o, como se comprova os raios de influência que fluem persuasivamente a partir desse Botswana enquanto plataforma, para uma região de expansão com 519.000 km2, que conforma desde já o KAZA-TFCA (Kavango Zambezi Trans Frontier Conservation Area), com os olhos nas kimberlites angolanas que se espalham mais a norte, incluindo as kimberlites que existem no solo onde se travaram alguns dos cruciais confrontos no âmbito da batalha decisiva do Cuito Cuanavale, em que o “apartheid” foi vencido, soçobrando em todos os seus projectos desumanos e ambições até se eclipsar…

As imensas dificuldades das elites africanas actuarem sobre as raízes de suas crises existenciais profundas, estão muitas delas a descoberto, conferindo noção às ambiguidades, fragilidades e vulnerabilidades tropicalizadas (próprias de relógios e motores a dois tempos) dum tal sistema democrático-representativo nas condições de elites que disputam espaço nas conjunturas duma ultraperiferia…

Os equilíbrios globais estão cada vez mais longe de ser alcançados e as tensões no sentido da barbárie sobrepõem-se ao que, no quadro duma lógica com sentido de vida se poderia já hoje estar a realizar para a afirmação duma civilização global!

Face a um cada vez mais próximo abismo, cujos sinais são a cadência de fenómenos naturais radicalizados e cada vez mais radicalizados actos de barbárie humana, face a uma África que, conforme testemunhava Agostinho Neto, continua hoje a parecer “um corpo inerte onde cada abutre vem depenicar o seu pedaço”, a consciência crítica de que me animo permite-me avisar, ainda que minha sobrevivência o tenha sido sempre bem no âmago do síndroma de corpo inerte: amanhã será tarde demais!

Martinho Júnior - Luanda, 22 de Março de 2019, dia mundial da água

Imagem: … sendo água, vida, há um caldo que se entorna…

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