Mia Couto esteve em Luanda no
passado sábado, 6 de Abril, numa sessão intensiva de trabalho, com os
escritores José Eduardo Agualusa e Cynthia Perez, para criaram três livros
infantis apresentados na Rádio LAC, uma iniciativa do Goethe-Institut Angola. O
Jornal de Angola entrevistou o escritor moçambicano que acaba de publicar “O
Bebedor de Horizontes”, um livro que desenterra do passado colonial a figura do
Imperador Ngungunyane. Com este livro, o autor propõe que se olhe para o
passado de modo menos politizado. A excessiva politização da história que os
africanos vão fazendo mostra-nos, segundo o autor, que não houve tempo (e se
calhar não houve vontade) para pensar que tipo de Estado nos convinha erguer.
Actualmente existe uma mudança positiva, embora, diz o escritor, tenha chegado
tarde. Mas resta pouco espaço para regimes autoritários, mesmo dos que exercem
repressão em nome da sua pretensa legitimidade histórica. Assim pensa o autor
moçambicano, que tem em
Luandino Vieira , o primeiro escritor que o desafiou na busca
de uma escrita que integrasse a oralidade.
Mia Couto adoptou este pseudónimo
devido à sua paixão pelos gatos e porque o seu irmão não sabia pronunciar o seu
nome. Ainda gosta de gatos? Tem-nos em casa?
Gosto de animais, mas não como
criaturas domésticas. Gosto de bichos mas quero manter com eles uma relação em
que espero que eles sejam animais e, assim sendo, me ajudem a ser mais humano.
Tenho cães, se é que se pode dizer que se "tem" cão. E por essa
razão, os cães é que fazem as suas escolhas. E escolheram não ter a companhia
dos gatos.
Com 14 anos de idade, publicou
poemas no jornal Notícias da Beira. Em 1983, publica o seu primeiro livro de
poesias Raiz de Orvalho. Você próprio um dia disse: "Eu sou da
poesia". Como e de onde nasceu esse afecto pela Poesia?
A poesia vivia em minha casa. O
meu pai era poeta, não apenas porque escrevia versos. Mas porque vivia de forma
poética. O que quer dizer que ele ensinou-nos a dar valor às coisas que
passavam desapercebidas. Às coisas que, na aparência, não tinham valor.
Reaprendi essa lição quando encontrei a poesia de Manoel de Barros que mostra
como descobrir beleza no meio da poeira.
No Poema Da Despedida, você diz:
"Nenhuma palavra alcança o mundo, eu sei ainda assim,escrevo."
Contudo, a sua palavra alcançou o Mundo, tendo a sua obra sido traduzida em
mais de 20 países. Além do mérito reconhecido e do percurso editorial, valeu a
pena ter escrito?
Valeu. Eu acho que nenhuma outra coisa que eu faça me dá tanto sentido de realização. Há algo que insisto em dizer aos mais jovens. Não busquem fama, nem glória. O que vale é o gosto que temos em ser escritores, o que vale é termos amigos e não fãs.
No livro Mar Me Quer, o narrador
fala assim para Luarmina: “Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo
rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga.” Você acredita na eternidade,
não só do homem, mas de toda a Vida?
A eternidade é alcançada em
momentos de absoluta felicidade. São instantes em que podemos ser inteiros. E
isso quase sempre se faz em harmonia com os outros, com quem amamos, com o que
nos comove por uma razão de beleza.
João Passarinheiro, em Todo o
Homem é Uma Raça, diz: “Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade
individual.” Você, enquanto biólogo, pode explicar porque é que o ser humano,
dono de tanta beleza que é a cor da pele, se implica tanto com a sua
diversidade biológica?
Cada vez mais, a ciência nos
ensina que grande parte do nosso corpo não é composto por células humanas. Nós,
humanos, somos feitos por outros organismos que não tem material genético
hu-mano. Não vivem connosco apenas. Nós somos eles. Esta descoberta tem
repercussões fundamentais no modo como nos pensamos e como pensamos o mundo. A
biodiversidade não está fora de nós. Está dentro. Há muito que a ciência
biológica sabe que, quando se fala de espécie humana, o conceito “raça” não se
aplica. Há mais diversidade dentro de um grupo que chamamos da mesma raça do
que entre grupo e outros. O que quer dizer que dentro da chamada raça branca (é
só um exemplo) há mais diversidade genética do que entre essa raça e qualquer
outra raça. Aquilo que chamamos de diversidade é apenas um outro nome da
própria vida.
O seu livro Cronicando mereceu um
prémio da Organização dos Jornalistas Moçambicanos, em 1989. Além do seu
carácter moralizante, as suas crónicas e intervenções públicas fazem também a
denúncia da pobreza e da corrupção em Moçambique. A que se deve essa sua preocupação
com as violações dos direitos humanos?
Não sei ficar calado, não sei
aceitar a injustiça. Sei o que devo fazer como escritor. A minha obrigação de
cidadão não se esgota no exercício da literatura. Mas não confundo a minha
intervenção cívica com o que faço como escritor. Em Moçambique, colaboro com
jornais, vou a escolas, intervenho nas redes sociais e nos espaços de debate
público. O mais importante não é tanto o que se defende nesse espaço, mas a
sugestão de que o importante é a discussão franca e aberta de ideias. E não o
ataque pessoal, não a imposição da razão pela autoridade e pelo medo.
Numa entrevista, você diz que “O
dinheiro não está ligado nunca às coisas do espírito. É a antítese do mundo
real, onde tudo é comprável e as pessoas têm sempre um preço. Mesmo em
Moçambique, apesar da importância que se atribui aos espíritos e à relação com
os antepassados.” O falhanço na edificação do Estado africano terá algo a ver
com a desatenção dada ao espírito, nas suas várias nuances (Educação, Cultura,
etc.)?
Eu creio que os países africanos
não tiveram tempo para completar essa edificação de um Estado central. Não
chamaria a isso um “Estado Africano” porque não sei bem se temos um consenso
sobre o que isso seria. Mas nós estamos também a pagar o preço de termos
importado um modelo de Estado copiado dos Estados colonizadores. Não houve
tempo (e se calhar não houve vontade) para pensar que tipo de Estado nos
convinha erguer. Mas tudo isso não pode ser discutido se não aceitarmos que os
nossos modos de produzir riqueza não mudaram tanto assim depois das
independências. Extraímos matéria prima que exportamos para o Primeiro Mundo
que depois nos revende de forma manufacturada. Essa era a base da economia
colonial.
Será essa desatenção ou aversão
que leva os políticos no poder a rejeitarem as propostas e as vozes críticas
dos intelectuais africanos?
Eu creio que existe uma mudança
positiva. Chegou tarde, em muitos casos. Mas resta pouco espaço para regimes
autoritários, mesmo dos que exercem repressão em nome da sua pretensa
legitimidade histórica. As novas gerações dos países africanos não viveram a opressão
colonial. Muitos já não fizeram a luta pelas independências. Esses jovens estão
ligados ao mundo, sabem como funcionam os outros países e como a liberdade se
pode conquistar. A questão já não é dos intelectuais. A questão também não é a
forma como os regimes rejeitam as vozes críticas. A questão é inversa: como as
vozes críticas rejeitam os poderes autoritários.
Será essa constatação que o
levou, tal como Pepetela, a afastar-se da actuação política directa? Para si,
quem são o herói e o vilão hoje em Moçambique?
Fui membro da FRELIMO durante anos. Muito do que sou aprendi nessa luta. Mas devo dizer que, mais do que os lemas políticos, havia imperativos éticos que me motivaram. Um deles era este: a FRELIMO defendia o princípio de que um militante devia ser o primeiro no sacrifício e o último nos benefícios. Durante um tempo isso foi verdade. Mas depois, tudo se adulterou. E hoje quem está no poder acredita ser legítimo servir-se e não servir os outros. Não acontece evidentemente em Moçambique apenas. Deixei de ser membro de um partido mas não abandonei a defesa dos princípios éticos que me fizeram ser militante.
Um personagem de Germano Almeida
diz num dos seus romances que a falta de pontualidade é um dos factores de
atraso do Continente. Já Samora Machel vivia preocupado com este problema.
Esta falta de pontualidade que Pepetela diz ser para os dirigentes vincarem o
seu poder, não terá nada a ver com a idiossincrasia do africano? Como é que
podemos mudar este modo de pensar e agir?
Não creio que se possa falar da
idiossincrasia do “africano”. Há milhões de africanos e cada um tem a sua
identidade pessoal. Eu acho que a pontualidade é algo que só existe quando é
criado e alimentado numa dada sociedade. Para isso há que dar o exemplo. Quando
os nossos pais nos ensinarem o valor do tempo, quando os nosso chefes derem o
exemplo na pontualidade então deixaremos para trás isso que pensávamos ser da
nossa idiossincrasia. E repare, a pontualidade não tem a ver com o Tempo. Tem a
ver com o respeito pelos outros, por esses que são obrigados a ficar à espera.
O seu romance O Bebedor de
Horizontes faz uma retrospectiva ficcional da História de Moçambique, indo
desenterrar ao passado colonial a vida de Ngungunyane, preso em Dezembro de
1895 em Chaimite.
Porque é que a figura do Imperador Ngungunyane o apaixonou?
Tem esse livro alguma lição para os poderes estabelecidos em Moçambique?
Existem vários recados nessa
obra. Talvez o mais importante seja que devemos olhar para o nosso passado de
modo menos politizado. A nossa História oficial, aquela que ensinamos na
escola, é uma narrativa simplificada que deitou fora outras narrativas
paralelas mas que não serviam certos interesses. A nossa história está cheia de
histórias silenciadas. É muito mais rica e complexa do que aquilo que surge no
discurso patrioteiro que nos ensinaram.
A Água e a Águia é o seu mais
recente livro infantil saído no ano passado. E não é o único. Que ingredientes
deve ter uma boa estória para crianças?
Deve ter beleza, como qualquer obra literária. Existe uma tendência para minimizar a capacidade de entendimento das crianças. Então, explica-se o que só pode ser sugerido, simplifica-se aquilo que imaginamos que as crianças não entendem. O resultado são obras moralistas e paternalistas que perdem o mistério e o fascínio que as crianças naturalmente buscam.
Eu responderia que, quando
escrevo, sou mulher e sou pobre. Como sou qualquer outro personagem dos meus livros.
Eu vejo que a prostituição é bem mais vasta que o comércio que erradamente se
atribui apenas às mulheres. Raramente se fala em prostitutos mas há tantos ou
mais homens do que mulheres que se prostituem. E falo apenas do ponto de visto
da venda do corpo para o sexo. Mas existe a prostituição moral e essa não é
domínio exclusivo dos po-bres. Quantos são hoje ricos porque se prostituíram? A
fuga, como você lhe chama, depende muito da construção de uma sociedade que se
constrói com verdade sobre valores morais.
Luandino Vieira teve alguma
influência no seu estilo de “falinventar” o português e na reinvenção da
narrativa africana, como observamos nas Estórias Abensonhadas?
Sem dúvida. Foi Luandino o
primeiro escritor a me desafiar na busca de uma escrita que integrasse a
oralidade. Faço questão de invocar o nome deste que foi um dos instigadores do
meu caminho. Há escritores que se esquecem dos seus mestres. Quando se tornam
mais conhecidos deixam de mencionar aqueles que foram as suas referências. Não
será o meu caso.
Em 2014, Mia Couto ganhou o
Prémio Neustadt International Prize for Literature, considerado o Nobel
americano. Você acredita que se não tivesse sido traduzido para o inglês, teria
alguma vez ganho este prémio? Como é que podemos, nós, escritores africanos de
língua portuguesa, sair do gheto editorial, quando não temos possibilidades de ser publicados no estrangeiro?
Tem razão. Se eu não tivesse sido
publicado em inglês, (e diria por certas editoras) eu não teria visibilidade
para que o júri do Prémio Neustad tivesse pensado no meu nome. É uma injustiça?
Sim, é. Mas todos sabemos da hegemonia da língua inglesa e de como os prémios
actuam associados aos mercados do livro. Mas temos que deixar de chorar. Eu
creio que te-remos que organizar nos nossos próprios países formas de nos
tornar mais visíveis. Os africanos podiam explorar melhor plataformas de
visibilidade internacional como é, por exemplo o Prémio Camões. Mas na verdade,
não nos interessamos em prestigiar esse galardão. Quais são os países africanos
que contribuem financeiramente para este prémio? Nenhum. Queixamo-nos muito e
fazemos pouco. É preciso dizer que para esse prémio Neustad eu fui proposto por
uma escritora africana, de nacionalidade etíope. Temos que ter um trabalho
paciente mas firme de nos valorizar enquanto continente.
Líderes dos processos são
determinantes
Quando recebeu o Prémio Camões,
você celebrou “o que há ainda por fazer, (...) para que seja mais viva e mais
verdadeira esta família que celebramos na nossa língua comum”. Porque é que a
literatura dos PALOP é tão cara e tem tão pouca circulação nos nossos países e
como ultrapassar esta situação?
Essa pergunta deve ser dirigida aos que mandam no mercado editorial. Os governos demitiram-se desta matéria. É um daqueles assuntos em que os Estados deram um passo atrás e entregaram tudo à lógica dos mercados. Tenho esperança que os livros possam circular por outras vias.
Após o desastre causado pelo
Ciclone Idai, o representante da Renamo em Portugal considerou que o Governo falhou
no combate à prevenção. Como biólogo, você concorda ou discorda deste
pronunciamento? Porquê?
Eu creio que não seja muito
edificante procurar, neste momento, culpas e desculpas. Ainda por cima, fazendo
isso roupa suja a ser lavada fora de casa. Moçambique tem que se preparar de
forma muito séria e consistente. Ocorrem em média três ciclones de grande
escala por ano no Canal de Moçambique. Alguns destes ciclones atingem
inevitavelmente a costa de Moçambique que é muito extensa e muito vulnerável.
Moçambique tem que ter sistemas de prevenção e resposta instalados e isso é
urgente e uma das lições que se deve retirar desta ocorrência. Mas é preciso
dizer que a escala deste ciclone e das enxurradas que se seguiram é algo de
proporções que superam as capacidades da maior partes dos países.
Angola e Moçambique têm uma
experiência política muito parecida. Filipe Nyusi e João Lourenço estão ambos
empenhados no combate sem tréguas contra a corrupção. Que diferença representa,
neste combate, a leveza das instituições de controle e fiscalização da
economia, nascidas de uma situação de monopólio dos poderes políticos pelo
Executivo?
As pessoas que lideram os
processos são, num dado momentos, determinantes. E que estes processos sejam
consistentes; eles não podem depender de vontades pessoais. Deve ser um
processo institucional. Mas deve ser também um combate pela criação de valores
morais, desde a mais tenra idade. É preciso entender que se deixou que a
corrupção se convertesse num sistema que é vivido desde casa e desde a escola
como a normalidade.
José Luís Mendonça | Jornal de
Angola | Foto em JA
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