Cerca de 310 mil é o número
estimado de pessoas em Angola que estejam a viver com VIH. Destes, 190 mil são
mulheres, muitas em estado de gestação. A revelação é da directora do Instituto
Nacional de Luta Contra a Sida, Maria Lúcia Furtado. A responsável sublinha
que, no país, cerca de 70 por cento das pessoas infectadas só se dirigem às
unidades hospitalares quando estão com sinais e sintomas muito evidentes da
doença, o que revela falta de cultura de fazer o teste com antecedência, sem
depender de sintomas. Em entrevista ao Jornal de Angola, a especialista em Saúde Pública avança
ainda um erro muito frequente: muitos homens negam-se a fazer o teste de VIH,
porque se apoiam no já feito pelas esposas, quando ficam grávidas.
Confirma informações que apontam
para o aumento considerável do número de mulheres entre os 15 e os 20 anos com
diagnóstico positivo?
Não lhe consigo precisar a faixa
etária mais acometida com a doença no país, porque não dispomos de um sistema
de notificação de casos, que permite obter tais resultados. Em Saúde Pública , para
apurar a veracidade de um dado, temos de nos basear em evidências.
O que faz, na prática, um sistema
de notificação de casos?
A ausência desse mecanismo leva a
que um mesmo indivíduo faça o teste em várias unidades hospitalares e, no caso
de dar positivo, não se consegue especificar a quem pertence o resultado. Por
exemplo, se um indivíduo faz o teste de VIH no Hospital Josina Machel, dá
positivo e, por razões de dúvidas, volta a fazer outro no Hospital Esperança,
não há um sistema de notificação que alerte que ele já fez no Josina Machel e o
resultado foi positivo.
Como é que se faz o enquadramento desses resultados?
Como é que se faz o enquadramento desses resultados?
Os resultados entram para a
estatística apenas como testes positivos. Por essa razão, quan-do apresentamos
a estatística, falamos de testes positivos e não de casos. Mas alguns
jornalistas, por desconhecerem este dado, falam em casos.
O sistema tem alguma influência
no combate ao VIH?
Sim. É também por falta deste
sistema que o Instituto Nacional de Luta Contra a Sida não consegue fazer a
estimativa de pessoas a viver com o VIH por município. Temos dificuldade para
realizar esse trabalho, porque não temos prevalência por município. Apenas por
província. De igual modo, não fazemos estudo na população dos 0 aos 14 anos,
por falta de prevalência. Para combater o VIH-Sida, os outros países investiram
muito no sistema de informação, chamados de notificação de casos.
Quando é que Angola vai ter um
sistema de notificação de casos?
Estamos a trabalhar para tê-lo.
Há informação segundo a qual a
empresa que fornece teste do VIH ao Ministério da Saúde entregou uma linha do
produto sem qualidade e que estava a fazer com que todos os exames feitos
dessem positivo. Até que ponto é verdade?
Também tive a oportunidade de ler
essa informação. Em causa, estava um tipo de reagente que não fazia parte do
nosso algoritmo. Algoritmo é a lista dos testes que são permitidos para
identificação de uma determinada doença. Para detectar o VIH, fazemos sempre
dois testes: um para rastreio e outro para confirmar. Os únicos testes
aprovados para fazer o diagnóstico do HIV no país são o "Determine" e
o "Unigold". Acontece que apareceu outro tipo de teste no nosso
sistema, concretamente em algumas províncias, chamado "Aria". Os
técnicos que se aperceberam da presença do mesmo avisaram e, sem demora,
reagimos, escrevendo para a Inspecção Geral da Saúde, que, prontamente, tomou
as devidas medidas, sendo uma a proibição do uso do referido teste.
Mas eram mesmo feitos testes para
dar positivo?
Davam falso positivo, ou seja,
indeterminados. Dos dois testes que eram feitos, um dava positivo e outro
negativo. Este erro já foi corrigido. A empresa está a repor outro material e
todos os testes feitos foram repetidos já com aqueles que fazem parte do nosso
algoritmo.
Qual é o nível de contágio do VIH
em Angola?
Baseado em prevalência que se
encontra através de inquérito e estudos sero-epidemiológicos, cerca de 310 mil
pessoas em Angola estão a viver com o VIH. Deste grosso, 280 mil são adultos,
entre homens e mulheres. Destes, estima-se que 190 mil sejam somente mulheres,
das quais 21 mil grávidas. São os últimos dados, levantados no ano passado.
Há no país a cultura de as
pessoas fazerem o teste de VIH?
No nosso país, cerca de 70 por
cento das pessoas infectadas pelo VIH só se dirigem às unidades hospitalares
quando estão com sinais e sintomas muito evidentes da doença. Isto revela falta
de cultura do teste com antecedência, sem depender de sintomas. Na maioria das
vezes, essas pessoas chegam já muito debilitadas, ou seja, na fase 3 e 4, o que
obriga o internamento.
Diz-se que há homens que se negam
a fazer o teste de VIH e apoiam-se no que as mulheres fazem, quando ficam em
estado de mãe. Esta prática é segura?
Não, não é uma prática se-gura.
Já ouviu falar de casais seres discordantes? A mulher pode ser negativa e o
homem positivo. Por isso, o mais se-guro mesmo é que os dois façam. Não dói e é
gratuito. Caso contrário, funciona como na igreja: a salvação é individual.
Existe alguma estratégia para
estimular os homens a fazerem mais testes, sem depender do já feito pelas
esposas?
Existe uma estratégia, mas não
foi concebida para este fim, embora chegue lá. Denomina-se "Caso
Índice" e consiste em testar todos os membros da família da pessoa cujo
teste dê positivo. É a forma que encontramos para melhor controlar o número de
pessoas a viver com a doença no país. Assumimos a meta dos 90/-90/90, até 2020.
O que significa?
Significa que temos de
diagnosticar 90 por cento das pessoas a viver com VIH no país, pô-los em
tratamento com anti-retrovirais e suprimir a carga viral delas até 90 por
cento. Daí o 90/90/90. O ob-jectivo é fazer com que até 2030 a Sida deixe de ser um
problema de saúde pública em Angola.
Qual é a prevalência do VIH em Angola?
A prevalência de Angola é de 2 por cento. É das mais baixas da região. A Namíbia, por exemplo, tem cerca de 13 por cento e a Zâmbia 11 por cento.
Como está a situação a nível das províncias?
Cunene é a província com maior
prevalência. Tem 6,1 por cento. A seguir vem o Cuando Cubango, com 5,5 por
cento, Moxico, com 4 por cento, Lunda-Sul, com 3,9 por cento, e Lunda-Norte,
com 3,4 por cento. Luanda aparece com uma prevalência de 1,9 por cento, mas,
apesar de apresentar essa prevalência, no terreno, o número de pessoas a viver
com o VIH é maior, porque é a província mais populosa do país. As províncias do
Zaire, Cabinda, Uíge e Hu-ambo apresentam menos de 1 por cento.
Qual a razão para tanta variação
nas percentagens das províncias?
Temos de fazer estudo. Não
podemos falar só por falar. Há estudos que dizem que a circuncisão é uma das
medidas preventivas não só para o VIH, como para outras Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DTS). Se formos a ver, a província do Cunene tem menos homens
circuncidados, mas tem a prevalência que tem. A província do Cuanza-Norte, por
exemplo, não faz fronteira com países de alta prevalência, mas apresentou uma
prevalência de 3 por cento, maior até que a média nacional. É preciso saber os
principais motivos que fizeram com que a prevalência aumentasse nessa
província. Durante muitos anos, Cuanza-Norte teve uma prevalência de menos de 1
por cento.
A identificação da
“população-chave e vulnerável” de um país é uma das medidas usadas no combate
ao VIH. Qual é a população chave e vulnerável de Angola?
Em Angola, a população chave
compreende as trabalhadoras de sexo e os homens que se relacionam entre si.
Muitos países adicionam a essa lista os usuários de droga injectáveis. Como não
temos dados sobre essa franja, não a classificamos. Ainda sobre a população
chave, importa sublinhar que as trabalhadoras de sexo constituem o segmento com
a maior prevalência no país, que até chega a ser cinco vezes mais alta que a
prevalência na população em
geral. Já a população vulnerável compreende os prisioneiros,
camionistas, os polícias e os militares. Taxa de abandono da medicação é
de 54 por cento
Qual foi o número de óbitos pelo
VIH no ano passado?
São estimativas. Em 2017, foram
13 mil óbitos, de acordo com os últimos dados da ONU-Sida. Os dados de 2018
estão a ser preparados para saírem agora.
Por que razão fala em
“estimativas” e não em dados concretos?
Porque não temos um sistema de
informação de mortalidade. Para piorar, muitas famílias pedem ao médico para
não colocar no boletim de óbito que o seu parente morreu de Sida. Pedem para
colocar outra doença.
É verdade que os anti-retrovirais
usados em Angola são dos menos eficazes e que devem ser trocados em Junho?
Ainda bem que toca neste assunto.
Circulou, recentemente, na imprensa uma notícia que dizia que Angola vai
introduzir novos anti-retrovirais em Junho. Essa informação não corresponde à verdade.
Angola não vai introduzir novos fármacos em Junho, embora se admita a
possibilidade de um dia isso vier a acontecer, tendo em conta que o Sida é uma
doença crónica. Um mal entendido, só pode.
O mal entendido estará
relacionado com a questão da eficácia?
Estará, eventualmente,
relacionado com uma informação sobre uma recomendação que a OMS vai fazer em
Junho aos países, para aumentarem a cobertura de planeamento familiar nos seus
sistemas de saúde, como um dos requisitos para a introdução de um novo
anti-retroviral. Angola ainda está a analisar se vale a pena usar, pois
apresenta muitos efeitos colaterais em mulheres em idade fértil. Os países que
têm uma taxa de fecundidade muito alta, como é o nosso caso, devem ainda
ponderar. Estamos entre os dez países do mundo com as maiores taxas de
fecundidade. A média é de seis filhos para cada mulher, segundo dados do
Inquérito de Indicadores Múltiplos de Saúde, feitos em 2015 e 2016, e
divulgados há dois anos. De igual modo, vai ser preciso ainda analisar quanto
vai impactar no OGE, pois custa dois dólares a mais do que aquelas que
compramos.
Qual é o principal efeito colateral desse fármaco?
Qual é o principal efeito colateral desse fármaco?
De acordo com alguns estudos já
feitos, esse remédio provoca a má formação da espinha bífida do bebé. A OMS
recomenda que a droga é segura, mas, ao mesmo tempo, pede que se tenha cuidado
com as mulheres em idade fértil.
O país está a trocar alguns anti-retrovirais por outros, também por orientação da OMS. Pode comentar este assunto?
Em 2004, data em que o país começou a tratar pessoas com VIH e Sida, tínhamos definido, com a anuência da OMS, como esquema a ser usado no início do tratamento da doença, três fármacos, nomeadamente, a Zidovudina (AZT) + Lamivudina (3TC) + Nevirapina (NVP). Esse era o esquema preferencial para as pessoas que iriam começar o tratamento com anti-retrovirais. Mas, em2016, a OMS, baseada em
estudos que avaliam a eficácia e os efeitos colaterais dos anti-retrovirais,
orientou a retirada da Nevirapina do esquema e, no seu lugar, recomendou o uso
do Efavirenz (EFV).
O país está a trocar alguns anti-retrovirais por outros, também por orientação da OMS. Pode comentar este assunto?
Em 2004, data em que o país começou a tratar pessoas com VIH e Sida, tínhamos definido, com a anuência da OMS, como esquema a ser usado no início do tratamento da doença, três fármacos, nomeadamente, a Zidovudina (AZT) + Lamivudina (3TC) + Nevirapina (NVP). Esse era o esquema preferencial para as pessoas que iriam começar o tratamento com anti-retrovirais. Mas, em
O que levou a OMS a retirar a Nevirapina
do esquema?
Porque o seu efeito colateral
agredia o fígado, impedindo-o de exercer condignamente as suas funções. Às
pessoas com problemas de fígado não era aconselhado o uso desse medicamento.
Por essa razão, orientou-se a troca por Efavirenz.
Essa recomendação foi ex-tensiva
àqueles cujo organismo já estava adaptado ao fármaco?
Sobre essa questão, a OMS havia
recomendado que os pacientes que começaram o tratamento antes de 2016 e que já
estavam adaptados à medicação anterior podiam continuar. Com isso, passámos a
ter dois grupos: os que usavam o esquema antigo e os que deviam usar o novo.
Acontece que, em Dezembro do ano passado, a OMS, através de uma nova
orientação, recomenda a retirada da Nevirapina até para aqueles cujo organismo
já se tinha habituado. Como os anti-retrovirais são feitos por encomenda, já
tínhamos encomendado o esquema que leva esse fármaco, em Novembro do mesmo ano,
com a previsão de chegada para Fevereiro deste ano.
A encomenda já chegou?
Já sim. Mas importa esclarecer
que a OMS não recomendou que os referidos remédios fossem deitados fora. A OMS
autorizou o uso do que já se tinha, mas orientou que não se comprasse mais.
Apesar disso, já orientámos o não uso desse esquema proibido pela OMS. Por
exemplo, na província do Cunene, já recomendámos o não uso do referido fármaco.
Estamos a retirar de todo o paciente que usava o esquema que leva Nevirapina e,
no seu lugar, introduzimos o Efavirenz. Com essa alteração, os que começaram o
tratamento em 2016 estão a fazer o Tenofovir+Lamivudina+Efavirenz. Agora,
àqueles que faziam o Azedovudina+Lamivudina+Nevirapina só vamos mudar a
Nevirapina por Efavirenz. Esse processo de transição já começou.
Qual é a taxa de abandono da
medicação?
A taxa de abandono a nível
nacional, com base numa auditoria que fizemos, é de 54 por cento. A taxa de
retenção é de apenas 46 por cento.
O que está na base do abandono?
Uma das principais causas que
leva as pessoas a abandonar a medicação é o nosso povo não aceitar ainda a
doença. Muitos, depois de notar que estão a melhorar, desistem da medicação,
ignorando o facto de a medicação ser para toda a vida. Outros há ainda que
desistem da medicação com o argumento de que dá muita fome e não haver, às
vezes, o que comer. Estamos a desenhar um estudo para melhor identificar as
causas do abandono.
Diz-se que os anti-retrovirais
usados em Angola são dos menos eficazes. A senhora confirma?
É preciso falar com base em
evidências, porque em
Saúde Pública isso de ouvir falar não diz muito. São fogos
para irmos atrás, para ver até que ponto a informação é representativa e se dá
para falar de uma maneira geral. O sucesso do tratamento com anti-retrovirais
depende do paciente, porque se ele deixa de tomar, mesmo que for um dia,
compromete a mediacação. Portanto, não se deve deixar de tomar, sequer um dia.
Mas são ou não eficazes, se comparados com outros?
Mas são ou não eficazes, se comparados com outros?
Temos um protocolo nacional e
quem nos apoia tecnicamente é a OMS. Em função disso, é impossível termos um
esquema que não esteja dentro da recomendação dessa mesma instituição.
Quem faz a compra dos
anti-retrovirais para o país?
Temos um acordo com o PNUD, desde
2016, que passa pela compra dos remédios, em indústrias pré-qualificadas pela
OMS, a preços até quatro vezes mais baixos, se comparados com os do mercado.
Mesmo quando comprávamos os fármacos através de empresas locais, os mesmos eram
analisados pela instituição que zelava pelo controlo de qualidade. Agora,
comprando através de uma agência das Nações Unidas, como o PNUD, a
responsabilidade é maior e até é mais seguro. Importa sublinhar que os fármacos
são adquiridos com a nossa quota financeira, que sai do OGE, mais o
financiamento que recebemos do Fundo Global.
A propósito de Fundo Global ... A
instituição reduziu o apoio financeiro ao país...?
Sim, houve uma redução. Na ronda
anterior, que começou em Julho de 2016 a Junho de 2018, o Fundo Global apoiava
com 30 milhões de dólares para tudo, sendo que 70 por cento desse valor era
destinado para a compra de anti-retrovirais. Já na nova ronda, que começou em
Julho de 2018, para terminar em 2021,
a instituição reduziu esse valor para 23 milhões de
dólares, mas aumentou o período de cobertura do apoio para o tratamento da
doença. Outro grande desafio é que, na ronda anterior, o Fundo Global cobria 40
por cento do número de pessoas que fazem o tratamento da doença no país. Nessa
nova ronda, só vai cobrir o tratamento de 30 por cento, correspondente a 31 mil
pacientes.Na altura em que desenhámos o projecto, isto é, em 2017, este número
representava 40 por cento. Mas, hoje, este número já representa 30 por cento. O
número do Fundo Global agora passou a ser absoluto. Só vai cobrir 31 mil
pacientes.
Quanto é que o Estado gasta com o
tratamento do VIH?
No nosso orçamento deste ano, 2019, a nossa necessidade
estava estimada em cerca de 13 mil milhões de kwanzas. Desse total, 70 por
cento estava destinado para a compra de anti-retrovirais. Entretanto, o
orçamento foi aprovado com cerca de oito mil milhões, já com os salários
incluídos. Só em bens e serviços, ficaria em cerca de mais de sete mil milhões
de kwanzas. O orçamento do ano passado disponibilizado foi de cerca de três mil
milhões de kwanzas, sendo dois mil milhões destinados para a compra de
anti-retrovirais.
Esses valores são suficientes?
Não, não têm sido suficientes.
Por isso é que recorremos a financiamentos externos. Mas, ultimamente, já tem
havido um maior envolvimento do Governo. Só para ter uma ideia, em 2016, a execução foi de
cerca de 16 por cento; em 2017, foi de 20 por cento e, em 2018, de 70 por
cento. Isso mostra que o Estado já está a honrar o seu compromisso.
As mulheres estão a fazer mais
testes com o surgimento do projecto “Nascer Livre para Brilhar”?
Sim, os números mostram que elas
estão a fazer mais testes. Há um aumento de cobertura de mulheres grávidas que
fazem o teste de VIH no país. Para ter uma ideia, no ano passado, fizemos 476
mil testes em mulheres grávidas durante os 12 meses. Já de Janeiro, foram cerca
de 60 por cento dos dados de Fevereiro, registámos 127 mil testes em grávidas. Quer
dizer que a campanha está a produzir um impacto positivo.
Qual é o lema desse ano para o
combate à doença?
“Conheça o seu estado
serológico". Quer dizer que, quanto mais cedo se fica a saber que se é
portador da doença, melhor é a resposta e a qualidade de vida.
Jornal de Angola | entrevista por
César Esteves | Fotografia: Agostinho Narciso |
Edições Novembro
Sem comentários:
Enviar um comentário