Por se oporem aos projetos de
Washington, Julian Assange e Lula estão submetidos à lógica do “inimigo
interno”, que floresceu com Hitler. Sob aparência de normalidade democrática, o
Ocidente avança para o Estado de exceção
Boaventura de Sousa Santos* | Outras
Palavras
O problema da transparência, tal
como o da luta contra a corrupção, é a sua intransparente seletividade. Quem
talvez viva mais diretamente este problema são os jornalistas de todo o mundo
que ainda persistem em fazer jornalismo de investigação. Todos tremeram no
passado dia 11 de abril, qualquer que tenha sido o teor dos editoriais dos seus
jornais, ante a prisão de Julian Assange, retirado à força da embaixada do
Equador em Londres para ser entregue às autoridades norte-americanas que contra
ele tinham emitido um pedido de extradição. As acusações que até agora foram
feitas contra ele referem-se a ações que apenas visaram garantir o anonimato da whistleblower Chelsea
Manning, ou seja, garantir o anonimato da fonte de informação, uma garantia sem
a qual o jornalismo de investigação não é possível.
Se os jornalistas são quem vive
mais diretamente a seletividade da transparência, quem mais sofre as
consequências dela é a qualidade da democracia e a credibilidade do dever de
prestação de contas a que os governos democráticos estão obrigados. Por que é
que a luta pela transparência se dirige a certos alvos políticos e não a
outros? Por que é que as revelações em alguns casos são saudadas e produzem
efeitos, enquanto noutros são impedidas e, se feitas, são ignoradas? Daí a
necessidade de conhecer melhor os critérios que presidem à seletividade. Claro
que o outro lado da seletividade da transparência é a seletividade da luta
contra a transparência. Talvez não soubéssemos das perturbadoras revelações da
WikiLeaks em 2010 — vídeos militares sobre o assassinato em 2007, no Iraque, de
civis desarmados, dois dos quais trabalhavam para a Reuters — se elas não
fossem divulgadas amplamente pelos meios de comunicação de referência de todo o
mundo. Por que é que toda a sanha persecutória desabou sobre o fundador do
WikiLeaks e não sobre esses meios, alguns dos quais ganharam muito dinheiro que
nunca reverteu adequadamente para Assange? Por que é que nessa altura os
editoriais do New York Times saudavam Assange como o campeão da
liberdade de expressão e as revelações, como o triunfo da democracia, e o
editorial da semana passada considera a sua prisão como o triunfo da rule
of law? Por que é que o governo do Equador protegeu “os direitos humanos de
Assange durante seis anos e 10 meses”, nas palavras do presidente Lenin Moreno,
e o entregou repentina e informalmente, violando o direito internacional de
asilo? Será porque, segundo o New York Times, o novo empréstimo do
FMI ao Equador no valor de cerca de 4 bilhões de dólares teria sido aprovado
pelos EUA sob a condição de o Equador entregar Julian Assange? Será porque o
WikiLeaks revelou recentemente que Moreno poderia vir a ser acusado de
corrupção em face de duas contas, tituladas pelo seu irmão, uma em Belize e
outra no Panamá, onde alegadamente terão sido depositadas comissões ilegais?
Quanto à seletividade da luta
pela transparência há que distinguir entre os que lutam a partir de fora do
sistema político e os que lutam a partir de dentro. Quanto aos primeiros, a sua
luta tem, em geral, um efeito democratizador porque denuncia o modo despótico,
ilegal e impune como o poder formalmente democrático e legal se exerce na
prática para neutralizar resistências ao seu exercício. No caso do WikiLeaks haverá
que reconhecer que tem publicado informações que afetam governos e atores
políticos de diferentes cores políticas, e este é talvez o seu maior pecado num
mundo de rivalidades geopolíticas. A sorte do WikiLeaks mudou quando, em 2016,
revelou as práticas ilegais que manipularam as eleições primárias no Partido
Democrático dos EUA para que Hilary Clinton, e não Bernie Sanders, fosse o
candidato presidencial, e mais ainda depois de ter mostrado que Hilary Clinton
fora a principal responsável pela invasão da Líbia, uma atrocidade pela qual o
povo líbio continua a sangrar. Pode objetar-se que o WikiLeaks se tem
restringido, em geral, aos governos mais ou menos democráticos do dito mundo
eurocêntrico ou nortecêntrico. É possível, mas também é verdade que as revelações
que têm sido feitas para além desse mundo colhem muito pouca atenção dos meios
dominantes.
A seletividade da luta por parte
dos que dominam o sistema político é a que mais dano pode causar à democracia
porque quem protagoniza a luta pode, se tiver êxito, aumentar por via não
democrática o seu poder. O sistema jurídico-judiciário é hoje o instrumento
privilegiado dessa luta. Assistimos nos últimos dias a tentativas desesperadas
para justificar a revogação do asilo de Assange e a sua consequente prisão à
luz do direito internacional e direito interno dos vários países envolvidos,
mas a ninguém escapou que se tratou de um verniz legal para cobrir uma
conveniência política ilegal, se não mesmo uma exigência por parte dos EUA. Mas
obviamente que o estudo de caso do abuso do direito para encobrir conveniências
políticas internas e imperiais é a prisão do ex-presidente Lula da Silva. O
executor desse abuso é Sérgio Moro, acusador, juiz em causa própria, ministro
do governo que conquistou o poder graças à prisão de Lula da Silva. Lula da
Silva foi processado mediante sórdidos dislates processuais e a violação da
hierarquia judicial, foi condenado por um crime que nunca foi provado, e
mantido na prisão apesar de o processo não ter transitado em julgado. Daqui a cinquenta
anos, se ainda houver democracia, este caso será estudado como exemplo de como
a democracia pode ser destruída pelo exercício abusivo do sistema judicial.
Este é também o caso que melhor ilustra a falta de transparência na
seletividade da luta pela transparência. Não é preciso insistir que a prática
de promiscuidade entre o poder econômico e o poder político vem de longe no
Brasil e que cobre todo o espectro político. Nem tão pouco que o ex-presidente
Michel Temer pôde terminar o mandato para o qual não fora eleito apesar dos
desconchavos financeiros em que alegadamente teria estado envolvido. O
importante é saber que a prisão de Lula da Silva foi fundamental para eleger um
governo que entregasse os recursos naturais às empresas multinacionais, privatizasse
o sistema de aposentadorias, reduzisse ao máximo as políticas sociais e
acabasse com a tradicional autonomia da política internacional do Brasil e se
rendesse a um alinhamento incondicional com os EUA em tempos de rivalidade
geopolítica com a China.
Objetivamente, quem mais se
beneficia com estas medidas são os EUA. Não admira que interesses
norte-americanos se tenham envolvido tanto nas últimas eleições gerais
brasileiras. Também é sabido que as informações que serviram de base à
investigação da Operação Lava-Jato resultaram de uma íntima colaboração com o
Departamento de Justiça dos EUA. Mas talvez seja surpreendente a rapidez com
que, neste caso, o feitiço se pode se virar contra o feiticeiro. O WikiLeaks
acaba de revelar que Sérgio Moro foi um dos magistrados treinados nos EUA para
a chamada “luta contra o terrorismo”. Tratou-se de um treino orientado para o
uso musculado e manipulativo das instituições jurídicas e judiciárias
existentes e para o recurso a inovações processuais, como a delação premiada,
com o objetivo de obter condenações rápidas e drásticas. Foi essa formação que
ensinou os juristas a tratar alguns cidadãos como inimigos e não como
adversários, isto é, como seres privados dos direitos e das garantias
constitucionais e processuais e dos direitos humanos supostamente universais.
O conceito de inimigo interno,
originalmente desenvolvido pela jurisprudência nazista, visou precisamente
criar uma licença para condenar com uma lógica de estado de exceção, apesar de
exercida em suposta normalidade democrática e constitucional. Moro foi assim
escolhido para ser o malabarista jurídico-político ao serviço de causas que não
podem ser sufragadas democraticamente. O que une Assange, Lula e Moro é serem
peões do mesmo sistema de poder imperial, Assange e Lula, enquanto vítimas,
Moro enquanto carrasco útil e por isso descartável quando tiver cumprido a sua
missão ou quando, por qualquer motivo, se transformar num obstáculo a que a
missão seja cumprida.
* Doutorado em Sociologia do
Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa.
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