terça-feira, 16 de abril de 2019

São Tomé e Príncipe | O filme


Adelino Cardoso Cassandra* | Téla Nón | opinião

Instalado no meu lugar preferido estou a ver a repetição de um filme que, de quatro em quatro anos, anima a malta e faz vibrar os fervores de militância partidária, com consequências desastrosas para o país.

O MLSTP e a atual coligação apresentaram-se ao país, após as eleições legislativas recentes, com o propósito, reiteradamente verbalizado em múltiplas ações oficiais e não oficiais, aparentemente, de preocupação com a nossa sociedade no seu conjunto, independentemente das sensibilidades político-partidárias, geográficas, sociais ou de outra natureza.

Todavia, passados apenas três ou quatro meses de vigência governamental desta coligação e depois deste gesto inaugural, caricatural e panfletário, o filme repete-se, embora com personagens diferentes, com a mesma intensidade e dramatismo.

Já se começa a rasgar os discursos e os guionistas de serviço estão, neste momento, mais preocupados com os seus interesses particulares e partidários do que com os nossos interesses coletivos.



A emergência e aparente consolidação dos propósitos da atual coligação governamental, liderada pelo MLSTP, parece-nos configurar um ato apenas para alcançar, conservar e distribuir o poder entre os seus apaniguados e militantes e condenar o ADI a uma penosa travessia do deserto.

Não consigo descortinar, em termos de decisões políticas avulsas tomadas pelo atual governo, até agora, ou suportadas nos instrumentos de política económica do mesmo, aprovadas recentemente pela Assembleia Nacional, designadamente o Orçamento Geral do Estado, algo estratégico e estruturalmente pensado, concertado e concebido, que viesse contribuir para alterar, ainda que superficialmente, o quadro económico e social que vivemos.

Muito pelo contrário, o governo age, nalguns casos, aparentemente, com um propósito declaradamente negligente, do ponto de vista social, para não dizer outra coisa.

Num país em que o alcoolismo é um problema complexo e sério, tendo, a montante, causas estruturais como a nossa crise económica crónica, o desemprego e outros fatores que, desde tenra idade, contribuem, direta ou indiretamente, para desencadear junto dos jovens este apelo irresistível, com consequências sociais graves, como, por exemplo, o aparecimento e desenvolvimento de algumas patologias crónicas, acidentes de viação, a multiplicação de casos de violência doméstica, etc., um governo sério e responsável, que se declara defensor dos interesses do povo e, sobretudo, dos pobres, a primeira medida que toma é, exatamente, incentivar publicamente, através de decisões políticas, o consumo de bebidas alcoólicas criando condições para aumentar a sua importação e baixar o preço das mesmas junto do consumidor final?

Como é que eu, enquanto cidadão, posso acreditar num governo que procede desta forma e, todavia, declara-se, reiteradamente, defensor dos mais vulneráveis da nossa sociedade?

Sendo o alcoolismo um problema de saúde pública na nossa sociedade, quer queiramos ou não aceitar, o comprometimento de qualquer governo responsável teria que passar, necessária e primordialmente, a montante, por conceção e desenvolvimento de um plano, com contornos transversais de inclusão, que, contribuísse para minimizar a manifestação do referido problema, sobretudo no âmbito preventivo.

Aquilo que o governo faz é exatamente o contrário, ou seja, cria condições e convida os nossos jovens e a população em geral, sobretudo a mais vulnerável, a beber mais.  O senhor primeiro-ministro e o seu governo, com esta decisão, não estão a defender o povo nem o interesse dos nossos jovens, muito pelo contrário, estão a defender os interesses das suas clientelas partidárias, relacionadas com a importação e comercialização de bebidas alcoólicas no país.

Cada vez mais, como tenho reiteradamente escrito em artigos anteriores, constata-se, aos poucos, uma contradição entre aquilo que o senhor primeiro-ministro nos tem prometido nos seus discursos e as ações e decisões políticas que o seu governo toma ou publicita.

Outro exemplo desta constatação, é o que o MLSTP e a atual coligação estão a fazer, momentaneamente, em nome do combate à corrupção no país.

Sejamos francos, tal propósito, tem apenas, como preocupação fundamental aniquilar o ADI, os seus principais dirigentes e outros opositores políticos, da mesma forma que o ADI tentou fazer o mesmo, com os partidos da oposição, anteriormente, quando estava no governo.

A política está a transformar-se, paulatinamente, no nosso país, numa espécie de “guerra entre grupos de gangues identificados”, com chefes escolhidos para esta tarefa específica, de acordo com determinados perfis, ostentado, contudo, como adereço, um emblema partidário, mas cujo objetivo é, afinal de contas, a defesa intransigente de interesses pessoais e de grupos específicos.

O povo só aparece, como uma realidade abstrata, em discursos de ocasião e evocação política, para credibilizar esta espécie de “luta de gangues” que tem como objetivo assaltar o castelo de quatro em quatro anos.

Dai a necessidade de se falar do combate à corrupção ou, em alternativa, de uma suposta reforma da justiça, como o ADI fez anteriormente, como, também, no regime monopartidário, se falava de aparecimento de navios estrangeiros na nossa costa cujo objetivo era, supostamente, a invasão do país por mercenários.

Tudo isto tem ou tinha, em última instância, como finalidade, credibilizar o discurso político e permitir a adesão popular para um simulado programa de reforma para o país enquanto os “gangues” tomavam ou tomam conta da nossa casa.

É óbvio que este tipo de discurso ou decisão política, num país, por exemplo, em que a perceção sobre a corrupção é elevada, conduz a todos os tipos de manifestações e apologias de faca e alguidar.

Não me admira nada, pois, ouvir algumas pessoas, aparentemente bem informadas, declarar de forma ingénua, que o governo deveria, até, “suspender a democracia” para acabar com a corrupção no país como coisa que as duas coisas fossem compatíveis.

Não sabem elas, que, como afirmou recentemente a argentina, Delia Ferreira Rubio, que preside a ONG global Transparência Internacional, “…a corrupção espalha-se muito mais facilmente onde as instituições democráticas são fracas e, como temos visto em vários países, onde políticos populistas e antidemocráticos a usam como tema para tirarem vantagem pessoal e política…”.

É exatamente isto que este governo está a fazer, neste momento, infelizmente, e que o ADI fez anteriormente, e uma parte substancialmente da população, mal informada e esclarecida, nesta luta de “gangues”, acriticamente, esfrega as mãos de contente convencidos da bondade da iniciativa em causa. Eu já vi este filme no regime monopartidário, viu-o há quatro anos e estou a revê-lo agora, com nenhum entusiasmo mobilizador. A única coisa que mudou são os atores e os guionistas do filme.

A corrupção não é algo que se combate no país, somente verbalizando este propósito, de forma avulsa, detendo, posteriormente, num exercício de simulação hollywoodesco, alguns supostos prevaricadores do “gangue adversário”, para posterior apresentação como troféus de caça e satisfação do desejo de manifestação de faca e alguidar da clientela partidária.

É óbvio que não gostei da falta de transparência relacionada com o processo de suposto empréstimo, por parte do governo do ADI, contraído a um fundo privado internacional, no valor de 30 milhões de dólares, e escrevi vários artigos sobre este facto.

Mas, transformar este facto isolado, como suposta bandeira governativa de combate à corrupção no país, simplesmente detendo os opositores políticos, ao mesmo tempo que o próprio governo, em apenas quatro meses de vigência, manifestou, claramente, evidências contrárias ao propósito em causa, parece-me insólito.

Darei, por isso, apenas três exemplos destas evidências.

Em primeiro lugar, tenho dificuldades em compreender que o atual governo manifeste preocupação em combater a corrupção quando, implementa, logo no início do seu mandato, uma política de falta de transparência e de cultura de meritocracia na contratação de dirigentes e funcionários para a administração pública e empresas estatais minimizando a eficiência dos referidos serviços em detrimento do compadrio e do cartão partidário, quando todos os relatórios internacionais, neste âmbito, aconselham exatamente o contrário.

Em segundo lugar preocupa-me que o governo queira combater a corrupção e, ao mesmo tempo, manifeste, pouca ou nenhuma ambição em separar a administração da coisa pública dos propósitos ou ambições de natureza político-partidária, confundido e misturando os dois planos de intervenção, em total divergência com aquilo que as boas práticas de combate à corrupção recomendam, fazendo exatamente como se fazia no regime monopartidário, privilegiando a emergência de um partido-estado defensor dos interesses de clientelas partidárias, como a ministra do Comércio, Indústria, Turismo e Cultura sugeriu numa entrevista recente.

Em terceiro lugar preocupa-me que o governo manifeste uma vontade incomensurável de transformar os bens públicos em privados, cujo exemplo do arroz do Japão é o caso mais evidente, bem como declare o desejo inconfessável de centralizar competências constituindo-se, desta forma, num obstáculo à iniciativa privada sendo, com tal, permeável aos interesses de natureza partidária, cujo conteúdo da entrevista da atual ministra do comércio, Turismo, Indústria e Cultura não podemos ignorar.

Se o governo quisesse, de facto, combater a corrupção no país não deveria negligenciar estas evidências que o torna, primordialmente, num alvo frágil deste mesmo flagelo que nos garante querer combater.

É óbvio que isto só poderia acabar, como qualquer “luta de gangues” acaba, com o país e as suas instituições divididas ao meio.

De um lado, temos a claque de um “gangue” e do outro a claque de outro “gangue”.

De um lado temos o procurador da república revoltado com a polícia judiciária pelo facto de esta ter detido um dos supostos prevaricadores sem a sua autorização e do outro lado temos a representante da polícia judiciária enraivecida com o referido procurador que mandou soltar um dos supostos prevaricadores, numa guerra pública que deveria envergonhar qualquer Santomense.

De um lado temos o governo da república satisfeitíssimo com a detenção dos supostos prevaricadores e a comunicação social estatal transformada num autêntico tribunal e; do outro lado, temos o presidente da república fulo de raiva pelo facto de um dos supostos prevaricadores estar detido e zangado com a referida comunicação social estatal.

Isto fragiliza as instituições da república e mina a credibilidade de qualquer programa de combate à corrupção no país que, infelizmente, não existe. É impossível o combate à corrupção no país com instituições frágeis e o país dividido ao meio quanto a bondade deste propósito avulso e seletivo.

Como é que se pretende combater a corrupção no país ao mesmo tempo que, consciente ou inconscientemente, se faz de tudo para fragilizar e debilitar as instituições públicas, que, têm como função, exatamente, realizar este combate, num exercício de achincalhamento público entre elas que desonra qualquer cidadão nacional?

Nenhum empresário minimamente lúcido vai investir num país em que o próprio primeiro-ministro intitula o presidente da república, em discurso público, como sendo, aparentemente, “chefe de um gang” que, supostamente, defende prevaricadores corruptos ou; em alternativa, onde a chefe de polícia judiciária entra em guerra pública com o procurador de república, num registo de baixo nível, diminuindo a autoridade deste publicamente.

Este não é, infelizmente, um país sério para se viver e investir. Perdoem-me as pessoas de caráter, abnegação e resiliência que, todos os dias, dão tudo de si, estudando, investindo, trabalhando e esforçando para que o país progrida, mas cujo contributo negativo de alguns políticos, acaba por se transformar no maior entrave, para a mudança de paradigma, entre nós.

E é triste constatar tudo isto porque eu estava convencido, após a entrevista tresloucada da senhora ministra do Comércio, Turismo, Indústria e Cultura, que se tratava de um ato isolado da referida governante, reflexo da falta de bom senso da mesma aliado aos problemas de incompetência política e técnica, mas, tendo em conta que o senhor primeiro-ministro não censurou este ato da sua ministra e até, aparentemente, subscreve-os, só posso concluir que, com a manifestação deste último acontecimento, tudo isto começa a denunciar um padrão comportamental, do seu governo como um todo, onde predomina a confusão, o desrespeito institucional, a incompetência, a ofensa pública e o desvario. Bom exemplo que estão a dar aos nossos jovens! Estamos a transformar, neste delírio procedimental governamental, numa autêntica chacota internacional.

*Adelino Cardoso Cassandra, na foto

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