A prolongada mobilização dos
“Coletes Amarelos” (já com 21 sábados consecutivos) vem suscitando um
incremento da acção repressiva do Estado (que mobiliza já para esse fim as
forças armadas). Por outro lado, a classe dominante e os seus serventuários no
aparelho de Estado e no Governo continuam a agir como se fossem inteiramente
impunes e inimputáveis, apesar de começarem a acumular-se indícios e processos
por corrupção, e até de contestação dentro das suas fileiras, nomeadamente da
ilegalidade e arbitrariedade da acção repressiva.
Uma oportunidade para todos, para
os Coletes amarelos como para o presidente da República: este 16 de Março
esteve ensolarado. Os primeiros poderiam manifestar-se sem chuva; o segundo
poderia descomprimir, bronzear-se. Assim, no período da tarde, quando no décimo
oitavo sábado consecutivo desde há quatro meses os confrontos entre
manifestantes e a polícia entravam em ebulição em muitas cidades, à margem
desta nova mobilização dos Coletes amarelos, o Sr. Emmanuel Macron, com os pés
em esquis de competição de esqui e óculos de sol último grito no nariz, desceu
as encostas de La Mongie ,
estância chique de desportos de inverno dos Altos Pirenéus. Uma semana antes,
em 9 de Março, logo após o “Acto 17″ dos Coletes amarelos, numa boate da moda
em Paris, o ministro do Interior, Christophe Castaner, foi fotografado
sub-repticiamente encadeando shots de vodka e beijando uma mulher jovem (só
muito de longe semelhante à sua esposa). Domingo, 17 de Março, à noite, o
inenarrável Alexander Benalla, ex-guarda-costas presidencial a contas com a
justiça, e colocado sob supervisão do tribunal desde a sua saída da prisão, era
por seu lado visto, e filmado, cachimbo de shisha numa mão e taça de champanhe
na outra, à beira da sumptuosa piscina de Nikki Beach, hotel de luxo de Marraquexe.
Impressão irreprimível de fazer parte do cenário de uma novela série B de
Hollywood? Não, apenas o lamentável espectáculo dado pelos ocupantes da cúpula
do Estado na França de hoje.
Continuemos. Um secretário-geral
do Eliseu, Alexis Kohler, contra o qual uma associação anticorrupção (Anticorp)
apresentou várias queixas por “apropriação ilegal de juros, tráfico de
influência, corrupção passiva” e “conflito de interesses de grande escala” num
processo - ainda não decidido pelos tribunais - combinando a empresa MSC
(número 2 do frete marítimo a nível mundial, cujo dono é nada menos que seu
primo), os estaleiros navais STX e État, mas também a cidade de Le Havre (da
qual era prefeito o primeiro ministro, Édouard Philippe). Um ex-conselheiro
especial de Emmanuel Macron durante a sua campanha eleitoral encarregado da
recolha de fundos, Mourard Bernard, antigo banqueiro no Morgan Stanley, depois
presidente da Altice (o grupo de media do magnata de negócios Patrick Drahi que
possui, além da SFR, boa parte dos jornais e canais de televisão mais
influentes da França); Bernard Mourard portanto, agora director do Bank of
America Merrill Lynch, em Paris, mandatado há poucos dias para apoiar a Agência
de participação do Estado na privatização de Aéroports de Paris. Um novo
prefeito da polícia de Paris, Didier Lallement – com reputação de “musculado” e
“implacável”, nomeado em 21 de Março para substituir o seu antecessor demitido
por “deficiências” na “gestão” dos excessos das mobilizações de Coletes
amarelos - que deve em breve ser ouvido no quadro da investigação de um
Procurador financeiro nacional e da Brigada de repressão dos crimes económicos
por suspeitas de favoritismo na adjudicação de contratos, quando presidia à
Comissão de análise das propostas para os trabalhos de construção do metro da
Grande Paris - o maior (e mais caro: 37 milhares de milhões de euros) estaleiro
da Europa … Que mais dizer? Se não é senão o Senado, com maioria de direito, a
decidir assumir a justiça (por “falsos depoimentos” ante uma comissão
parlamentar) nos casos de Alexandre Benalla e seu acólito Vincent Crase, antigo
oficial de reserva da gendarmeria acusado de violência tal como ele, bem como
outros três colaboradores próximos do Presidente Macron no Eliseu: Alexis
Kohler, já mencionado; Patrick Stzoda, Director de Gabinete da Presidência; e
Lionel Lavergne, chefe do Grupo de Segurança da Presidência. Esta é apenas a
segunda vez que um tal procedimento é desencadeado na Quinta República. O
secretário de Estado do Primeiro-ministro e porta-voz do governo, Benjamin
Griveaux, deixava as suas funções em 27 de Março.
Todos são, naturalmente,
presumíveis inocentes … Na condição de que, um belo dia, justiça seja feita.
Em 16 de Março, dezenas de milhares de Coletes amarelos manifestavam-se ainda em toda a França e, às vezes com eles, às vezes ao mesmo tempo que, outras dezenas de milhares de manifestantes, sindicalistas (com a CGT à cabeça), ecologistas da mobilização pelo o clima (a “Marcha do século”), estudantes do ensino secundário e superior, membros de associações de bairro, trabalhadores indocumentados, deficientes em cadeiras de rodas … Por uma “convergência amarelo-vermelho-verde”. Em Paris na Place de l’Etoile, a partir das 10h, ocorriam confrontos com a polícia. Le Fouquet, um restaurante icónico dos Champs Elysées, símbolo de luxo e sede do jet set parisiense (onde Nicolas Sarkozy comemorou a sua vitória na eleição presidencial de 6 de Maio de 2007), foi saqueado e queimado. A origem exacta dos “danos consideráveis” referidos pela administração do estabelecimento ainda não está determinada … E a poucas dezenas de metros de distância, na rua Franklin-Roosevelt, uma agência bancária foi incendiada. Camionetas da gendarmeria foram atacadas, policias agredidos. Cerca de cem lojas vandalizadas. Porções de ruas ao redor foram despavimentadas. Um slogan, escrito numa parede: “Os paralelepípedos são o nosso boletim de voto”! “32.000 manifestantes” são contabilizados em França pela polícia no final do dia (contra 28.000 no sábado anterior), incluindo “10.000 em Paris” – ou seja tantos quanto o número anunciado pelo Ministério do Interior alguns dias antes na manifestação de Paris de apoio aos argelinos que exigem a saída de Abdelaziz Bouteflika. Ridículo! Era suficiente estar na rua em 16 de Março para medir a escala das mobilizações.
No dia 23 de Março, para o “Acto
19″, tudo foi mais calmo. E por um bom motivo: o exército estava no local; o
perímetro dos Campos Elísios e dos edifícios oficiais (Élysée, Matignon,
ministérios …) era interdito aos coletes amarelos. Os seus desfiles terminaram
desta vez no topo da Butte-Montmartre. Resposta do poder? Sempre a mesma: a
repressão. “A dispersão imediata de todos os ajuntamentos” em locais
previamente proibidos, “decisões fortes,” Brigadas de repressão de acção
violenta criadas “para ir ao contacto” … De 17 Novembro de 2018 a 12 de Fevereiro 2019,
mais de 8 400 prisões e 7500 sob custódia, 1796 condenações a prisão das quais 316 a prisão efectiva,
pessoas da província “proibidas de aparecer em Paris” … Quase metade dos
processos de interpelação são arquivados por falta de elementos acusatórios. É
muito. Aqui e ali elevam-se vozes; certas instruções dadas às forças da ordem
seriam efectivamente ilegais: o procurador da República (nomeado pelo
Presidente) estaria a pressioná-los para que realizassem detenções provisórias,
a fim de impedir um máximo de Coletes amarelos de se dirigir ao local de
manifestação … E a ordem para usar LBDs - que causou tantos ferimentos – teria
também vindo de cima …
Nos media, a raiva odiosa dos burgueses contra os mendigos rebeldes redobra de intensidade. Um presidente da República que volta o exército francês contra o povo francês não é suficiente. À direita, Éric Ciotti, deputado de Les Républicains, exige do governo mais firmeza, a proibição pura e simples de se manifestar e o restabelecimento do estado de emergência. Vem a propósito: uma deputada do
O “Grande Debate” iniciado pelo
Presidente Macron terminou finalmente com a expressão de 160.000 “contribuições
cidadãs”, oficialmente listadas no sítio disponibilizado ao público pelo
governo; isto perfaz uma contribuição de 0,003 por cada francês com mais de 18
anos. O importante é fazer crer que vivemos numa democracia. Democracia na qual
em 23 de Março, uma militante da paz com 73 anos, agredida por um polícia e
seriamente ferida na cabeça, ouve na sua cama de hospital da parte de Emmanuel
Macron que deveria ter feito prova de “uma forma de sabedoria” e ter ficado em casa. A sabedoria, caro
senhor, seria mudar este mundo do bling-bling e do dinheiro para o seus, vida
dura e paulada para os outros.
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