sábado, 11 de maio de 2019

Portugal participa no confisco de bens à Venezuela


O que está a passar-se contra a Venezuela, com participação do governo de Portugal, é uma guerra avassaladora que envolve «crimes de lesa-humanidade» passíveis de cair sob a alçada do Tribunal Penal Internacional.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

O governo da República Portuguesa está envolvido, directa e indirectamente, na apropriação ilegal de pelo menos três mil milhões de euros de bens públicos da Venezuela a que o Estado venezuelano está impedido de recorrer para comprar medicamentos, alimentos e outros produtos de primeira necessidade para a sobrevivência da população do país. Dessa verba, 1359 milhões de dólares correspondem ao valor do ouro de Caracas extorquido pelo Banco de Inglaterra, com anuência dos países da União Europeia; e 1543 milhões de euros é a fatia de dinheiro confiscada pelo Novo Banco, uma entidade nacional que foi salva com dinheiro extraído dos bolsos dos portugueses e depois oferecida a um fundo abutre norte-americano.

Até prova em contrário, o governo de Portugal é parte responsável por estes actos – além do reconhecimento do golpe terrorista através do qual os Estados Unidos designaram o seu agente Juan Guaidó como «presidente interino» da Venezuela. Os portugueses continuam à espera de respostas concretas a perguntas directas sobre estas actividades governamentais praticadas à revelia e contra os interesses dos portugueses, sobretudo dos que vivem emigrados na Venezuela. Até agora só o silêncio tem respondido aos pedidos de esclarecimento, o que também não parece perturbar a comunicação mainstream que, assim sendo, só tem o que merece. Mas o silêncio governamental vai valendo como uma confissão de cumplicidade de Lisboa com os crimes cometidos pela direcção fascista dos Estados Unidos da América contra a República soberana da Venezuela. Quem cala consente, sobretudo sendo este um governo que tem palavra fácil.



«A nossa estratégia funciona…»

E o que está a passar-se contra a Venezuela, com participação do governo de Portugal, é uma guerra avassaladora que envolve «crimes de lesa-humanidade» passíveis de cair sob a alçada do Tribunal Penal Internacional, de acordo com um relatório pedido pela ONU e em poder da Comissão de Direitos Humanos da organização.

A guerra que atinge a Venezuela não resulta de sanções pontuais, como poderá pensar-se. O que os Estados Unidos montaram, desde que o presidente Obama declarou o país como «uma ameaça à segurança nacional» norte-americana, em 2014, é um sistema organizado de punição colectiva que visa a falência e o desmantelamento do Estado venezuelano.

O Conselho de Relações Externas dos Estados Unidos, o mais pesado dos famosos think tanks deste país, confessa que «as sanções são alternativas visíveis e menos dispendiosas do que uma intervenção militar». Por outras palavras, as sanções são uma guerra, admite.

Mais claro ainda nos termos usados é um membro do Departamento de Estado norte-americano, que prestou declarações sob condição de anonimato a um conjunto de jornalistas, entre os quais Maria Molina, da Rádio Colômbia. «Estamos a assistir a um colapso económico total da Venezuela», disse. «Portanto, a nossa política funciona, a nossa estratégia funciona».

É a pessoas deste jaez e com esta consciência humanitária que o governo de Portugal está associado.

No passado dia 25 de Abril, dois economistas norte-americanos, Max Weibrot e Jeffrey Sachs, do Centro de Investigação Política e Económica1, em Washington, concluíram que o bloqueio económico e humanitário representa uma «punição colectiva» que provocou já a morte de pelo menos 40 mil pessoas na Venezuela. Se as sanções não existissem, revelam os autores, a economia do país não teria sido afectada, seguiria o seu caminho; por outras palavras, não haveria «crise humanitária», não existiria «colapso»2.

Uma teia imperial

As sanções nada têm de acumulação de decisões pontuais aleatórias. São aplicadas através de uma teia estruturada com o objectivo de asfixiar os mecanismos que permitem a vida de um Estado e de um país.

A sucessão de Ordens Executivas emanadas pelos Estados Unidos mas com impacto global, sobrepondo-se à ordem internacional vigente segundo o sistema da ONU, ilustram o funcionamento de um verdadeiro poder imperial.

As medidas estabelecidas por Washington contra a Caracas – do mesmo tipo das impostas ao Irão e a Cuba – pretendem fazer com que a Venezuela deixe de funcionar com a banca internacional e o sistema financeiro em geral, não possa comercializar os produtos que garantam a subsistência do Estado e das populações, como o petróleo e o ouro. Neste quadro a Venezuela fica inibida de exportar e importar, de se administrar, de se financiar e de honrar as suas dívidas. Esta asfixia induz um processo sádico de punição de milhões de pessoa forçando-as, no limite, a submeter-se à miséria ou a virar-se contra um governo que não é, de facto, responsável pela degradação constante da situação.

Mercê da complexa teia de procedimentos aplicada de forma arbitrária em termos políticos, económicos, financeiros, sociais e humanitários, a Venezuela não pode vender petróleo e ouro, não pode comprar medicamentos em geral e vacinas em particular, não pode contrair empréstimos junto da banca internacional, onde também não pode movimentar os seus activos depositados ou em circulação no estrangeiro; além de não lhe ser permitido pagar as dívidas, para que depois possa ser acusada de não honrar prazos de pagamento e cair em default. Levando assim, por arrastamento, os impérios internacionais de notificação de créditos, como a Standard & Poor’s, a colocar a Venezuela nos últimos lugares, muito abaixo de «lixo» – situação mais grave ainda do que as de países vítimas de guerras e agressões militares.

Trata-se de um sistema maquiavélico, sádico, repete-se, porque atinge os seres humanos onde eles são mais débeis, dependentes e indefesos como a saúde, a alimentação, os bens essenciais de consumo. Uma guerra imposta sem tropas mas também com mortos, feridos e famintos.

A componente portuguesa

E o governo de Portugal participa de forma sorrateira, sem o assumir perante os portugueses, nesta operação que provoca danos deliberados na economia e no sistema de saúde venezuelano, com a agravante de originar «diversos casos de morte – o que implica crimes de lesa-humanidade», segundo o relatório apresentado pelo perito independente da ONU, Alfred-Maurice de Zayas3, na última sessão da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Uma participação portuguesa que não acontece apenas por arrastamento, devido às «nossas alianças» ou às inerências da União Europeia. É uma opção deliberada.

Já em Agosto de 2016, por exemplo, o Novo Banco decidiu que estava impossibilitado de fazer operações em dólares com os bancos venezuelanos, invocando pressões de outras entidades bancárias com as quais se relaciona. Fê-lo numa conjuntura em que instituições como o Citibank se negaram a receber fundos venezuelanos para importar 300 mil doses de insulina, o Crédit Suisse proibiu os seus clientes de realizarem operações financeiras com a Venezuela e, só em Novembro de 2017, foram bloqueadas por bancos internacionais 23 operações de compra de alimentos, produtos básicos e medicamentos, no valor de 39 milhões de dólares.

Mais recentemente, em Janeiro e Fevereiro deste ano, coincidindo com a entronização golpista de Juan Guaidó, o Novo Banco travou uma operação de importação venezuelana de vacinas contra a meningite, rotavírus e gripe, atitude que afectou directamente 2,9 milhões de crianças venezuelanas.

Outro banco com grande representação em Portugal, o Santander, surge envolvido em actuações deste tipo. Rejeitou uma movimentação de fundos para reparação dos equipamentos hemodinâmicos da área cardiológica, o que atingiu directamente pelo menos 500 crianças com cardiopatia congénita. Exemplos deste tipo multiplicam-se em cadeia, associados a centenas de instituições financeiras internacionais e respectivos ramos.

Os fundos do Estado venezuelano confiscados pelo Novo Banco atingem os 1543 milhões de euros, verbas para serem prioritariamente utilizadas em produtos essenciais como medicamentos e alimentação.

Não consta que o governo de Portugal, depois de ter oferecido o antigo Banco Espírito Santo, resgatado pelos contribuintes portugueses, a um fundo abutre norte-americano, se tenha movimentado para evitar as consequências das decisões desumanas da instituição – afinal um banco português.

Porém, observando o comportamento do executivo de Lisboa nas questões venezuelanas, seria contra-natura que o fizesse.

Porque – até prova em contrário – o governo da República Portuguesa e o Banco de Portugal deram aval à extorsão de ouro no valor de 1359 milhões de dólares à República da Venezuela. O secretário norte-americano do Tesouro, Steven Mnuchin, afirmou que todos os governos e bancos centrais da União Europeia foram consultados sobre a operação, concretizada pelo Banco de Inglaterra, onde o ouro fora depositado de boa-fé; e ainda não houve ninguém que o desmentisse.

Aliás, como já anteriormente ficou registado [ver artigo em caixa], o governo português fez-se representar, em 11 de Abril, numa reunião com o mesmo Mnuchin dedicada à asfixia financeira contra a Venezuela. É do secretário do Tesouro de Trump a seguinte declaração: «Continuaremos a utilizar todas as nossas ferramentas diplomáticas e económicas para apoiar o presidente interino Guaidó».

Fiel aos tiques de «bom aluno», o executivo de Lisboa não poderia deixar de obedecer também à Ordem Executiva 13850 do governo norte-americano, que bloqueia, entre muitas outras coisas, o comércio de ouro com a empresa estatal venezuelana Minerven.

Como o governo de Portugal continua a manter o silêncio sobre estes seus envolvimentos, e como não poderá alegar engano sobre as verdadeiras intenções «democráticas» de Trump ou Mnuchin, não existem dúvidas de que se identifica com o carácter agressivo, desumano e anti-democrático do lado onde se colocou.

Objectivos claros e terroristas

O ministro venezuelano dos Negócios Estrangeiros, Jorge Arreaza, costuma citar um dos seus interlocutores oficiais norte-americanos que lhe disse um dia: «já que não podemos mudar o governo venezuelano vamos arruinar a vossa economia».

A declaração resume, sem dúvida, todo um programa terrorista de âmbito transnacional sob a batuta dos Estados Unidos.

Segundo o relatório de Alfred-Maurice de Zayas, o perito independente designado pela ONU para avaliar a situação, esse programa «além de obstruir o acesso ao financiamento externo e aos pagamentos internacionais, afecta o financiamento normal do aparelho produtivo nacional, criando uma redução da oferta de bens e serviços locais».

Ainda segundo Zayas, as sanções de Trump e Obama e as medidas unilaterais do Canadá e da União Europeia «agravam directa e indirectamente a escassez de medicamentos como insulina e antirretrovirais, acarretando demoras na distribuição e funcionando como agravante em diversos casos de morte – o que implica crimes lesa-humanidade»4.

O compromisso de Alfred-Maurice Zayas para apreciar a situação é com a ONU5, não com Nicolás Maduro.

Seria, portanto, bastante mais digno e humanista que o compromisso do governo de Portugal fosse com as Nações Unidas, não com Donald Trump e o seu farsante Guaidó.

Notas:
1.O Centro de Investigação Política e Económica (CEPR, de Center for Economic and Policy Research) foi fundado em 1999 por Dean Baker e Max Weibrot a fim de «promover o debate democrático sobre os mais importantes temas sociais e económicos» e permitir aos cidadãos «escolher sobre as diversas opções políticas» que se lhes colocam, fazendo-o «informadamente». A instituição, que conjuga «pesquisa profissional e educação pública» na sua actividade, funciona em Washington DC (EUA) e conta no seu quadro de consultores receptores do Nobel da Economia, como Robert Solow e Joseph Stiglitz; Janet Gornick, professora na CUNY Graduate School e directora do Luxembourg Income Study; e Richard Freeman, professor de Economia na universidade de Harvard. Ver «Sobre nós». Um detalhe pouco habitual, revelador do nível de consciência política dos trabalhadores do CEPR, é o facto de, na página de apresentação da instituição, mencionar-se que «os funcionários do CEPR são membros do sindicato de funcionários sem fins lucrativos IFPTE Local 70» – e remeter uma ligação para a página do sindicato.
2.O artigo em questão, Economic Sanctions as Collective Punishment: The Case of Venezuela, pode ser lido na íntegra aqui[ ]. A biografia de Max Weibrot pode ser conhecida na nota anterior e a de Jeffrey Sachs na presente nota.
3.Alfred-Maurice de Zayas é um advogado americano, escritor, historiador, especialista no campo dos direitos humanos e do direito internacional e ex-alto funcionário da Organização das Nações Unidas (ONU). A sua reconhecida independência valeu-lhe, em 2012, ser nomeado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU como Especialista Independente das Nações Unidas na Promoção de uma Ordem Internacional Democrática e Equitativa – cargo que mantém na actualidade. O leitor pode consultar a sua biografia na Wikipédia e aceder ao interessante sítio pessoal de Alfred-Maurice de Zayas, Alfred de Zayas' Human Rights Corner.
4.O relatório, intitulado «Report of the Independent Expert on the promotion of a democratic and equitable international order on his mission to the Bolivarian Republic of Venezuela and Ecuador», pode ser encontrado na íntegra aqui.
5.O programa «Enclave Político» da Telesur entrevistou Alfred-Maurice Zayas (Alfred de Zayas) em 31 de Janeiro de  2019. Um excerto da entrevista foi legendado em português e publicado no Diário Liberdade. Todo o excerto tem interesse, mas o leitor compreenderá a dificuldade que encontram opiniões independentes e sérias em exprimir-se sobre a Venezuela, no mainstream media, – como acontece com aquele respeitado perito em Direitos Humanos – atentando na parte da entrevista entre os 5’ 20” e o final do vídeo. A esse propósito, no sítio pessoal de Alfred de Zayas, o leitor pode encontrar o artigo «Essay on Venezuela», antecedido das dignas palavras dirigidas pelo autor à prestigiada revista Georgetown Journal of International Affairs. O artigo fora encomendado pela revista ao autor mas, depois de o terem recebido, declinaram-no, ferindo o princípio do debate de ideias que deve presidir a uma publicação científica. Por fim, se tiver tempo e paciência para ver a entrevista integral de Alfred de Zayas à Telesur (cerca de 32 minutos), pode fazê-lo aqui. Não perderá o seu tempo.

Na imagem: Encontro do Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, e do Secretário de Estado norte-americano Michael Pompeo, em Washington, Junho de 2018. Créditos/ US Department of State

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