Miguel Guedes | Jornal de Notícias
| opinião
Fazer-nos acreditar em algo, seja
a preto e branco ou em tons de fúchsia, é o desígnio que a classe política é
convidada a adoptar e percorrer de lés a lés, da Direita à Esquerda, pelo
convidado presidencial do 10 de Junho, mestre-de-cerimónias João Miguel Tavares
(JMT).
Galardoado com um discurso
transversal a todo o espectro político, nesse lugar de comunhão que o senso
comum interioriza por altura das celebrações em que se sopram velas. Se
retirarmos a política do discurso, sobeja um belíssimo manual de instruções
para o bom comportamento moral e cívico. Haja princípios.
Mesmo que da sua política não
reze a História, o "karma moral" de JMT é o discurso mais
interessante e memorável das últimas celebrações do 10 de Junho. Dir-me-ão que
10 anos de discursos foram ocupados por Cavaco. É verdade. Mas isso só aporta
maior grandeza ao discurso do cavaquista JMT, defensor do homem das quatro
maiorias enquanto primeiro-ministro. Nem a nota de alienação ao povo do
"dêem-nos alguma coisa em que acreditar" mancha um bom pedaço de
pacífica portugalidade em dia da raça. Não será por acaso que Portugal aparece
em 3.º lugar no mais recente ranking dos países mais pacíficos do Mundo (só
atrás da Islândia e Nova Zelândia) ou assiste ao crescimento exponencial do
PAN: há um país que se revê benignamente em palavras fofas recortadas com avisos
à navegação. JMT capturou esse país adiado, plantado à beira-mar como se o dia
10 de Junho ainda fosse mesmo o dia da nossa raça.
Não sei se será necessário nascer
duas vezes mas, por cada português que se abate, há logo outro que se levanta.
No momento em que o "The New York Times" resolve banir cobardemente,
à boleia de um português, qualquer cartoon da sua edição internacional (após as
acusações de antissemitismo pela publicação de um cartoon de António Antunes
que retratava Donald Trump com um "kipá" e óculos escuros a ser
conduzido por um cão-guia com a cara de Benjamin Netanyahu), há um outro
português que faz a capa da revista "Time", António Guterres. O
secretário-geral das Nações Unidas é fotografado em estado de emergência na
Polinésia, fato banhado pelos joelhos nas águas de Tuvalu, alertando para a
urgência do combate às alterações climáticas num dos países na orla da submersa
devastação pela subida do nível da água nos oceanos. "Alguma coisa em que
acreditar". É preciso acreditar que não somos melhores nem piores que
ninguém mas que ainda é possível fazer diferente. E aí, confesso, teremos que
entrar no império da memória. No momento em que se debate se Vítor Constâncio,
ex-governador do Banco de Portugal, autorizou ou não Joe Berardo a levantar 350
milhões da CGD para comprar acções do BCP, é possível olhar para as alterações
climáticas como uma oportunidade para povoar áreas inóspitas da Sibéria até ao
fim do século XXI. É também por isso que na portugalidade ou no Mundo, uma
questão de perspectiva não se resolve com "algo".
*Músico e jurista
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
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