terça-feira, 16 de julho de 2019

A dívida da China e a próxima crise financeira internacional


O colapso inesperado do Baoshang, um pequeno banco chinês da Mongólia Interior, focou subitamente a atenção na fragilidade do maior e menos conhecido sistema bancário do mundo e nos «bancos-sombra».

António Abreu | AbarilAbril | opinião

A China no centro da próxima crise das dívidas?

Em alguns meios tem circulado a ideia (para não dizer palpite) de que a elevada dívida da China em todos os sectores, no estado e governos regionais, no governo, família, etc., apontaria para que a China fosse o centro da próxima crise das dívidas mundiais.

Porém, a grandeza desta dívida não constitui o quadro completo de condições das quebras de activos. O serviço da dívida é fundamental e, por sua vez, também o são os níveis de preços e a receita das vendas de produtos que geram a receita com a qual a dívida é paga. A China demonstrou disposição e tem recursos para absorver o não cumprimento de contratos ou de obrigações dentro dos respectivos prazos.

Isto é, não é o peso da dívida que é, por si só, fundamental. É verdade que a quantidade de dívida e a qualidade dessa dívida são importantes. Mas a capacidade de «pagar» a dívida (pagando também os juros quando devidos) é igualmente crítica. E essa capacidade de «serviço» depende, por sua vez, dos activos de caixa próximos disponíveis, o que depende da manutenção dos níveis de preços e níveis de vendas (ou seja, receita) e retornos de activos de caixa próximos para efectuar os pagamentos. Os vários termos e condições associados ao serviço também podem ser críticos.

O norte-americano Dr. Jack Rasmus desenvolveu três equações em anexo no seu livro Fragilidade Sistémica na Economia Global, escrito em 2016. Elas consideram o papel da dívida em relação à capacidade de pagar a mesma e os vários termos, condições e cláusulas que podem estar associados ao serviço da dívida1.


Rasmus continua a desenvolver e a actualizar essas equações, usando a análise de dados na rede para encontrar as verdadeiras relações múltiplas entre governo, famílias, empresas, dívidas bancárias, dentro de cada um desses sectores da economia (governo, família, negócios), e o grau de causalidade entre os níveis da dívida, a qualidade da dívida, o rendimento disponível para o serviço da dívida e os termos e condições do financiamento da dívida.

Se a dívida da China é muito elevada, a da Europa é ainda superior. A dívida da China pode ser maior em termos absolutos, mas a capacidade de serviço da dívida da Europa, após oito anos de recessão dupla e crescimento quase estagnado, continua mais fraca do que a capacidade da China de garantir o serviço da dívida. E há que ter em conta também países emergentes como a Argentina, a Turquia, o Paquistão ou a Índia, que tem um problema muito sério com os seus «bancos-sombra», termo atribuído ao economista Paul McCulley2 para descrever um grande segmento de intermediação financeira, que é conduzido fora dos balanços dos bancos comerciais regulados e outras instituições depositárias, definindo os bancos-sombra como «intermediários financeiros» que realizam funções de banca «sem acesso à liquidez do banco central ou garantias de crédito do sector público».

Este mercado também prospera no ambiente financeiro de baixas taxas de juros nos grandes países industrializados, que leva os investidores a buscar rendimentos mais elevados. As capacidades do serviço da dívida podem ser ainda mais fracas do que a da Europa.

O Baoshang Bank e as causas da crise bancária na China

O colapso inesperado, no final de Maio, de um pequeno banco chinês da Mongólia Interior, o Baoshang, ocorrido de surpresa, focou subitamente a atenção na fragilidade do maior e menos conhecido sistema bancário do mundo, o da República Popular da China (RPC). Então, pela primeira vez em três décadas, o Banco Popular da China (BPC) e os reguladores bancários do Estado tomaram conta de um banco insolvente. Fizeram-no aparentemente para enviar uma mensagem aos outros bancos para que eles passassem a controlar melhor os riscos dos empréstimos que realizavam. Ao fazê-lo podem ter detonado o colapso de um dos maiores e mais obscuros sistemas bancários do mundo – os bancos regionais e locais mal regulamentados da China, às vezes chamados de bancos-sombra. Tratam-se de bancos pequenos e médios, pouco regulados, que não fazem parte da grande banca estatal.

Os activos totais dos bancos-sombra pequenos e médios da China foram estimados como aproximadamente iguais aos dos quatro grandes bancos estatais regulados, o que poderia arrastar-se numa crise generalizada. Por isso Pequim entrou tão rapidamente para conter o Baoshang. O Banco Baoshang parecia saudável, mas o choque da insolvência criou uma crescente crise de risco nos mercados de empréstimos interbancários da China, não muito diferente das fases iniciais da crise interbancária de hipotecas subprime de 2007 nos Estados Unidos. E isso forçou o BPC, o banco nacional, a injectar milhares de milhões de yuans, até este momento equivalentes a 125 milhares de milhões de dólares, e a emitir uma garantia de todos os depósitos bancários para conter os receios.

O problema é que a China assumiu um dos mais impressionantes esforços de construção e modernização da história humana em apenas mais de três décadas. Cidades inteiras, dezenas de milhares de quilómetros de via férrea de alta velocidade, portos de contentores mecanizados, como nenhuma outra nação tinha feito na sua história. E tudo em dívida. O serviço dessa dívida dependeu de uma economia cujos lucros cresceram continuamente. Se a contracção da economia começasse, as consequências seriam incalculáveis.

Agora, como a economia está claramente a desacelerar, há investimentos arriscados em todo o país que entram subitamente em insolvência e os credores olham novamente para os riscos de novos empréstimos. O sector automobilístico está em queda acentuada nos últimos meses, o mesmo acontecendo com outras indústrias. Para piorar, uma grave epidemia de Febre Suína Africana está a dizimar o elevado número de porcos da China, levando a uma inflação alimentar de quase 8%. Neste quadro, o BPC está tentando, corajosamente, evitar imprimir mais dinheiro, o que criaria mais inflação e enfraqueceria o Renminbi, podendo provocar uma nova bolha financeira.

Neste quadro não é positiva a dependência da China dos mercados financeiros globais do dólar em milhões de milhões de dólares de dívida num momento em que as receitas de exportação em dólar estão a cair mesmo antes das tarifas da guerra comercial dos EUA. Se a China estivesse isolada da economia global como na década de 1970, o Estado poderia simplesmente lidar com os problemas internamente, acabar com os empréstimos insolventes e reorganizar os bancos.

Os riscos interbancários são pouco claros. O problema com os empréstimos que estão implícitos nesses números é que os créditos emitidos pelos bancos-sombra são mal controlados e agora enfrentam o não cumprimento de contratos generalizado e falências de empréstimos de alto risco que fizeram. O colapso do Baoshang Bank subitamente voltou todos os olhos para esses riscos.

Os grandes bancos hesitam em continuar a emprestar aos pequenos bancos através do mercado interbancário, forçando as taxas de empréstimo a subir. As garantias do BPC de que o caso do Baoshang é «isolado» não são susceptíveis de tranquilizar. A Bloomberg estima que, nos primeiros quatro meses de 2019, as empresas chinesas não pagaram cerca de 5,8 milhares de milhões em títulos domésticos, mais de três vezes o valor do ano anterior3.

As autoridades de Pequim, incluindo o BPC, deixaram claro, ao longo destes meses, que querem reduzir os empréstimos arriscados emitidos por bancos-sombra locais e outros países, para controlar a situação. No entanto, não será fácil restringir os empréstimos bancários locais de risco sem provocar uma onda de falências na economia chinesa em desaceleração.

Como resultado do inesperado colapso do Baoshang, o mercado de empréstimos interbancários da China está subitamente em crise.

Dificuldade em prever a crescente instabilidade da economia global

Tal como a economia contemporânea não conseguiu prever o crash de 2008-09 e sobrestimou a breve recuperação subsequente, os economistas de hoje não estão a conseguir prever com precisão a desaceleração do crescimento económico global, a fragilidade crescente e, portanto, a crescente instabilidade na economia global. O livro de Jack Rasmus oferece uma explicação alternativa, porque a economia global está a desacelerar a longo prazo e a tornar-se mais instável.

As políticas até agora fracassaram e a próxima crise pode ser ainda pior que a de  2008-09. A fragilidade sistémica «está enraizada em nove principais tendências empíricas: desaceleração do investimento real; desvio em direcção à deflação; explosão de dinheiro, crédito e liquidez; níveis crescentes de dívida global; mudança para o investimento financeiro especulativo; reestruturação dos mercados financeiros para recompensar os rendimentos do capital; restrição dos mercados de trabalho a menores rendimentos salariais; o fracasso das políticas monetárias do Banco Central; e ineficácia das políticas fiscais».

Tudo isto resulta de fragilidades nos balanços financeiros, do consumidor e do governo, exacerbando-se mutuamente – criando uma força maciça centrípeta que desagrega e rasga o todo. Este livro esclarece como o sistema de preços em geral, e os preços dos activos financeiros em particular, se transformam em forças fundamentalmente desestabilizadoras sob condições de «fragilidade sistémica». Por isso, o sistema global, tornou-se, nas últimas décadas, dependente e até viciado em injecções maciças de liquidez, com políticas fiscais contraproducentes, exacerbando a fragilidade e a instabilidade sistémica. A incapacidade dos autores dessas políticas em compreender como mudanças fundamentais na estrutura da economia capitalista global do século XXI, em particular nas estruturas financeiras e do mercado de trabalho, tornam a economia global mais frágil sistemicamente, só podem impulsioná-la para instabilidades e crises mais profundas.

Notas:
1.Jack Rasmus, Systemic Fragility in the Global Economy, Clarity Press (2016). Rasmos é autor de outros livros sobre os EUA e a economia global, incluindo Epic Recession: Prelude to Global Depression (2010) e Obama's Economy: Recovery for the Few(2012), ambos da Pluto Press, e de um programa alternativo para a recuperação económica: An Alternative Program for Economic Recovery, Edição do autor (2011). Tem um programa semanal de rádio, Alternative Visions, na Progressive Radio Network. Jack Rasmus é conselheiro económico de Jill Stein, candidata presidencial do Partido Verde dos EUA, e integra o seu ministério «sombra» (Green Shadow Cabinet) como «presidente da Reserva Federal dos EUA». Escreve quinzenalmente para a teleSUR TV da América Latina, para a Z Magazine, Znet e outras publicações impressas e electrónicas. O seu sítio na rede é https://jackrasmus.com/.
2.Paul Allen McCulley é um economista americano e ex-director da financeira PIMCO, empresa que deixou em 2010 para aderir ao Global Interdependence Center, um think tank destinado a promover o desenvolvimento global e o comércio livre. Criou os termos «momento Minsky» e «sistema bancário paralelo», que ficaram famosos durante a crise financeira de 2007-2009. É um convidado habitual da CNBC e da Bloomberg para comentários sobre investimentos. Para os «bancos-sombra» e «sistema bancário sombra» ver as ligações em «Shadow Banking», na Bloomberg, e na entrada «Sistema bancário sombra», na Wikipédia.
3.«Banking in the Shadows», Bloomberg.

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