O colapso inesperado do Baoshang,
um pequeno banco chinês da Mongólia Interior, focou subitamente a atenção na
fragilidade do maior e menos conhecido sistema bancário do mundo e nos
«bancos-sombra».
António Abreu | AbarilAbril |
opinião
A China no centro da próxima
crise das dívidas?
Em alguns meios tem circulado a
ideia (para não dizer palpite) de que a elevada dívida da China em todos os
sectores, no estado e governos regionais, no governo, família, etc., apontaria
para que a China fosse o centro da próxima crise das dívidas mundiais.
Porém, a grandeza desta dívida
não constitui o quadro completo de condições das quebras de activos. O serviço
da dívida é fundamental e, por sua vez, também o são os níveis de preços e a
receita das vendas de produtos que geram a receita com a qual a dívida é paga.
A China demonstrou disposição e tem recursos para absorver o não cumprimento de
contratos ou de obrigações dentro dos respectivos prazos.
Isto é, não é o peso da dívida
que é, por si só, fundamental. É verdade que a quantidade de dívida e a qualidade
dessa dívida são importantes. Mas a capacidade de «pagar» a dívida (pagando
também os juros quando devidos) é igualmente crítica. E essa capacidade de
«serviço» depende, por sua vez, dos activos de caixa próximos disponíveis, o
que depende da manutenção dos níveis de preços e níveis de vendas (ou seja,
receita) e retornos de activos de caixa próximos para efectuar os pagamentos.
Os vários termos e condições associados ao serviço também podem ser críticos.
O norte-americano Dr. Jack Rasmus
desenvolveu três equações em anexo no seu livro Fragilidade Sistémica na
Economia Global, escrito em 2016. Elas consideram o papel da dívida em relação
à capacidade de pagar a mesma e os vários termos, condições e cláusulas que
podem estar associados ao serviço da dívida1.
Rasmus continua a desenvolver e a
actualizar essas equações, usando a análise de dados na rede para
encontrar as verdadeiras relações múltiplas entre governo, famílias, empresas,
dívidas bancárias, dentro de cada um desses sectores da economia (governo, família,
negócios), e o grau de causalidade entre os níveis da dívida, a qualidade da
dívida, o rendimento disponível para o serviço da dívida e os termos e
condições do financiamento da dívida.
Se a dívida da China é muito
elevada, a da Europa é ainda superior. A dívida da China pode ser maior em
termos absolutos, mas a capacidade de serviço da dívida da Europa, após oito
anos de recessão dupla e crescimento quase estagnado, continua mais fraca do
que a capacidade da China de garantir o serviço da dívida. E há que ter em
conta também países emergentes como a Argentina, a Turquia, o Paquistão ou a
Índia, que tem um problema muito sério com os seus «bancos-sombra», termo
atribuído ao economista Paul McCulley2 para
descrever um grande segmento de intermediação financeira, que é conduzido fora
dos balanços dos bancos comerciais regulados e outras instituições
depositárias, definindo os bancos-sombra como «intermediários financeiros» que
realizam funções de banca «sem acesso à liquidez do banco central ou garantias
de crédito do sector público».
Este mercado também prospera no
ambiente financeiro de baixas taxas de juros nos grandes países
industrializados, que leva os investidores a buscar rendimentos mais elevados.
As capacidades do serviço da dívida podem ser ainda mais fracas do que a da
Europa.
O Baoshang Bank e as causas da
crise bancária na China
O colapso inesperado, no final de
Maio, de um pequeno banco chinês da Mongólia Interior, o Baoshang, ocorrido de
surpresa, focou subitamente a atenção na fragilidade do maior e menos conhecido
sistema bancário do mundo, o da República Popular da China (RPC). Então, pela
primeira vez em três décadas, o Banco Popular da China (BPC) e os reguladores
bancários do Estado tomaram conta de um banco insolvente. Fizeram-no aparentemente
para enviar uma mensagem aos outros bancos para que eles passassem a controlar
melhor os riscos dos empréstimos que realizavam. Ao fazê-lo podem ter detonado
o colapso de um dos maiores e mais obscuros sistemas bancários do mundo – os
bancos regionais e locais mal regulamentados da China, às vezes chamados de
bancos-sombra. Tratam-se de bancos pequenos e médios, pouco regulados, que não
fazem parte da grande banca estatal.
Os activos totais dos
bancos-sombra pequenos e médios da China foram estimados como aproximadamente
iguais aos dos quatro grandes bancos estatais regulados, o que poderia
arrastar-se numa crise generalizada. Por isso Pequim entrou tão rapidamente
para conter o Baoshang. O Banco Baoshang parecia saudável, mas o choque da
insolvência criou uma crescente crise de risco nos mercados de empréstimos
interbancários da China, não muito diferente das fases iniciais da crise
interbancária de hipotecas subprime de 2007 nos Estados Unidos. E isso forçou o
BPC, o banco nacional, a injectar milhares de milhões de yuans, até este
momento equivalentes a 125 milhares de milhões de dólares, e a emitir uma
garantia de todos os depósitos bancários para conter os receios.
O problema é que a China assumiu
um dos mais impressionantes esforços de construção e modernização da história
humana em apenas mais de três décadas. Cidades inteiras, dezenas de milhares de
quilómetros de via férrea de alta velocidade, portos de contentores mecanizados,
como nenhuma outra nação tinha feito na sua história. E tudo em dívida. O
serviço dessa dívida dependeu de uma economia cujos lucros cresceram
continuamente. Se a contracção da economia começasse, as consequências seriam
incalculáveis.
Agora, como a economia está
claramente a desacelerar, há investimentos arriscados em todo o país que entram
subitamente em insolvência e os credores olham novamente para os riscos de
novos empréstimos. O sector automobilístico está em queda acentuada nos últimos
meses, o mesmo acontecendo com outras indústrias. Para piorar, uma grave
epidemia de Febre Suína Africana está a dizimar o elevado número de porcos da
China, levando a uma inflação alimentar de quase 8%. Neste quadro, o BPC está
tentando, corajosamente, evitar imprimir mais dinheiro, o que criaria mais
inflação e enfraqueceria o Renminbi, podendo provocar uma nova bolha
financeira.
Neste quadro não é positiva a
dependência da China dos mercados financeiros globais do dólar em milhões de
milhões de dólares de dívida num momento em que as receitas de exportação em
dólar estão a cair mesmo antes das tarifas da guerra comercial dos EUA. Se a
China estivesse isolada da economia global como na década de 1970, o Estado
poderia simplesmente lidar com os problemas internamente, acabar com os
empréstimos insolventes e reorganizar os bancos.
Os riscos interbancários são
pouco claros. O problema com os empréstimos que estão implícitos nesses números
é que os créditos emitidos pelos bancos-sombra são mal controlados e agora enfrentam
o não cumprimento de contratos generalizado e falências de empréstimos de alto
risco que fizeram. O colapso do Baoshang Bank subitamente voltou todos os olhos
para esses riscos.
Os grandes bancos hesitam em
continuar a emprestar aos pequenos bancos através do mercado interbancário,
forçando as taxas de empréstimo a subir. As garantias do BPC de que o caso do
Baoshang é «isolado» não são susceptíveis de tranquilizar. A Bloomberg estima
que, nos primeiros quatro meses de 2019, as empresas chinesas não pagaram cerca
de 5,8 milhares de milhões em títulos domésticos, mais de três vezes o valor do
ano anterior3.
As autoridades de Pequim,
incluindo o BPC, deixaram claro, ao longo destes meses, que querem reduzir os
empréstimos arriscados emitidos por bancos-sombra locais e outros países, para
controlar a situação. No entanto, não será fácil restringir os empréstimos
bancários locais de risco sem provocar uma onda de falências na economia
chinesa em desaceleração.
Como resultado do inesperado
colapso do Baoshang, o mercado de empréstimos interbancários da China está
subitamente em crise.
Dificuldade em prever a crescente
instabilidade da economia global
Tal como a economia contemporânea
não conseguiu prever o crash de 2008-09 e sobrestimou a breve recuperação
subsequente, os economistas de hoje não estão a conseguir prever com precisão a
desaceleração do crescimento económico global, a fragilidade crescente e,
portanto, a crescente instabilidade na economia global. O livro de Jack Rasmus
oferece uma explicação alternativa, porque a economia global está a desacelerar
a longo prazo e a tornar-se mais instável.
As políticas até agora
fracassaram e a próxima crise pode ser ainda pior que a de 2008-09. A fragilidade sistémica
«está enraizada em nove principais tendências empíricas: desaceleração do
investimento real; desvio em direcção à deflação; explosão de dinheiro, crédito
e liquidez; níveis crescentes de dívida global; mudança para o investimento
financeiro especulativo; reestruturação dos mercados financeiros para
recompensar os rendimentos do capital; restrição dos mercados de trabalho a
menores rendimentos salariais; o fracasso das políticas monetárias do Banco
Central; e ineficácia das políticas fiscais».
Tudo isto resulta de fragilidades
nos balanços financeiros, do consumidor e do governo, exacerbando-se mutuamente
– criando uma força maciça centrípeta que desagrega e rasga o todo. Este livro
esclarece como o sistema de preços em geral, e os preços dos activos
financeiros em particular, se transformam em forças fundamentalmente
desestabilizadoras sob condições de «fragilidade sistémica». Por isso, o
sistema global, tornou-se, nas últimas décadas, dependente e até viciado em
injecções maciças de liquidez, com políticas fiscais contraproducentes,
exacerbando a fragilidade e a instabilidade sistémica. A incapacidade dos
autores dessas políticas em compreender como mudanças fundamentais na estrutura
da economia capitalista global do século XXI, em particular nas estruturas
financeiras e do mercado de trabalho, tornam a economia global mais frágil
sistemicamente, só podem impulsioná-la para instabilidades e crises mais
profundas.
Notas:
1.Jack
Rasmus, Systemic Fragility in the Global Economy, Clarity Press (2016).
Rasmos é autor de outros livros sobre os EUA e a economia global,
incluindo Epic Recession: Prelude to Global Depression (2010) e Obama's
Economy: Recovery for the Few(2012), ambos da Pluto Press, e de um programa
alternativo para a recuperação económica: An
Alternative Program for Economic Recovery, Edição do autor (2011). Tem um
programa semanal de rádio, Alternative Visions, na Progressive Radio Network. Jack
Rasmus é conselheiro económico de Jill Stein, candidata presidencial
do Partido Verde dos EUA, e integra o seu ministério «sombra» (Green Shadow Cabinet) como
«presidente da Reserva Federal dos EUA». Escreve quinzenalmente para
a teleSUR TV da América Latina, para a Z Magazine, Znet e
outras publicações impressas e electrónicas. O seu sítio na rede é https://jackrasmus.com/.
2.Paul
Allen McCulley é um economista americano e ex-director da financeira PIMCO,
empresa que deixou em 2010 para aderir ao Global Interdependence Center, um
think tank destinado a promover o desenvolvimento global e o comércio livre.
Criou os termos «momento Minsky» e «sistema bancário paralelo», que ficaram
famosos durante a crise financeira de 2007-2009. É um convidado habitual
da CNBC e da Bloomberg para comentários sobre
investimentos. Para os «bancos-sombra» e «sistema bancário sombra» ver as
ligações em «Shadow Banking», na Bloomberg, e na entrada «Sistema bancário sombra», na Wikipédia.
3.«Banking
in the Shadows», Bloomberg.
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