segunda-feira, 15 de julho de 2019

Chomsky mergulha na estratégia de Trump


Para o intelectual dissidente, há uma lógica brutal na aparente loucura do presidente. Reeleger-se, tirando proveito do declínio do debate público nos EUA; e liderar a direita global — único caminho para manter a supremacia de Washington

Entrevista a C.J. Polychroniou no Truthout | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho

Não é tarefa fácil dar sentido à política exterior atual dos EUA. Trump é violentamente imprevisível e desprovido de qualquer tipo de coerência em sua visão das relações internacionais, parecendo acreditar que só se exige “a arte de negociar” para transformar “inimigos” em amigos. Entretanto, desde sua ascensão ao poder, o fim da hegemonia dos EUA tornou-se visível.

Na entrevista exclusiva a seguir, Noam Chomsky – um dos críticos mais sagazes da política exterior dos EUA no pós-guerra – ilumina esta política, inclusive as relações de Trump com os líderes da Coreia do Norte, Rússia e China, assim como o chamado “Plano de Paz do Oriente Médio” deles.

Em 2016, Trump chamou a política exterior dos EUA de “um desastre completo e total”, alegando que os governos anteriores na era pós-Guerra Fria eram guiados por expectativas irrealistas que prejudicaram os interesses nacionais do país. Desde que assumiu, ele tirou Washington de uma série de acordos internacionais, exigiu que nações aliadas paguem por proteção e buscou promover os interesses econômicos dos EUA por meio de tarifas e protecionismo. Essas ações levaram muitos analistas a falar numa nova era das relações norte-americanas com o mundo. Qual a sua visão disso tudo?

Um dos comentários mais pertinentes que vi sobre a política exterior de Trump é de um artigo do The New Republic escrito por David Roth, editor de um blog de esportes: “O espetáculo de analistas e líderes de opinião analisando as ações de um homem sem competência ou capacidade de análise é uma sátira corrosiva – menos por causa de quanto essa análise falhou do que por causa de quão é deslocada. Não há nada para analisar, nenhum significado oculto ou elisões táticas ou uma lenta campanha estratégica”.

Isso parece preciso. Trata-se de um homem, afinal, que descarta a informação e análises de seu enorme sistema de “inteligência” em favor do que ocorre no programa Fox e Friends, onde todos lhe dizem o quanto o amam. Com todo o ceticismo devido à “inteligência”, é pura loucura.

E isso continua, de modo quase surreal. Na recente conferência do G20, perguntaram a Trump sobre a declaração de Putin, de que o liberalismo do Ocidente está obsoleto. Trump deve ter pensado que estava falando sobre a Califórnia: liberalismo a oeste... “Putin vê o que está acontecendo. E eu suponho, se você vê o que se passa em Los Angeles, é tão triste; e o que está acontecendo em São Francisco e algumas outras cidades governadas por um grupo extraordinário de pessoas à esquerda”.


Perguntaram-lhe por que só os EUA estão se recusando a se juntar ao G20 no compromisso de enfrentar o aquecimento global. Respondeu elogiando a qualidade do ar e da água dos EUA, aparentemente não entender a diferença.

É difícil encontrar um comentário sobre política exterior que destoe dessa norma impressionante. Os esforços para enxergar uma estratégia global coerente parecem levar a uma espécie de sátira ácida.

Não que não haja política coerente. Há uma política que emerge do caos – o tipo que poderíamos esperar de um homem egoísta que tem um princípio: Eu! A consequência é que qualquer tratado ou acordo conseguido pelos seus predecessores (particularmente o desprezado Obama) é o pior negócio da história, que será substituído pelo Grande Negócio da História, feito pelo negociador mais bem-sucedido de todos os tempos e maior presidente norte-americano. Da mesma forma, qualquer outra ação realizada no passado foi equivocada e prejudicou os EUA, mas será corrigida pelo “gênio resistente”, agora encarregado de defender o país daqueles que o estão enganando e atacando por todos os lados.

Não faz diferença quais serão as consequências – terríveis, decentes, indiferentes – desde que as imagens sejam preservadas.

Pode-se lembrar que um presidente que recebe esse retrato do mundo da Fox and Friends não é um fenômeno inteiramente novo. Há quarenta anos, um predecessor reverenciado (Ronald Reagan) aprendia sobre o mundo com os filmes e estava tão encantado que até acreditou ter participado da libertação dos campos de concentração nazistas (mesmo não saindo da Califórnia).

Tudo isso nos diz alguma coisa sobre a política moderna. Mas Trump não pode ser comparado a Reagan, não mais do que a farsa pode ser comparada à tragédia, parafraseando Marx.

É compreensível que a farsa esconda o ridículo, e sem dúvida há gente saboreando a próxima foto de Trump com o possível premiê britânico, Boris Johnson, defendendo a civilização anglo-americana. Mas, para o mundo, é terrivelmente sério: desde o risco de destruição ambiental e crescentes ameaças de uma guerra nuclear terminal até uma longa lista de outros crimes e horrores.

A crise de política externa mais perigosa no curto prazo é o conflito com o Irã, considerado a fonte oficial de todo o mal. O Irã precisaria acabar com sua “agressão” e tornar-se um “país normal” – como a Arábia Saudita, que está fazendo rápido progresso no mundo de fantasia de Trump, inclusive “um ótimo trabalho na Arábia Saudita do ponto de vista das mulheres”, explicou ele no G20.

As acusações contra o Irã ressoam através das câmaras de eco da mídia com pouco esforço para aferir a validade das “denúncias” – que dificilmente resistem a análise. O que quer que se pense sobre o comportamento internacional iraniano, Teerã não tem a mínima condição de competir com Washington para ver quem se enquadra melhor como “Estado vilão”.

No mundo real, o unilateralismo dos EUA destruiu um acordo nuclear (chamado de JCPOA) que ia bem, com acusações absurdas não aceitas por virtualmente ninguém com um mínimo de credibilidade. Além disso, impôs sanções extremamente duras, destinadas a punir o povo iraniano e minar sua economia. O governo dos EUA usa também seu enorme poder econômico, incluindo controle virtual do sistema financeiro internacional, para obrigar os outros a obedecer aos ditames de Washington. Nada disso tem a menor legitimidade – e o mesmo é verdade no caso de Cuba e de outros. O mundo pode protestar. Em novembro passado, a Assembleia Geral da ONU condenou outra vez o embargo dos EUA contra Cuba, por 189 a 2 (só os EUA e Israel votaram contra a resolução). Mas em vão. A estranha ideia dos fundadores do país, de que se deve “digno respeito às opiniões da humanidade” desapareceu há muito e os dolorosos gemidos do mundo passam em silêncio.

Há muito mais a dizer sobre o recurso, pelos EUA, a sanções com alcance extraterritorial, para punir populações. É uma forma de “excepcionalismo norte-americano” que encontra seu lugar naquilo que Nick Turse chamou de “o sistema de sofrimento norte-americano” quando expôs, de forma devastadora, o assalto dos EUA à população civil do Vietnã do Sul. O direito de se engajar nessa prática perversa é aceito como normal no sistema doutrinário dos EUA, com pouco esforço para analisar os verdadeiros motivos em cada caso, a legitimidade de tais políticas ou mesmo a sua legalidade. São assuntos sem a menor relevância.

Em relação ao Irã, no sistema doutrinário da mídia governamental, a única questão que surge é se a vítima irá responder de alguma maneira, talvez “violando” o acordo que os EUA demoliram, talvez com algum outro ato. E se esta vítima responde, obviamente irá merecer punição brutal.

Segundo a mídia e os funcionários dos EUA, o Irã “viola” acordos. Os EUA meramente “retiram-se” deles. A postura é uma reminiscência do comentário do grande escritor anarquista e ativista dos Wobblies, T-Bone Slim: “somente os pobres infringem as leis – os ricos esquivam-se delas”.

Os analistas tentam duramente detectar alguma grande estratégia por trás do assalto dos EUA ao Irã. É outro exercício de inutilidade. É fácil perceber os objetivos dos criminosos que estão em volta de Trump. Para Mike Pompeo e John Bolton, o objetivo é esmagar os hereges – de uma distância segura, de modo a não gerar custos. E danem-se as consequências. O próprio Trump parece ver isso de forma bem diferente. Quem sabe se ele de fato cancelou um ataque militar por causa de sua compaixão por 150 possíveis vítimas? A única evidência vem de uma fonte que não é famosa por sua credibilidade. Mas parece claro que ele não quer uma guerra, o que estragaria os jogos que tanto aprecia, e prejudicaria suas perspectivas eleitorais. É muito melhor chegar às eleições enfrentando a ameaça cósmica de um inimigo mau, que apenas um Líder Corajoso poderá deter — não algum daqueles “democratas fracotes” e, certamente, nenhuma “mera” mulher. Reagan também agarrou-se a esse princípio quando enfrentou com força a ameaça da Nicarágua, amarrando suas botas de caubói, avisando que as tropas nicaraguenses estavam a apenas dois dias de distância de Harlingen, no Texas, e declarando emergência nacional por causa da “extraordinária ameaça” à segurança e à sobrevivência dos EUA.

O histórico do conflito com o Irã tem fatos inenarráveis. A alegada ameaça das armas nucleares iranianas pode ser prontamente superada com a aceitação da demanda dos Estados Árabes, do Irã e praticamente do mundo inteiro, de estabelecer uma zona livre de armamentos no Oriente Médio, uma política diante da qual os EUA e o Reino Unidos têm uma obrigação especial, e que os EUA bloqueiam regularmente – por razões que não chegam a ser obscuras. Se Washington reconhecesse oficialmente a existência do arsenal nuclear de Israel, o enorme fluxo de ajuda a Tel Aviv seria ilegal sob a lei norte-americana. Por isso, é claro, as armas de destruição em massa de Israel não podem ser objeto de inspeção.

E as tarifas, então? O “homem das tarifas” nos diz que elas estão destinadas a promover os interesses econômicos dos EUA. Se ele acredita nisso ou não, ou se dá importância, não temos a menor ideia. Pronunciamentos políticos raramente podem ser tomados por seu valor de face, e Trump não é notório por sua sinceridade e credibilidade.

Há, para dizer caridosamente, escassos indícios para Trump gabar-se de que suas tarifas estão forçando a China a despejar “bilhões de dólares” no Departamento do Tesouro. “Nunca tivemos 10 cent vindos para nosso Tesouro” sob os governos anteriores, explicou ele. “Agora estão chegando bilhões”. No mundo real, os custos das tarifas são pagos não pela China, mas pelas empresas norte-americanas (que podem escolher compensá-las com a redução de salários) e consumidores, sobrecarregados com um imposto altamente regressivo, que recai principalmente entre os menos abastados. Em suma, as tarifas de Trump são mais uma de suas políticas para prejudicar trabalhadores e pobres.

É verdade, contudo, que estão envolvidos “bilhões”. Um estudo do Banco Central (Fed) de Nova York em parceria com as universidades de Princeton e Columbia estima que as empresas e consumidores norte-americanos pagaram US$ 3 bilhões por mês em impostos adicionais por causa da taxação sobre produtos chineses e sobre alumínio e aço provenientes de outros lugares do mundo – além do US$ 1,4 bilhão que custou a empresas norte-americanas a perda de eficiência, em 2018.

A guerra tarifária contra a China pode levar montadoras de automóveis a mudar suas operações da China para o Vietnã e outros países com custos de mão-de-obra ainda mais baixos. Mas, para a economia dos EUA a decisão mais típica é a da Apple, alguns dias atrás, de mudar a montagem de computadores Mac Pro do Texas para a China.

A guerra de tarifas de Trump parece relacionada principalmente à política doméstica, elaborada de olho na próxima eleição. Ele tem de convencer de algum modo sua base de eleitores de que é a pessoa que protege os agoniados norte-americanos, que estão sofrendo o “massacre” causados por seus predecessores – o que é até bem real para muitos deles, como dramaticamente ilustrado pela impressionante queda da expectativa de vida dos americanos em idade de trabalho, atribuída a “mortes de desespero”, um fenômeno desconhecido em sociedades desenvolvidas. O truque de Trump é acenar para um grande clube de seguidores e ameaçar outros com terríveis ameaças, para que que parem de torturar seu pobre país e concordem em “jogar de forma justa”. Quando tiramos isso tudo da frente, nos deparamos com outro quadro, como no caso da nefasta ameaça do Irã. Mas o que importa para o jogo é a “realidade alternativa” que os conspiradores estão inventando.

Com pouco sucesso. É um erro subestimar Trump. Ele é um demagogo e manipulador esperto, que está conseguindo manter a fidelidade das multidões de adoradores, crentes de que luta por eles, contra as odiadas elites, e ao mesmo tempo assegurar que o principal eleitorado republicano, extremamente rico e com poder corporativo, vá muito bem, apesar de algumas queixas. Estão, de fato, saindo-se como bandidos com a ajuda de Trump e seus associados.

É notável ver como uma realidade alternativa é efetivamente criada. O caso do Irã é típico, mas os sucessos são muito maiores. Considere a acusação de que “a China está nos matando”, roubando nossos empregos, junto com os “ladrões mexicanos”. Como a China está nos matando? A China tinha uma arma na cabeça de Tim Cook, o CEO da Apple, obrigando-o a acabar com o último vestígio de produção dos computadores Apple nos EUA? Ou a Boeing, GM, Microsoft, ou qualquer um dos outros que mudaram a produção para a China? Ou as decisões foram tomadas por banqueiros e investidores nas salas de reunião corporativas de Nova York e Chicago? Se é assim, a solução é mostrar os punhos para a China ou mudar o modo de tomar decisões nos EUA – transferindo-as para os trabalhadores e comunidades, dando a eles um papel substancial, como sugeriria a teoria democrática? Parece uma questão bastante óbvia. Estranhamente, ela não é levantada, enquanto o mantra oficial se mantém imperturbável.

Fala-se que a China impõe condições desiguais aos investidores, demandando transferência de tecnologia. Talvez. Se à Apple e às outras não agradam essas condições, elas estão livres para não investir na China. Adoradores da livre empresa e do mercado certamente concordariam.

Outra acusação é de que a China está perseguindo injustamente uma política industrial que subsidie indústrias favorecidas. Se sim, os líderes políticos e analistas dos EUA deveriam estar aplaudindo. De acordo com as doutrinas econômicas que professam, a China está prejudicando sua economia, ao desprezar o modelo de desenvolvimento supostamente ideal, do livre mercado, contribuindo assim com a hegemonia norte-americana. Qual é o problema?

O que parece ser uma acusação mais crível é que a China está violando o regime de direitos de propriedade intelectual (TRIPS) definido na Organização Mundial de Comércio. Suponhamos que sim. Várias questões surgem. Quem ganha, quem perde? Em grande medida, os consumidores norte-americanos ganham, enquanto a Big Farma, a Microsoft e outras garantiram direitos de patente exorbitantes e sem precedentes, sob TRIPS, que sofrem alguma redução em seus lucros enormes. 

Isso nos leva a uma outra questão: o regime TRIPS é legítimo? Foi, é verdade, estabelecido por um acordo interestatal. Mas quem tomou aquelas decisões? O público sequer sabia do que estava acontecendo. Dificilmente. Os mal denominados “acordos de livre mercado” são mais adequadamente descritos como acordos de direitos dos investidores, com frequência de pouca relação com o mercado em qualquer sentido significativo. Não por acaso, servem aos interesses de quem os concebe — os grandes investidores.

Outros elementos das queixas de que “a China está nos matando” fazem sentido. É abertamente manifesta a preocupação de que o progresso chinês deve deixar os EUA pra trás – por exemplo, de que a tecnologia Huawei, mais barata e superior, pode dar a eles uma “injusta vantagem” no estabelecimento de redes 5G. É claro que deve ser detida, argumentam as autoridades dos EUA, juntamente com o desenvolvimento econômico chinês em geral. Suas preocupações são reminiscentes dos anos 80, quando as técnicas superiores de fabricação japonesas estavam minando as empresas ineficientes dos EUA, e o governo Reagan teve de intervir para bloquear as importações japonesas por meio de “restrições voluntárias às exportações”. No caso, “voluntário” significa “concordo ou concordo”…

Há boas razões para concordar que a visão dos “especialistas” que buscam detectar uma grande estratégia por trás das travessuras de Trump é “a mais pura sátira corrosiva”. Mas há uma estratégia. E está funcionando bastante bem.

Um dos objetivos declarados de Trump, por trás de seu entendimento da diplomacia, é “transformar inimigos em amigos”. Há alguma evidência de que ele está perseguindo esse objetivo diplomático? Tenho em mente, em particular, os casos da Coreia do Norte e da Rússia.

Nesse caso, o objetivo declarado parece real. Ele provoca o ridículo e amarga condenação em todo o espectro político dominante. Mas quaisquer que sejam os motivos de Trump, a política geral faz algum sentido.

Declaração Panmunjom das duas Coreias, em abril de 2018, foi um evento altamente significativo. Ele falava sobre os países continuarem em busca de relações amigáveis e de eventual desnuclearização “por acordo mútuo”, sem a interferência externa que no passado frequentemente minou o que pareciam iniciativas promissoras: as repetidas interferências dos EUA, como mostram os registros históricos. Nessa declaração e acordos relacionados, pela primeira vez as duas Coreias definiram calendários específicos e tomaram medidas concretas e promissoras para a redução das tensões e o desarmamento – processos que deveriam ser bem-vindos e apoiados.

Para seu crédito, Trump aderiu amplamente ao requisito das duas Coreias. Seu recente encontro com o presidente norte-coreano Kim na zona desmilitarizada, o cruzamento simbólico de fronteiras, e possíveis acordos provisórios são passos que, com boa vontade, podem ter consequências salutares. Podem facilitar esforços das duas Coreias para prosseguir no difícil caminho em direção a uma acomodação e podem oferecer uma maneira de aliviar as sanções que estão bloqueando a ajuda terrivelmente necessária ao Norte e contribuindo com uma grande crise humanitária por lá. Tudo isso pode enfurecer comentaristas de todo o espectro político. Mas se há uma maneira melhor de trazer paz à península e dar passos em direção à desnunclearização e à reforma interna da ditadura norte-coreana, ninguém ainda nos informou sobre ela.

A Rússia de Putin não precisa ser transformada numa “amiga”, mas relações cooperativas com ela são um pré-requisito para a sobrevivência.

O histórico de Trump nesta questão é controverso. A Revisão de Postura Nuclear (Nuclear Posture Review – fevereiro de 2018) apresenta ameaças muito severas, ampliadas pela decisão inacreditável de levar adiante o desenvolvimento de armas hipersônicas. Os adversários estão fazendo o mesmo. A abordagem certa é a da diplomacia e negociações para prevenir um caminho suicida, mas não há nenhum sinal disso. O mesmo é verdade quanto ao Tratado INF negociado por Reagan e Gorbachev, que reduziu significativamente os riscos de uma guerra terminal.

Cada lado reclama que o outro está violando o tratado. A abordagem correta é fazer uma análise investigativa neutra das reclamações e negociar o fim dessas violações à medida em que são descobertas. A pior abordagem é deixar o tratado, como estão fazendo os EUA, seguidos pela Rússia. As mesmas considerações valem para o outro grande tratado de controle de armas, o New Start. Em todo o caso, parece que John Bolton, consistente em sua perversidade, conseguiu bloquear o progresso e empurrar a política em direções extremamente sinistras.

Qual a sua análise sobre o plano do governo Trump para o Oriente Médio? E quão instrumental é o papel de seu genro, Jared Kushner, nisso?

Presumo que Kushner é o principal arquiteto, como se noticia. O que foi divulgado até aqui é bastante simples e consistente com as políticas anteriores do governo que autorizaram a tomada das colinas de Golan por Israel e o desenvolvimento da Grande Jerusalém, todas violando as ordens do Conselho de Segurança da ONU (apoiadas na época pelos EUA). Ao mesmo tempo, a escassa ajuda dos EUA aos palestinos foi encerrada com o argumento de que eles não agradecem educadamente ao patrão quando mina seus direitos mais elementares.

O plano Kushner leva isso adiante. Deve-se garantir a Israel os melhores votos por sua liderança expansionista. Os palestinos devem ser excluídos dos fundos de desenvolvimento fornecidos por outros (não pelos EUA). A essência do “Acordo do Século” de Trump-Kushner foi captada de modo sucinto pelo embaixador israelense na ONU Danny Danon, no The New York Times: os palestinos deveriam perceber que o jogo acabou e “se render”. Então pode haver paz, outro triunfo do “grande negociador”.

Neste caso há um objetivo estratégico subjacente: consolidar a aliança de Estados reacionários (as monarquias do petróleo, Egito, Israel) como base do poder dos EUA na região. Isso de modo algum é novidade, embora as variantes anteriores tinham de certo modo diferentes formas e fossem menos visíveis do que hoje.

Esses objetivos estão dentro de uma estratégia mais ampla de formar uma aliança global reacionária sob a tutela dos EUA, incluindo “democracias não-liberais” da Europa Oriental (Orbán da Hungria, etc.) e o grotesco Jair Bolsonaro do Brasil, que, entre outras virtudes, compartilha com Trump a dedicação em minar perspectivas de um ambiente em que se possa viver, quando abre a Amazônia à exploração de seus amigos do agronegócio e da mineração. Essa é uma estratégia natural para o atual partido Republicano de Trump-McConnell, bem integrado à extrema-direita no espectro internacional, muito além dos partidos “populistas” de direita europeus, que até há pouco eram considerados franjas desprezíveis.

Sem lhe pedir que desempenhe o papel de Cassandra, como pensa que a história irá avaliar a posição de Trump sobre mudanças climáticas, que é de longe o maior desafio global que o mundo enfrenta?

Tomo emprestada a frase de Wittgenstein, com um pequeno ajuste, “aquilo que não se pode falar educadamente, é preciso silenciar”.

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