Para o intelectual dissidente, há
uma lógica brutal na aparente loucura do presidente. Reeleger-se, tirando
proveito do declínio do debate público nos EUA; e liderar a direita global —
único caminho para manter a supremacia de Washington
Entrevista a C.J. Polychroniou no Truthout |
Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho
Não é tarefa fácil dar sentido à
política exterior atual dos EUA. Trump é violentamente imprevisível e
desprovido de qualquer tipo de coerência em sua visão das relações
internacionais, parecendo acreditar que só se exige “a arte de negociar” para
transformar “inimigos” em amigos. Entretanto, desde sua ascensão ao poder, o
fim da hegemonia dos EUA tornou-se visível.
Na entrevista exclusiva a seguir,
Noam Chomsky – um dos críticos mais sagazes da política exterior dos EUA no
pós-guerra – ilumina esta política, inclusive as relações de Trump com os
líderes da Coreia do Norte, Rússia e China, assim como o chamado “Plano de Paz
do Oriente Médio” deles.
Em 2016, Trump chamou a política
exterior dos EUA de “um desastre completo e total”, alegando que os governos
anteriores na era pós-Guerra Fria eram guiados por expectativas irrealistas que
prejudicaram os interesses nacionais do país. Desde que assumiu, ele tirou
Washington de uma série de acordos internacionais, exigiu que nações aliadas
paguem por proteção e buscou promover os interesses econômicos dos EUA por meio
de tarifas e protecionismo. Essas ações levaram muitos analistas a falar numa
nova era das relações norte-americanas com o mundo. Qual a sua visão disso tudo?
Um dos comentários mais
pertinentes que vi sobre a política exterior de Trump é de um artigo do The
New Republic escrito por David Roth, editor de um blog de esportes: “O
espetáculo de analistas e líderes de opinião analisando as ações de um homem
sem competência ou capacidade de análise é uma sátira corrosiva – menos por
causa de quanto essa análise falhou do que por causa de quão é deslocada. Não
há nada para analisar, nenhum significado oculto ou elisões táticas ou uma
lenta campanha estratégica”.
Isso parece preciso. Trata-se de
um homem, afinal, que descarta a informação e análises de seu enorme sistema de
“inteligência” em favor do que ocorre no programa Fox e Friends, onde
todos lhe dizem o quanto o amam. Com todo o ceticismo devido à “inteligência”,
é pura loucura.
E isso continua, de modo quase
surreal. Na recente conferência do G20, perguntaram a Trump sobre a declaração
de Putin, de que o liberalismo do Ocidente está obsoleto. Trump deve ter
pensado que estava falando sobre a Califórnia: liberalismo a oeste... “Putin vê
o que está acontecendo. E eu suponho, se você vê o que se passa em Los Angeles,
é tão triste; e o que está acontecendo em São Francisco e algumas outras
cidades governadas por um grupo extraordinário de pessoas à esquerda”.
Perguntaram-lhe por que só os EUA
estão se recusando a se juntar ao G20 no compromisso de enfrentar o aquecimento
global. Respondeu elogiando a qualidade do ar e da água dos EUA, aparentemente
não entender a diferença.
É difícil encontrar um comentário
sobre política exterior que destoe dessa norma impressionante. Os esforços para
enxergar uma estratégia global coerente parecem levar a uma espécie de sátira
ácida.
Não que não haja política
coerente. Há uma política que emerge do caos – o tipo que poderíamos esperar de
um homem egoísta que tem um princípio: Eu! A consequência é que
qualquer tratado ou acordo conseguido pelos seus predecessores (particularmente
o desprezado Obama) é o pior negócio da história, que será substituído pelo
Grande Negócio da História, feito pelo negociador mais bem-sucedido de todos os
tempos e maior presidente norte-americano. Da mesma forma, qualquer outra ação
realizada no passado foi equivocada e prejudicou os EUA, mas será corrigida
pelo “gênio resistente”, agora encarregado de defender o país daqueles que o
estão enganando e atacando por todos os lados.
Não faz diferença quais serão as
consequências – terríveis, decentes, indiferentes – desde que as imagens sejam
preservadas.
Pode-se lembrar que um presidente
que recebe esse retrato do mundo da Fox and Friends não é um fenômeno
inteiramente novo. Há quarenta anos, um predecessor reverenciado (Ronald
Reagan) aprendia sobre o mundo com os filmes e estava tão encantado que até acreditou ter
participado da libertação dos campos de concentração nazistas (mesmo não saindo
da Califórnia).
Tudo isso nos diz alguma coisa
sobre a política moderna. Mas Trump não pode ser comparado a Reagan, não mais
do que a farsa pode ser comparada à tragédia, parafraseando Marx.
É compreensível que a farsa
esconda o ridículo, e sem dúvida há gente saboreando a próxima foto de Trump
com o possível premiê britânico, Boris Johnson, defendendo a civilização
anglo-americana. Mas, para o mundo, é terrivelmente sério: desde o risco de
destruição ambiental e crescentes ameaças de uma guerra nuclear terminal até
uma longa lista de outros crimes e horrores.
A crise de política externa mais
perigosa no curto prazo é o conflito com o Irã, considerado a fonte oficial de
todo o mal. O Irã precisaria acabar com sua “agressão” e tornar-se um “país normal”
– como a Arábia Saudita, que está fazendo rápido progresso no mundo de fantasia
de Trump, inclusive “um ótimo trabalho na Arábia Saudita do ponto de vista das
mulheres”, explicou ele no G20.
As acusações contra o Irã ressoam
através das câmaras de eco da mídia com pouco esforço para aferir a validade
das “denúncias” – que dificilmente resistem a análise. O que quer que se pense
sobre o comportamento internacional iraniano, Teerã não tem a mínima condição
de competir com Washington para ver quem se enquadra melhor como “Estado vilão”.
No mundo real, o unilateralismo
dos EUA destruiu um acordo nuclear (chamado de JCPOA) que ia bem, com
acusações absurdas não aceitas por virtualmente ninguém com um mínimo de
credibilidade. Além disso, impôs sanções extremamente duras, destinadas a punir
o povo iraniano e minar sua economia. O governo dos EUA usa também seu enorme
poder econômico, incluindo controle virtual do sistema financeiro
internacional, para obrigar os outros a obedecer aos ditames de Washington. Nada
disso tem a menor legitimidade – e o mesmo é verdade no caso de Cuba e de
outros. O mundo pode protestar. Em novembro passado, a Assembleia Geral da ONU
condenou outra vez o embargo dos EUA contra Cuba, por 189 a 2 (só os EUA e Israel
votaram contra a resolução). Mas em vão. A estranha ideia dos fundadores do
país, de que se deve “digno respeito às opiniões da humanidade” desapareceu há
muito e os dolorosos gemidos do mundo passam em silêncio.
Há muito mais a dizer sobre o
recurso, pelos EUA, a sanções com alcance extraterritorial, para punir
populações. É uma forma de “excepcionalismo norte-americano” que encontra seu
lugar naquilo que Nick Turse chamou de “o sistema de sofrimento
norte-americano” quando expôs, de forma devastadora, o assalto dos EUA à população
civil do Vietnã do Sul. O direito de se engajar nessa prática perversa é aceito
como normal no sistema doutrinário dos EUA, com pouco esforço para analisar os
verdadeiros motivos em cada caso, a legitimidade de tais políticas ou mesmo a
sua legalidade. São assuntos sem a menor relevância.
Em relação ao Irã, no sistema
doutrinário da mídia governamental, a única questão que surge é se a vítima irá
responder de alguma maneira, talvez “violando” o acordo que os EUA demoliram,
talvez com algum outro ato. E se esta vítima responde, obviamente irá merecer
punição brutal.
Segundo a mídia e os funcionários
dos EUA, o Irã “viola” acordos. Os EUA meramente “retiram-se” deles. A postura
é uma reminiscência do comentário do grande escritor anarquista e ativista dos
Wobblies, T-Bone Slim:
“somente os pobres infringem as leis – os ricos esquivam-se delas”.
Os analistas tentam duramente
detectar alguma grande estratégia por trás do assalto dos EUA ao Irã. É outro
exercício de inutilidade. É fácil perceber os objetivos dos criminosos que
estão em volta de Trump. Para Mike Pompeo e John Bolton, o objetivo é esmagar
os hereges – de uma distância segura, de modo a não gerar custos. E danem-se as
consequências. O próprio Trump parece ver isso de forma bem diferente. Quem
sabe se ele de fato cancelou um ataque militar por causa de sua compaixão por
150 possíveis vítimas? A única evidência vem de uma fonte que não é famosa por
sua credibilidade. Mas parece claro que ele não quer uma guerra, o que
estragaria os jogos que tanto aprecia, e prejudicaria suas perspectivas
eleitorais. É muito melhor chegar às eleições enfrentando a ameaça cósmica de
um inimigo mau, que apenas um Líder Corajoso poderá deter — não algum daqueles
“democratas fracotes” e, certamente, nenhuma “mera” mulher. Reagan também
agarrou-se a esse princípio quando enfrentou com força a ameaça da Nicarágua,
amarrando suas botas de caubói, avisando que as tropas nicaraguenses estavam a
apenas dois dias de distância de Harlingen, no Texas, e declarando emergência
nacional por causa da “extraordinária ameaça” à segurança e à sobrevivência dos
EUA.
O histórico do conflito com o Irã
tem fatos inenarráveis. A alegada ameaça das armas nucleares iranianas pode ser
prontamente superada com a aceitação da demanda dos Estados Árabes, do Irã e
praticamente do mundo inteiro, de estabelecer uma zona livre de armamentos no
Oriente Médio, uma política diante da qual os EUA e o Reino Unidos têm uma
obrigação especial, e que os EUA bloqueiam regularmente – por razões que não
chegam a ser obscuras. Se Washington reconhecesse oficialmente a existência do
arsenal nuclear de Israel, o enorme fluxo de ajuda a Tel Aviv seria ilegal sob
a lei norte-americana. Por isso, é claro, as armas de destruição em massa de
Israel não podem ser objeto de inspeção.
E as tarifas, então? O “homem das
tarifas” nos diz que elas estão destinadas a promover os interesses econômicos
dos EUA. Se ele acredita nisso ou não, ou se dá importância, não temos a menor
ideia. Pronunciamentos políticos raramente podem ser tomados por seu valor de
face, e Trump não é notório por sua sinceridade e credibilidade.
Há, para dizer caridosamente,
escassos indícios para Trump gabar-se de que suas tarifas estão forçando a
China a despejar “bilhões de dólares” no Departamento do Tesouro. “Nunca
tivemos 10 cent vindos para nosso Tesouro” sob os governos anteriores, explicou
ele. “Agora estão chegando bilhões”. No mundo real, os custos das tarifas são
pagos não pela China, mas pelas empresas norte-americanas (que podem escolher
compensá-las com a redução de salários) e consumidores, sobrecarregados com um
imposto altamente regressivo, que recai principalmente entre os menos
abastados. Em suma, as tarifas de Trump são mais uma de suas políticas para
prejudicar trabalhadores e pobres.
É verdade, contudo, que estão
envolvidos “bilhões”. Um estudo do Banco Central (Fed) de Nova York em parceria
com as universidades de Princeton e Columbia estima que as empresas e
consumidores norte-americanos pagaram US$
3 bilhões por mês em impostos adicionais por causa da taxação sobre produtos
chineses e sobre alumínio e aço provenientes de outros lugares do mundo – além
do US$ 1,4 bilhão que custou a empresas norte-americanas a perda de eficiência,
em 2018.
A guerra tarifária contra a China
pode levar montadoras de automóveis a mudar suas operações da China para o
Vietnã e outros países com custos de mão-de-obra ainda mais baixos. Mas, para a
economia dos EUA a decisão mais típica é a da Apple, alguns dias atrás, de mudar a
montagem de computadores Mac Pro do Texas para a China.
A guerra de tarifas de Trump
parece relacionada principalmente à política doméstica, elaborada de olho na
próxima eleição. Ele tem de convencer de algum modo sua base de eleitores de
que é a pessoa que protege os agoniados norte-americanos, que estão sofrendo o
“massacre” causados por seus predecessores – o que é até bem real para muitos
deles, como dramaticamente ilustrado pela impressionante queda da expectativa
de vida dos americanos em idade de trabalho, atribuída a “mortes de desespero”,
um fenômeno desconhecido em sociedades desenvolvidas. O truque de Trump é
acenar para um grande clube de seguidores e ameaçar outros com terríveis
ameaças, para que que parem de torturar seu pobre país e concordem em “jogar de
forma justa”. Quando tiramos isso tudo da frente, nos deparamos com outro
quadro, como no caso da nefasta ameaça do Irã. Mas o que importa para o jogo é
a “realidade alternativa” que os conspiradores estão inventando.
Com pouco sucesso. É um erro
subestimar Trump. Ele é um demagogo e manipulador esperto, que está conseguindo
manter a fidelidade das multidões de adoradores, crentes de que luta por eles,
contra as odiadas elites, e ao mesmo tempo assegurar que o principal eleitorado
republicano, extremamente rico e com poder corporativo, vá muito bem, apesar de
algumas queixas. Estão, de fato, saindo-se como bandidos com a ajuda de Trump e
seus associados.
É notável ver como uma realidade
alternativa é efetivamente criada. O caso do Irã é típico, mas os sucessos são
muito maiores. Considere a acusação de que “a China está nos matando”, roubando
nossos empregos, junto com os “ladrões mexicanos”. Como a China está nos
matando? A China tinha uma arma na cabeça de Tim Cook, o CEO da Apple,
obrigando-o a acabar com o último vestígio de produção dos computadores Apple nos
EUA? Ou a Boeing, GM, Microsoft, ou qualquer um dos outros que mudaram a
produção para a China? Ou as decisões foram tomadas por banqueiros e
investidores nas salas de reunião corporativas de Nova York e Chicago? Se é
assim, a solução é mostrar os punhos para a China ou mudar o modo de tomar
decisões nos EUA – transferindo-as para os trabalhadores e comunidades, dando a
eles um papel substancial, como sugeriria a teoria democrática? Parece uma
questão bastante óbvia. Estranhamente, ela não é levantada, enquanto o mantra
oficial se mantém imperturbável.
Fala-se que a China impõe
condições desiguais aos investidores, demandando transferência de tecnologia.
Talvez. Se à Apple e às outras não agradam essas condições, elas estão livres
para não investir na China. Adoradores da livre empresa e do mercado certamente
concordariam.
Outra acusação é de que a China
está perseguindo injustamente uma política industrial que subsidie indústrias
favorecidas. Se sim, os líderes políticos e analistas dos EUA deveriam estar
aplaudindo. De acordo com as doutrinas econômicas que professam, a China está
prejudicando sua economia, ao desprezar o modelo de desenvolvimento
supostamente ideal, do livre mercado, contribuindo assim com a hegemonia
norte-americana. Qual é o problema?
O que parece ser uma acusação
mais crível é que a China está violando o regime de direitos de propriedade
intelectual (TRIPS) definido na Organização Mundial de Comércio. Suponhamos que
sim. Várias questões surgem. Quem ganha, quem perde? Em grande medida, os
consumidores norte-americanos ganham, enquanto a Big Farma, a Microsoft e
outras garantiram direitos de patente exorbitantes e sem precedentes, sob
TRIPS, que sofrem alguma redução em seus lucros enormes.
Isso nos leva a uma outra
questão: o regime TRIPS é legítimo? Foi, é verdade, estabelecido por um acordo
interestatal. Mas quem tomou aquelas decisões? O público sequer sabia do que
estava acontecendo. Dificilmente. Os mal denominados “acordos de livre mercado”
são mais adequadamente descritos como acordos de direitos dos investidores, com
frequência de pouca relação com o mercado em qualquer sentido significativo.
Não por acaso, servem aos interesses de quem os concebe — os grandes
investidores.
Outros elementos das queixas de
que “a China está nos matando” fazem sentido. É abertamente manifesta a
preocupação de que o progresso chinês deve deixar os EUA pra trás – por
exemplo, de que a tecnologia Huawei, mais
barata e superior, pode dar a eles uma “injusta vantagem” no
estabelecimento de redes 5G. É claro que deve ser detida, argumentam as
autoridades dos EUA, juntamente com o desenvolvimento econômico chinês em
geral. Suas preocupações são reminiscentes dos anos 80, quando as técnicas
superiores de fabricação japonesas estavam minando as empresas ineficientes dos
EUA, e o governo Reagan teve de intervir para bloquear as importações japonesas
por meio de “restrições voluntárias às exportações”. No caso, “voluntário”
significa “concordo ou concordo”…
Há boas razões para concordar que
a visão dos “especialistas” que buscam detectar uma grande estratégia por trás
das travessuras de Trump é “a mais pura sátira corrosiva”. Mas há uma
estratégia. E está funcionando bastante bem.
Um dos objetivos declarados de
Trump, por trás de seu entendimento da diplomacia, é “transformar inimigos em
amigos”. Há alguma evidência de que ele está perseguindo esse objetivo
diplomático? Tenho em mente, em particular, os casos da Coreia do Norte e da
Rússia.
Nesse caso, o objetivo declarado
parece real. Ele provoca o ridículo e amarga condenação em todo o espectro
político dominante. Mas quaisquer que sejam os motivos de Trump, a política
geral faz algum sentido.
A Declaração Panmunjom das
duas Coreias, em abril de 2018, foi um evento altamente significativo. Ele
falava sobre os países continuarem em busca de relações amigáveis e de eventual
desnuclearização “por acordo mútuo”, sem a interferência externa que no passado
frequentemente minou o que pareciam iniciativas promissoras: as repetidas interferências
dos EUA, como mostram os registros históricos. Nessa declaração e acordos
relacionados, pela primeira vez as duas Coreias definiram calendários
específicos e tomaram medidas concretas e promissoras para a redução das
tensões e o desarmamento – processos que deveriam ser bem-vindos e apoiados.
Para seu crédito, Trump aderiu
amplamente ao requisito das duas Coreias. Seu recente encontro com o presidente
norte-coreano Kim na zona desmilitarizada, o cruzamento simbólico de
fronteiras, e possíveis acordos provisórios são passos que, com boa vontade,
podem ter consequências salutares. Podem facilitar esforços das duas Coreias
para prosseguir no difícil caminho em direção a uma acomodação e podem oferecer
uma maneira de aliviar as sanções que estão bloqueando a ajuda terrivelmente
necessária ao Norte e contribuindo com uma grande crise humanitária por lá.
Tudo isso pode enfurecer comentaristas de todo o espectro político. Mas se há
uma maneira melhor de trazer paz à península e dar passos em direção à desnunclearização
e à reforma interna da ditadura norte-coreana, ninguém ainda nos informou sobre
ela.
A Rússia de Putin não precisa ser
transformada numa “amiga”, mas relações cooperativas com ela são um
pré-requisito para a sobrevivência.
O histórico de Trump nesta
questão é controverso. A Revisão
de Postura Nuclear (Nuclear Posture Review – fevereiro de 2018)
apresenta ameaças muito severas, ampliadas pela decisão inacreditável de levar
adiante o desenvolvimento de armas hipersônicas. Os adversários estão fazendo o
mesmo. A abordagem certa é a da diplomacia e negociações para prevenir um
caminho suicida, mas não há nenhum sinal disso. O mesmo é verdade quanto ao Tratado
INF negociado por Reagan e Gorbachev, que reduziu significativamente
os riscos de uma guerra terminal.
Cada lado reclama que o outro
está violando o tratado. A abordagem correta é fazer uma análise investigativa
neutra das reclamações e negociar o fim dessas violações à medida em que são
descobertas. A pior abordagem é deixar o tratado, como estão fazendo os EUA,
seguidos pela Rússia. As mesmas considerações valem para o outro grande tratado
de controle de armas, o New
Start. Em todo o
caso, parece que John Bolton, consistente em sua perversidade, conseguiu
bloquear o progresso e empurrar a política em direções extremamente sinistras.
Qual a sua análise sobre o plano
do governo Trump para o Oriente Médio? E quão instrumental é o papel de seu
genro, Jared Kushner, nisso?
Presumo que Kushner é o principal
arquiteto, como se noticia. O que foi divulgado até aqui é bastante simples e
consistente com as políticas anteriores do governo que autorizaram a tomada das
colinas de Golan por Israel e o desenvolvimento da Grande Jerusalém, todas
violando as ordens do Conselho de Segurança da ONU (apoiadas na época pelos
EUA). Ao mesmo tempo, a escassa ajuda dos EUA aos palestinos foi encerrada com
o argumento de que eles não agradecem educadamente ao patrão quando mina seus
direitos mais elementares.
O plano Kushner leva isso
adiante. Deve-se garantir a Israel os melhores votos por sua liderança
expansionista. Os palestinos devem ser excluídos dos fundos de desenvolvimento
fornecidos por outros (não pelos EUA). A
essência do “Acordo do Século” de Trump-Kushner foi captada de
modo sucinto pelo embaixador israelense na ONU Danny Danon, no The New
York Times: os palestinos deveriam perceber que o jogo acabou e “se render”.
Então pode haver paz, outro triunfo do “grande negociador”.
Neste caso há um objetivo
estratégico subjacente: consolidar a aliança de Estados reacionários (as
monarquias do petróleo, Egito, Israel) como base do poder dos EUA na região.
Isso de modo algum é novidade, embora as variantes anteriores tinham de certo
modo diferentes formas e fossem menos visíveis do que hoje.
Esses objetivos estão dentro de
uma estratégia mais ampla de formar uma aliança global reacionária sob a tutela
dos EUA, incluindo “democracias não-liberais” da Europa Oriental (Orbán da
Hungria, etc.) e o grotesco Jair Bolsonaro do Brasil, que, entre outras
virtudes, compartilha com Trump a dedicação em minar perspectivas de um
ambiente em que se possa viver, quando abre a Amazônia à exploração de seus
amigos do agronegócio e da mineração. Essa é uma estratégia natural para o
atual partido Republicano de Trump-McConnell, bem
integrado à extrema-direita no espectro internacional, muito além dos
partidos “populistas” de direita europeus, que até há pouco eram considerados
franjas desprezíveis.
Sem lhe pedir que desempenhe o
papel de Cassandra, como pensa que a história irá avaliar a posição de Trump
sobre mudanças climáticas, que é de longe o maior desafio global que o mundo enfrenta?
Tomo emprestada a frase de
Wittgenstein, com
um pequeno ajuste, “aquilo que não se pode falar educadamente, é preciso
silenciar”.
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