Concebido às pressas, “Future-se”
é precário e mal-acabado. Mas sentido de suas parcas ideias é claro: um ensino
superior sem autonomia, em conformidade com a cruzada de Bolsonaro contra a
inteligência e o conhecimento
Maria Caramez Carlotto* | Outras Palavras
O Future-se, nome fantasia do
“Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras”, foi lançado
oficialmente pelo governo federal em 17 de julho. No dia anterior, o MEC já
havia apresentado aos reitores das Instituições Federais de Ensino Superior
(IFES) as linhas gerais do programa. Anunciado pelo twitter e transmitido ao
vivo pela internet, o lançamento frustrou os que esperavam um documento mais
completo, com estudos que justificassem a necessidade do projeto, com propostas
detalhadas do que será exatamente implementado e com projeções concretas do
impacto de cada medida. A comunidade acadêmica e demais interessados esperaram
a divulgação do projeto “completo”, mas os únicos documentos que circularam
foram um press realease intitulado “Para revolucionar é preciso
despertar”, com 21 slides, e um documento aparentemente informal intitulado
Future-se, de nove páginas, que nada mais é do que a cópia do site criado para
consulta pública do programa.
Ou seja, de concreto, até agora,
temos apenas isso: uma proposta de “revolução” apresentada em menos de dez
páginas. Nada contra o poder de síntese, mas parece que falta, ainda, muita
substância a esse esboço de ideias para que venha a ser, de fato, um projeto. O
que está sendo colocado em consulta pública é, portanto, um brainstorm de
ideias de estatutos diferentes: algumas já estão em vigor há anos; outras,
carecem ainda de legislação específicas e, portanto, não têm viabilidade
imediata; outras são tão genéricas que sequer dá para entender como serão
realizadas e se existe marco legal para isso. É esse esboço de projeto, amplo e
confuso que o governo quer que discutamos a sério.
Desde já, acho importante não
subestimar qualquer projeto político vindo do governo. Mas tanto quanto o
conteúdo, a forma do projeto diz muito sobre seus objetivos mais imediatos. Na
melhor das hipóteses, parece que o governo correu muito para lançar essa
proposta agora. Não que ela não estivesse sendo discutida, nem que não
estivesse prevista, mas é visível que foi disponibilizada muito antes de estar
pronta. O que sugere que o governo de fato quis gerar um momentum para
sair da defensiva, como já analisei em texto anterior.
Isso posto sobre a forma, em
termos de conteúdo, de concreto, o que tem até agora?
O objetivo geral do Future-se é
“o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das
IFES”. E pretende fazer isso através de dois meios principais assim
explicitados:
I) “parceria com organizações
sociais”; e
II) “fomento à captação de
recursos próprios”
As universidades públicas estão entre
as instituições mais importantes do país. A produção de conhecimento e de
tecnologia de ponta, a formação de profissionais e cidadãos preparados para a
pensar e intervir em temas complexos e a atuação junto à sociedade fazem das
universidades e institutos técnicos federais instituições centrais em qualquer
projeto de construção de um país mais justo, mais autônomo e com garantias
mínimas de bem-estar para a maioria da população.
Justamente por isso, todos os
setores sociais devem financiar a universidade, inclusive o setor privado.
O grande problema do Future-se,
portanto, não é buscar meios de aumentar o financiamento privado às
instituições públicas de ensino superior. Esse financiamento, aliás, já está
previsto no atual modelo de funcionamento dessas instituições e vem sendo
incentivado, há alguns anos, por uma série de mecanismos que o projeto do
Future-se em parte reproduz como inéditos, em parte ignora totalmente sem
qualquer justificativa.
O grande problema do Future-se,
na verdade, é que ele projeta que os recursos privados serão a principal fonte
de financiamento das instituições federais de ensino superior, em especial das
universidades – substituindo, em grande medida, o financiamento público que
hoje sustenta essas instituições.
Esse modelo é problemático por
duas razões:
(I)
A primeira – e mais importante –
é que o financiamento público é a garantia, consolidada historicamente, para a
autonomia universitária. Essa autonomia é o fundamento da nossa liberdade de
ensino, pesquisa e extensão, sem a qual o que fazemos perde todo sentido.
O fato do Estado – que idealmente
representa o conjunto da sociedade – ser o principal financiador das
universidades e institutos técnicos federais é o que garante que eles possam,
na prática, contrariar setores específicos da sociedade com estudos e pesquisas
que não têm compromisso de agradar seus financiadores imediatos. Não por acaso,
portanto, os professores dessas instituições têm garantia constitucional de
estabilidade. Em tese, o presidente da República ou o Ministro da Educação não
podem me demitir, mesmo que eu critique, de modo enfático e fundamentado, as
políticas que eles visam implementar.
Se a universidade pública
dependesse majoritariamente do financiamento privado ou se os professores não
tivessem estabilidade na carreira – ou seja, fossem contratados via
Organizações Sociais, como explicitou em entrevista hoje, o Ministro da
Educação – não teríamos estudos autônomos e, portanto, confiáveis sobre, por
exemplo: o aumento do desmatamento, os riscos ambientais das grandes barragens,
os efeitos colaterais de medicamentos rentáveis, as ameaças à saúde pelo uso de
agrotóxicos, a correlação entre mortes e posse de armas de fogo, o crescimento
da fome, o impacto da sonegação de impostos por parte das grandes empresas
sobre as contas públicas, o efeito dos juros altos sobre o crescimento e o
orçamento da união, o papel de discursos intolerantes no fortalecimento de
preconceitos e no enfraquecimento da democracia, do marketing político e
empresarial na construção de identidades e das novas tecnologias digitais na
definição de comportamentos, inclusive eleitorais.
Visto desse ângulo e à luz dos
interesses que sustentam o atual governo, fica claro onde o Furure-se quer
realmente chegar: na desconstrução da autonomia universitária e, com ela, da
possibilidade de produzir conhecimento sem compromissos de ocasião, formando
profissionais livres para servir à maioria da sociedade e não a uma pequena
parcela dessa.
O ataque inclassificável de
Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e a sua negativa
de aceitar os dados sobre o crescimento do desmatamento e da fome no país fazem
parte desse amplo contexto. A redução do orçamento do Censo Demográfico do
IBGE, o corte de bolsas de pesquisa e a suspensão das avaliações do INEP sobre
a atuação das universidades, idem. Sem falar da recente afirmação do ministro
da Educação de que os professores das universidades federais ganham muito e
trabalham pouco, de em como a sua sugestão mudanças na forma de contratação dos
docentes, com a eliminação dos concursos públicos e da estabilidade na
carreira.
Há um amplo e inequívoco
movimento do governo contra a produção de conhecimento autônomo e confiável,
que seja capaz de fazer frente à política de desinformação e obscurantismo que
se quer implementar.
O Future-se é, sem dúvida, parte
disso.
(II)
A segunda razão pela qual a
substituição do financiamento público pelo privado previsto no Future-se é
problemática é mais simples e pragmática: esse financiamento simplesmente não
virá ou não virá na proporção que o MEC imagina para poder, de fato, se isentar
do financiamento das instituições de ensino superior.
O setor privado, tradicionalmente
e por razões econômicas bem identificadas pela literatura, não investe em
pesquisa e desenvolvimento no Brasil. Basta olhar os dados da Pintec (Pesquisa
de Inovação Tecnológica), feita a cada três anos pelo IBGE, para constatar
isso. Mesmo depois de todos os incentivos criados pelas leis de propriedade
intelectual de 1996, 1997 e 1998, pela Lei de Inovação de 2004 e pelo Marco de
Ciência e Tecnologia de 2016, os patamares de investimento continuam muito
baixos. A Lei de Fundos Patrimoniais aprovada recentemente, segundo todas a
análises, não vai alterar substancialmente esse cenário.
Pode ser que o governo, que tanto
despreza dados e evidências, esteja apostando realmente que o Future-se pode
ganhar densidade a ponto de se tornar uma fonte prioritária e real de
financiamento do ensino superior público. Caso isso fosse viável, seria preciso
alterar substancialmente o formato do projeto para incrementar a autonomia
universitária e fortalecer a carreira docente de modo a preservar o caráter
público – no sentido de fiel ao interesse público, ou seja, da maioria da
população – do ensino e, principalmente, da pesquisa produzida nessas
instituições.
Mas penso que o Future-se não
busca consolidar uma fonte alternativa real de financiamento da universidade
através da venda de pesquisas e outros expedientes extravagantes previstos no
projeto. Seu objetivo principal é incidir, no curto prazo, no debate sobre
financiamento do ensino superior, seja naturalizando o corte de 30% do
orçamento das instituições de ensino superior, seja enfraquecendo a pressão que
vamos exercer, no Congresso, para que o orçamento de 2020 garanta o
funcionamento mínimo das instituições federais de ensino superior. Em tempos de
orçamento impositivo, essa batalha é central e o Future-se é, na minha visão,
uma estratégia discursiva para naturalizar a redução do orçamento para educação
superior pública.
Sem financiamento, as
universidades e institutos federais não poderão seguir produzindo conhecimento
em condições normais e o governo terá cumprido sua agenda central. De quebra,
abre espaço para a discussão que realmente interessa para o setor privado do
país. Não é nem a pesquisa, nem a inovação, muito menos a nomeação de prédios e
outras banalidades previstas no projeto original, mas a exploração comercial do
ensino, sobre o qual o Future-se, estrategicamente, não diz palavra.
Não custa lembrar que o Brasil
tem os maiores e mais internacionalizados grupos empresariais do mundo atuando
no ensino superior privado e que a vice-presidente a Associação Nacional de
Universidades Particulares (ANUP) é Elisabeth Guedes, irmã de Paulo Guedes,
superministro da Economia. O atual ministro da Educação. Abraham Waintroub
atuou, durante a campanha de Bolsonaro a presidente, na equipe de Paulo Guedes,
participando da formulação do programa econômico do atual governo. Dizem que
foi Guedes quem o colocou no MEC.
Ha alguns dias, circulou uma
informação de que o slogan Future-se era originalmente de uma universidade
privada que vendia MBA à distância em parceria com universidades privadas dos
Estados Unidos. Será esse o Futuro que o governo quer para nós?
* Maria Caramez Carlotto é
doutora em sociologia pela USP onde defendeu a tese intitulada “Universitas
semper reformanda? A história da Universidade de São Paulo e o discurso da
gestão à luz da estrutura social”. Atualmente é professora da Universidade Federal
do ABC e presidente da Associação dos Docentes da UFABC.
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