quarta-feira, 24 de julho de 2019

Brasil | Weintraub propõe a universidade amordaçada


Concebido às pressas, “Future-se” é precário e mal-acabado. Mas sentido de suas parcas ideias é claro: um ensino superior sem autonomia, em conformidade com a cruzada de Bolsonaro contra a inteligência e o conhecimento

Maria Caramez Carlotto* | Outras Palavras

O Future-se, nome fantasia do “Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras”, foi lançado oficialmente pelo governo federal em 17 de julho. No dia anterior, o MEC já havia apresentado aos reitores das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) as linhas gerais do programa. Anunciado pelo twitter e transmitido ao vivo pela internet, o lançamento frustrou os que esperavam um documento mais completo, com estudos que justificassem a necessidade do projeto, com propostas detalhadas do que será exatamente implementado e com projeções concretas do impacto de cada medida. A comunidade acadêmica e demais interessados esperaram a divulgação do projeto “completo”, mas os únicos documentos que circularam foram um press realease intitulado “Para revolucionar é preciso despertar”, com 21 slides, e um documento aparentemente informal intitulado Future-se, de nove páginas, que nada mais é do que a cópia do site criado para consulta pública do programa.

Ou seja, de concreto, até agora, temos apenas isso: uma proposta de “revolução” apresentada em menos de dez páginas. Nada contra o poder de síntese, mas parece que falta, ainda, muita substância a esse esboço de ideias para que venha a ser, de fato, um projeto. O que está sendo colocado em consulta pública é, portanto, um brainstorm de ideias de estatutos diferentes: algumas já estão em vigor há anos; outras, carecem ainda de legislação específicas e, portanto, não têm viabilidade imediata; outras são tão genéricas que sequer dá para entender como serão realizadas e se existe marco legal para isso. É esse esboço de projeto, amplo e confuso que o governo quer que discutamos a sério.


Desde já, acho importante não subestimar qualquer projeto político vindo do governo. Mas tanto quanto o conteúdo, a forma do projeto diz muito sobre seus objetivos mais imediatos. Na melhor das hipóteses, parece que o governo correu muito para lançar essa proposta agora. Não que ela não estivesse sendo discutida, nem que não estivesse prevista, mas é visível que foi disponibilizada muito antes de estar pronta. O que sugere que o governo de fato quis gerar um momentum para sair da defensiva, como já analisei em texto anterior.

Isso posto sobre a forma, em termos de conteúdo, de concreto, o que tem até agora?

O objetivo geral do Future-se é “o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das IFES”. E pretende fazer isso através de dois meios principais assim explicitados:

I) “parceria com organizações sociais”; e
II) “fomento à captação de recursos próprios”

As universidades públicas estão entre as instituições mais importantes do país. A produção de conhecimento e de tecnologia de ponta, a formação de profissionais e cidadãos preparados para a pensar e intervir em temas complexos e a atuação junto à sociedade fazem das universidades e institutos técnicos federais instituições centrais em qualquer projeto de construção de um país mais justo, mais autônomo e com garantias mínimas de bem-estar para a maioria da população.

Justamente por isso, todos os setores sociais devem financiar a universidade, inclusive o setor privado.

O grande problema do Future-se, portanto, não é buscar meios de aumentar o financiamento privado às instituições públicas de ensino superior. Esse financiamento, aliás, já está previsto no atual modelo de funcionamento dessas instituições e vem sendo incentivado, há alguns anos, por uma série de mecanismos que o projeto do Future-se em parte reproduz como inéditos, em parte ignora totalmente sem qualquer justificativa.

O grande problema do Future-se, na verdade, é que ele projeta que os recursos privados serão a principal fonte de financiamento das instituições federais de ensino superior, em especial das universidades – substituindo, em grande medida, o financiamento público que hoje sustenta essas instituições.

Esse modelo é problemático por duas razões:

(I)

A primeira – e mais importante – é que o financiamento público é a garantia, consolidada historicamente, para a autonomia universitária. Essa autonomia é o fundamento da nossa liberdade de ensino, pesquisa e extensão, sem a qual o que fazemos perde todo sentido.

O fato do Estado – que idealmente representa o conjunto da sociedade – ser o principal financiador das universidades e institutos técnicos federais é o que garante que eles possam, na prática, contrariar setores específicos da sociedade com estudos e pesquisas que não têm compromisso de agradar seus financiadores imediatos. Não por acaso, portanto, os professores dessas instituições têm garantia constitucional de estabilidade. Em tese, o presidente da República ou o Ministro da Educação não podem me demitir, mesmo que eu critique, de modo enfático e fundamentado, as políticas que eles visam implementar.

Se a universidade pública dependesse majoritariamente do financiamento privado ou se os professores não tivessem estabilidade na carreira – ou seja, fossem contratados via Organizações Sociais, como explicitou em entrevista hoje, o Ministro da Educação – não teríamos estudos autônomos e, portanto, confiáveis sobre, por exemplo: o aumento do desmatamento, os riscos ambientais das grandes barragens, os efeitos colaterais de medicamentos rentáveis, as ameaças à saúde pelo uso de agrotóxicos, a correlação entre mortes e posse de armas de fogo, o crescimento da fome, o impacto da sonegação de impostos por parte das grandes empresas sobre as contas públicas, o efeito dos juros altos sobre o crescimento e o orçamento da união, o papel de discursos intolerantes no fortalecimento de preconceitos e no enfraquecimento da democracia, do marketing político e empresarial na construção de identidades e das novas tecnologias digitais na definição de comportamentos, inclusive eleitorais.

Visto desse ângulo e à luz dos interesses que sustentam o atual governo, fica claro onde o Furure-se quer realmente chegar: na desconstrução da autonomia universitária e, com ela, da possibilidade de produzir conhecimento sem compromissos de ocasião, formando profissionais livres para servir à maioria da sociedade e não a uma pequena parcela dessa.
O ataque inclassificável de Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e a sua negativa de aceitar os dados sobre o crescimento do desmatamento e da fome no país fazem parte desse amplo contexto. A redução do orçamento do Censo Demográfico do IBGE, o corte de bolsas de pesquisa e a suspensão das avaliações do INEP sobre a atuação das universidades, idem. Sem falar da recente afirmação do ministro da Educação de que os professores das universidades federais ganham muito e trabalham pouco, de em como a sua sugestão mudanças na forma de contratação dos docentes, com a eliminação dos concursos públicos e da estabilidade na carreira.

Há um amplo e inequívoco movimento do governo contra a produção de conhecimento autônomo e confiável, que seja capaz de fazer frente à política de desinformação e obscurantismo que se quer implementar.
O Future-se é, sem dúvida, parte disso.

(II)

A segunda razão pela qual a substituição do financiamento público pelo privado previsto no Future-se é problemática é mais simples e pragmática: esse financiamento simplesmente não virá ou não virá na proporção que o MEC imagina para poder, de fato, se isentar do financiamento das instituições de ensino superior.

O setor privado, tradicionalmente e por razões econômicas bem identificadas pela literatura, não investe em pesquisa e desenvolvimento no Brasil. Basta olhar os dados da Pintec (Pesquisa de Inovação Tecnológica), feita a cada três anos pelo IBGE, para constatar isso. Mesmo depois de todos os incentivos criados pelas leis de propriedade intelectual de 1996, 1997 e 1998, pela Lei de Inovação de 2004 e pelo Marco de Ciência e Tecnologia de 2016, os patamares de investimento continuam muito baixos. A Lei de Fundos Patrimoniais aprovada recentemente, segundo todas a análises, não vai alterar substancialmente esse cenário.

Pode ser que o governo, que tanto despreza dados e evidências, esteja apostando realmente que o Future-se pode ganhar densidade a ponto de se tornar uma fonte prioritária e real de financiamento do ensino superior público. Caso isso fosse viável, seria preciso alterar substancialmente o formato do projeto para incrementar a autonomia universitária e fortalecer a carreira docente de modo a preservar o caráter público – no sentido de fiel ao interesse público, ou seja, da maioria da população – do ensino e, principalmente, da pesquisa produzida nessas instituições.

Mas penso que o Future-se não busca consolidar uma fonte alternativa real de financiamento da universidade através da venda de pesquisas e outros expedientes extravagantes previstos no projeto. Seu objetivo principal é incidir, no curto prazo, no debate sobre financiamento do ensino superior, seja naturalizando o corte de 30% do orçamento das instituições de ensino superior, seja enfraquecendo a pressão que vamos exercer, no Congresso, para que o orçamento de 2020 garanta o funcionamento mínimo das instituições federais de ensino superior. Em tempos de orçamento impositivo, essa batalha é central e o Future-se é, na minha visão, uma estratégia discursiva para naturalizar a redução do orçamento para educação superior pública.

Sem financiamento, as universidades e institutos federais não poderão seguir produzindo conhecimento em condições normais e o governo terá cumprido sua agenda central. De quebra, abre espaço para a discussão que realmente interessa para o setor privado do país. Não é nem a pesquisa, nem a inovação, muito menos a nomeação de prédios e outras banalidades previstas no projeto original, mas a exploração comercial do ensino, sobre o qual o Future-se, estrategicamente, não diz palavra.

Não custa lembrar que o Brasil tem os maiores e mais internacionalizados grupos empresariais do mundo atuando no ensino superior privado e que a vice-presidente a Associação Nacional de Universidades Particulares (ANUP) é Elisabeth Guedes, irmã de Paulo Guedes, superministro da Economia. O atual ministro da Educação. Abraham Waintroub atuou, durante a campanha de Bolsonaro a presidente, na equipe de Paulo Guedes, participando da formulação do programa econômico do atual governo. Dizem que foi Guedes quem o colocou no MEC.

Ha alguns dias, circulou uma informação de que o slogan Future-se era originalmente de uma universidade privada que vendia MBA à distância em parceria com universidades privadas dos Estados Unidos. Será esse o Futuro que o governo quer para nós?

* Maria Caramez Carlotto é doutora em sociologia pela USP onde defendeu a tese intitulada “Universitas semper reformanda? A história da Universidade de São Paulo e o discurso da gestão à luz da estrutura social”. Atualmente é professora da Universidade Federal do ABC e presidente da Associação dos Docentes da UFABC.

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