Autor de bem-sucedida série sobre
o Brasil nos anos 1800, escritor volta a se debruçar sobre a história do país,
abordando a escravidão em nova trilogia. Em entrevista, ele defende uma segunda
abolição.
A primeira obra da nova trilogia
do autor Laurentino Gomes, intitulada Escravidão, será lançada no
começo de setembro e vai abordar desde o primeiro leilão de escravos africanos
enviados às Américas no século 16 até a morte de Zumbi dos Palmares, em 20 de
novembro de 1695.
"O Brasil foi o país no
hemisfério que mais resistiu a abolir o tráfico negreiro e o que mais tempo
demorou a abolir a própria escravidão. Mas, quando você olha os livros de
história no Brasil, a escravidão aparece como se fosse um assunto quase
secundário. O termo não aparece com a importância que teve", comentou
Laurentino Gomes em entrevista à DW Brasil.
Para o autor, a discussão em
torno da escravidão, assim como outros temas polêmicos, está saturada de
opiniões inconsistentes dos pontos de vista histórico e científico.
"O grande problema é que o
debate carece de racionalidade, porque está baseado em opiniões aleatórias,
preconceituosas, sem fundamento, com o objetivo de manipular o público em favor
de projetos muito bem alicerçados que estão sendo implantados de forma rápida
no Brasil, envolvendo direitos sociais, trabalhistas, a proteção do meio ambiente.
O meu livro chega para infundir alguma racionalidade no meio disso tudo",
afirma.
Ainda sobre o momento
atual, Laurentino
Gomes defende o que chama de uma segunda abolição, fruto das
desigualdades sociais brasileiras. Segundo dados do Atlas da Violência deste
ano, 75% das vítimas de homicídio no país são negras.
"Vivemos um regime de
exclusão, com uma elite pequena, que se beneficia dos recursos públicos, que
consome, e do outro lado uma massa enorme de excluídos. Esse é um legado da
escravidão que precisa ser combatido", diz.
Sua trilogia anterior
(1808-1822-1889) ficou caracterizada pela linguagem acessível, o que
motivou grande interesse do público pela história do Brasil. A fórmula se
repetiu ao lidar com a escravidão?
Repeti esse processo, mas o livro
guarda outras alterações, a começar pela capa. Os subtítulos são mais sóbrios,
algo que na trilogia anterior era mais provocativo, com o intuito de capturar
um leitor não habituado à história do Brasil. Nesse livro, esses fatores são
mais circunspectos, porque o assunto assim exige. Uso curiosidades, com
personagens surpreendentes, que os leitores provavelmente desconhecem, mas
também me arrisco a fazer mergulhos mais profundos, explicando os alicerces da
escravidão, as origens, a economia do açúcar que se instala na América depois
da expansão portuguesa e espanhola. Essa mistura precisa ser muito cuidadosa:
não se pode ficar apenas em curiosidades, porque o livro poderia ser
superficial, mas também não é o caso de fazer algo extremamente profundo,
porque já existe uma literatura acadêmica fazendo isso.
O senhor costuma dizer que é
impossível entender o Brasil de hoje sem conhecer nossas raízes na África. O que a pesquisa para essa trilogia lhe revelou e que também pode impactar o público?
O Brasil foi o maior território
escravista do hemisfério ocidental. Foram 5 milhões de cativos africanos ao
longo de 350 anos. Todos os ciclos econômicos do Brasil, desde o pau-brasil,
foram mantidos, alimentados e explorados com esse tipo de mão de obra. Só que
os índios brasileiros morriam aos montes em função desse choque epidemiológico
que eram as doenças trazidas à época, como varíola, sarampo. O Brasil foi o
país no hemisfério que mais resistiu a abolir o tráfico negreiro e o que mais
tempo demorou a abolir a própria escravidão. Mas, quando você olha os livros de
história no Brasil, a escravidão aparece como se fosse um assunto quase
secundário. O termo não aparece com a importância que teve. Considero a contribuição
africana a mais importante na história do Brasil, tanto do ponto de vista
econômico quanto cultural.
Como o Brasil lida hoje com o
passado da escravidão?
A escravidão aparece muito
fortemente em nossas estatísticas. Quando falamos de exclusão, desigualdade
social, estamos falando desse legado, porque é majoritariamente essa população
que convive com níveis inaceitáveis de indicadores sociais, quando comparados
com descendentes de europeus brancos. O Brasil aboliu a escravidão no final do
século 19, mas o objetivo não era resolver o problema dos escravos e seus
descendentes, mas apagar uma mancha que complicava a imagem do país perante o
mundo supostamente desenvolvido. Há um resíduo de preconceito que está se
manifestando hoje de forma mais explícita do que no passado. Os brasileiros
criaram mitos a respeito da escravidão, até mesmo para mascarar a importância
do tema na nossa história. Tem essa lenda de que o Brasil é uma democracia
racial, que nossa escravidão foi patriarcal, benévola. Ao fazer a pesquisa,
você percebe que a escravidão foi tão violenta quanto em qualquer outro lugar
onde houve cativeiro. O Brasil é uma sociedade de castas, e essa estrutura,
hierarquização por classes, é fruto desse processo.
Esse entendimento sobre o que é
a escravidão
no Brasil mudou principalmente com a redemocratização. No passado,
esses mitos raciais foram impostos por governos autoritários, durante a
ditadura. A construção da imagem nacional brasileira sempre foi feita de cima
para baixo. Na democracia, esses mitos estão sendo confrontados. Há uma
discussão sobre o fato de o país ser pacífico e cordial. Como explicar que 19
das 50 cidades mais violentas do mundo estão aqui? Se somos honestos,
trabalhadores, como justificar os altíssimos índices de corrupção, a
promiscuidade entre os interesses públicos e privados?
Eu termino o penúltimo capítulo
do livro falando de uma disputa em andamento pela memória da escravidão. Essa
batalha trata do calendário nacional, envolvendo a princesa Isabel e o 13 de
maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea, e o 20 de novembro [de 1695], com
a morte do Zumbi dos Palmares. O 13 de Maio é cada vez menos celebrado em
relação ao passado. Ao mesmo tempo, o 20 de Novembro também não está em todos
os estados do país. O que está em jogo aí é a memória e o papel da escravidão
na construção da identidade, inclusive para questionar como vamos nos
relacionar com esse tema no futuro.
O senhor passou por Cabo Verde,
Senegal, Angola, Gana, Marrocos, Benin, Moçambique e África do Sul. O peso
do passado do tráfico negreiro é o mesmo nestes países?
Existe um grande ressentimento em
relação ao colonialismo europeu do século 19 e os que exploraram seus recursos
naturais, mas não propriamente contra a escravidão, porque quem ficou no
continente não sofreu as consequências, a dor da escravidão. Claro, foram
separados da família, comunidades foram divididas. Mas a escravidão era praticada
de maneira ancestral na África desde o Egito, isso aparece no livro do Gênesis.
A Mauritânia, por exemplo, aboliu a escravidão em 2007. Não existe essa ideia
de passivo, de ajuste de contas que nós vimos no continente americano.
De que maneira o Brasil é visto
nos países africanos pelos quais o senhor passou?
Existe uma empatia muito grande,
as pessoas adoram o Brasil. Gostam muito da música, torcem pela seleção
brasileira, cultuam o Senhor do Bonfim, assistem novelas. Há um interesse muito
grande, mas, neste momento, percebi um ressentimento pelo fato de o Brasil ter
voltado as costas para a África. O Brasil tem vivido surtos de aproximação e
distanciamento com o continente. Cito na introdução do livro que o primeiro
país a reconhecer a independência de Angola em relação ao domínio português foi
o Brasil, durante o regime militar. O último surto de aproximação ocorreu
durante o governo Lula, com as empreiteiras, que depois foram envolvidas na
Lava Jato. Atualmente, o distanciamento é total. O vácuo deixado pelo Brasil na
África está sendo ocupado pela China, com empreendimentos em diversos países.
Mas não senti cobrança em relação à escravidão.
O presidente Jair Bolsonaro
afirmou que os portugueses nem pisaram na África, e que os próprios negros
foram responsáveis pelo tráfico. Como o senhor vê tal afirmação?
História é uma ferramenta de
construção de identidade. Você olha para o passado, constrói o presente e
prepara o futuro. Isso significa que a história é alvo de interpretações,
manipulações por parte de partidos, governos, campanhas eleitorais, o tempo
todo. Quando você fala de projetos políticos e ideologias, estamos falando de
construção da identidade nacional. Que país nós somos, o que gostaríamos de
ser. O atual momento é muito pródigo nisso. O grande problema é que o debate
carece de racionalidade porque está baseado em opiniões aleatórias,
preconceituosas, sem fundamento, com o objetivo de manipular o público, em
favor de projetos muito bem alicerçados, que estão sendo implantados de forma
rápida no Brasil, envolvendo direitos sociais, trabalhistas, a proteção do meio
ambiente. O meu livro chega para infundir alguma racionalidade no meio disso
tudo. É um absurdo dizer que os portugueses nunca pisaram na África.
Justamente neste momento há uma
descrença do atual governo em relação à pesquisa. Como o senhor imagina o
impacto da publicação a partir dessa perspectiva?
O livro chega em um momento
adequado porque o assunto está em debate nas redes sociais, no discurso
político. Mas não acho que a obra seja mais um capítulo para criar polêmica.
Estou amparado na história e na pesquisa. Agora, tem gente que vai discordar da
visão que eu passo sobre Zumbi, os portugueses na África. Hoje, por exemplo,
existe um discurso muito racista no Brasil de que não há dívida histórica a ser
paga na forma de cotas preferenciais para afrodescendentes, porque os negros
africanos escravizavam africanos e, portanto, supostamente, os escravos eram
corresponsáveis pela própria escravidão. Isso é um absurdo, algo que remonta às
ideias do século 19. No livro, explico que havia escravidão na África tanto
quanto existia na Europa, na Ásia, no Oriente Médio. Brancos escravizavam
brancos. Agora, o fato é que o tráfico negreiro no Atlântico foi transformado
numa escala industrial pela necessidade de mão de obra dos colonizadores
europeus. Não se pode dizer que os africanos foram escravizados e cruzaram o
Atlântico por vontade própria. Eles foram comprados por milhões, atendendo uma
demanda.
Recentemente, o compositor
Caetano Veloso afirmou que é necessária uma segunda abolição no Brasil. O
senhor endossou a ideia. O que isso significaria na prática?
Endossei e levei muita paulada
nas redes sociais, apenas por ter apoiado o Caetano Veloso, que virou um
personagem meio maldito para determinada parcela da sociedade brasileira.
Entendo que a segunda abolição tem a ver com uma frase do Joaquim Nabuco no século
19, que diz o seguinte: "Não adianta acabar com a escravidão. É preciso
também cuidar do legado da escravidão". Essa é a segunda abolição. A nossa
população afrodescendente ganha menos; o homem negro tem 10 vezes mais chances
de ser vítima de um homicídio do que um homem branco; a população carcerária é
majoritariamente negra; é maioria nas periferias insalubres; não existiu nenhum
ministro negro no Supremo Tribunal Federal depois que Joaquim Barbosa se
aposentou; não há senadores, poucos deputados ou donos de empresas. São poucos
escritores, diretores de cinema, professores da USP, e é disso que se trata a
segunda abolição. Promover essa parcela da população, que é maioria, através de
políticas públicas adequadas, por mais polêmicas que elas sejam, para que todos
os brasileiros tenham chance de expressar seus talentos, vocações, com toda
potencialidade. Aí, sim, o Brasil vai se tornar um país decente, porque hoje
vivemos um regime de exclusão, com uma elite pequena, que se beneficia dos
recursos públicos, que consome, e do outro lado há uma massa enorme de
excluídos. Esse é um legado da escravidão que precisa ser combatido.
Guilherme Henrique | Deutsche
Welle
Sem comentários:
Enviar um comentário