Thierry Meyssan*
As mudanças políticas que
transformam o Médio Oriente desde há dois meses são a resultante não do
esmagamento dos protagonistas, mas da evolução dos pontos de vista iraniano,
turco e emiradense. Lá onde o poderio militar norte-americano falhou, a
subtileza diplomática triunfou. Recusando pronunciar-se sobre os crimes de uns
e de outros, Moscovo consegue lentamente pacificar a região.
Nos últimos cinco anos, a Rússia
multiplicou as iniciativas para restabelecer o Direito Internacional no Médio
Oriente. Ela apoiou-se em especial no Irão e na Turquia, dos quais não
partilha, no entanto, a maneira de pensar. Os primeiros resultados deste
paciente exercício diplomático redesenham as linhas de partilha no meio de
vários conflitos.
Novas relações de força e um novo
equilíbrio instalam-se discretamente no vale do Nilo, no Levante e na península
Arábica. Pelo contrário, a situação bloqueia-se no Golfo Pérsico. Esta enorme e
coordenada mudança toca diferentes conflitos aparentemente sem relação entre
eles. É o fruto da paciente e discreta diplomacia russa [1]
e, em certos dossiês, da relativa boa vontade dos EUA.
Ao contrário dos Estados Unidos,
a Rússia não procura impor a sua visão do mundo. Ela parte, pelo contrário, da
cultura dos seus interlocutores que, com o seu contacto, por pequenos passos
modifica.
Recuo dos jiadistas e dos
mercenários curdos na Síria
Tudo começou a 3 de Julho : um
dos cinco fundadores do PKK, Cemil Bayik, publicava uma coluna de opinião
no Washington Post apelando à Turquia para encetar negociações
levantando o isolamento do seu prisioneiro mais célebre : Abdullah Öcalan [2].
De repente, as visitas à prisão do líder dos Curdos autonomistas da Turquia,
proibidas desde há quatro anos, foram novamente autorizadas. Esta abertura era
um segredo de polichinelo. O rumor fora espalhado pelo Partido Republicano do
Povo que a considerava como uma traição. Esperando por uma clarificação, os
seus votantes abstiveram-se aquando da eleição municipal, a 23 de Junho,
infligindo uma severa derrota eleitoral ao candidato do Presidente Erdogan.
Simultaneamente, os combates
recomeçavam na zona ocupada pela Alcaida no Norte da Síria, na província de
Idlib. Este Emirado islâmico não tem administração central, mas uma miríade de
cantões adstritos a grupos combatentes diversos. A população é alimentada por
«ONGs» europeias afiliadas aos Serviços Secretos desses países e a presença do
Exército turco dissuade os jiadistas de tentar conquistar o resto da Síria.
Sendo esta situação pouco verificável, a imprensa da Otanesca apresenta o
Emirado Islâmico de Idlib como o pacifico refúgio de «opositores moderados à
ditadura de Assad». De súbito, Damasco, propulsionada por apoio aéreo russo,
começou a reconquistar o território e o Exército turco a retirar-se
silenciosamente. Os combates tem sido extremamente sangrentos, em primeiríssimo
lugar para a República. No entanto, após várias semanas, o avanço é notável, de
tal modo que, se nada o travar, a província poderá estar libertada em Outubro.
A 15 de Julho, por ocasião do
terceiro aniversário da tentativa de assassinato de que foi alvo, e do golpe de
Estado improvisado que se seguiu, o Presidente Erdoğan anunciou a redefinição
da identidade turca, já não mais com uma base religiosa, mas, sim,
nacional [3].
Ele revelou também que o seu exército ia varrer as forças do PKK na Síria e
transferir uma parte dos refugiados sírios para uma zona fronteiriça com 30 a 40 quilómetros de
profundidade. Esta zona corresponde, um pouco mais ou menos, àquela na qual o
Presidente Hafez el-Assad havia autorizado, em 1999, as forças turcas a
reprimir eventuais disparos de artilharia curda. Depois de ter anunciado que o
Pentágono não podia abandonar os seus aliados curdos, emissários
norte-americanos vieram a Ancara fazer o contrário e aprovar o plano turco.
Parece que, como sempre afirmamos, os chefes do «Rojava», esse pseudo-Estado
autónomo curdo em terra síria, são quase todos de nacionalidade turca.
Portanto, eles ocupam a região que limparam etnicamente. As suas tropas, de
nacionalidade síria, enviaram, entretanto, emissários a Damasco para pedir a
protecção do Presidente Bashar al-Assad. Lembremos que os Curdos são uma
população nómada sedentarizada no início do século XX. De acordo com a Comissão
King-Crane e a Conferência Internacional de Sèvres (1920), a existência de um Curdistão
só é legítima no actual território turco [4].
É pouco provável que a França e a
Alemanha deixem a Síria reconquistar a totalidade do Emirado islâmico de Idlib
e abandonem a sua fantasia de Curdistão, seja onde for (na Turquia, no Irão, no
Iraque ou na Síria, mas não na Alemanha onde, no entanto, eles constituem um
milhão). Mas, poderão ser forçados a isso.
Da mesma forma, apesar das
discussões actuais, é pouco provável que se a Síria se descentralizar, ela
conceda a mínima autonomia à região que foi ocupada pelos Curdos turcos.
Após vários anos de bloqueio, a
libertação do Norte da Síria repousa unicamente na mudança de paradigma turco,
fruto dos erros norte-americanos. e da Inteligência russa.
Partição de facto do Iémene
No Iémene, a Arábia Saudita e
Israel apoiam o President Abdrabbo Mansour Hadi com vistas a explorar as
reservas petrolíferas que estão situadas a cavalo sobre a fronteira [5].
Este teve de fazer face ao levantamento dos zaiditas, uma escola do xiismo. Com
o decorrer do tempo, os Sauditas receberam a ajuda dos Emiradenses, e a
Resistência zaidita a do Irão. Esta guerra, alimentada pelos Ocidentais, está a
provocar o pior episódio de fome do século XXI.
No entanto, contrariando a
ordenação dos dois campos, a 1 de Agosto, os guarda-costas emiradenses
assinaram um acordo de cooperação transfronteiriço com a polícia das fronteiras
iraniana [6].
No mesmo dia, o chefe da milícia iemenita financiada pelos Emiradenses (dito
«Conselho de transição do Sul» ou «Cintura de Segurança» ou ainda
«separatistas»), Abu Al-Yamana Al-Yafei, foi assassinado pelos Irmãos
Muçulmanos do Partido Islah financiado pela Arábia Saudita [7].
Como salta à vista, a aliança
entre os dois príncipes herdeiros da Arábia e dos Emirados, Mohammed bin Salman
(«MBS») e Mohammed ben Zayed Al Nahyane («MBZ»), deu para o torto.
A 11 de Agosto, a milícia apoiada
pelos Emirados tomou de assalto o palácio presidencial e diversos ministérios
em Áden, apesar do apoio da Arábia ao Presidente Hadi; o qual está refugiado já
há longa data em Riade. No dia seguinte, «MBS» e «MBZ» encontraram-se em Meca,
na presença do Rei Salman. Rejeitaram o Golpe de Estado e apelaram às suas respectivas
tropas para manter a calma. A 17 de Agosto, os pró-Emirados evacuavam, em boa
ordem, a sede do governo.
Durante a semana em que os
«separatistas» tomaram Áden, os Emirados controlaram de facto as duas margens
do altamente estratégico Estreito de Bab el Mandeb, que liga o Mar Vermelho ao
Oceano Índico. Ora, agora que Riade preservou a sua honra, será preciso dar uma
contrapartida ao Abu Dhabi.
Neste campo de batalha, a mudança
é imputável unicamente aos Emiradenses, os quais, depois de terem pago um
pesado tributo, tiram a real lição desta guerra impossível. Prudentes, primeiro
aproximaram-se dos Iranianos antes de enviar este tiro de aviso ao seu poderoso
aliado e vizinho saudita.
Cadeiras de dança no Sudão
No Sudão, depois de o Presidente
Omar al-Bashir (Irmão muçulmano dissidente) ter sido derrubado pelas
manifestações da Aliança para a liberdade e a mudança (ALC), e de a alta de
preço do pão ter sido anulada, um Conselho militar de transição foi colocado no
Poder. Na prática, esta revolta social e alguns biliões de petrodólares
permitiram, nas costas dos manifestantes, fazer passar o país de uma tutela
catari para uma outra saudita [8].
A 3 de Junho, uma nova
manifestação do ALC foi dispersa de forma sangrenta pelo Conselho Militar de
Transição deixando 127 mortos. Face à condenação internacional, o Conselho
Militar encetou negociações com os civis e concluiu um acordo, em 4 de Agosto,
que foi assinado a 17. Durante um período de 39 meses, o país será governado
por um Conselho Supremo de 6 civis e 5 militares, cujo acordo não especifica as
identidades. Eles serão controlados por uma Assembleia de 300 membros nomeados,
não eleitos, abrangendo 67% dos representantes da ALC. Não há evidentemente
nada de democrático nisto e nenhuma das partes se queixa a propósito.
O economista Abdallah Hamdok,
antigo responsável da Comissão Económica das Nações Unidas para a África, será
o Primeiro-ministro. Ele terá de obter o levantamento das sanções de que o
Sudão é alvo e reintegrar o país na União Africana. Ele fará julgar o antigo
Presidente Omar al-Bashir no país a fim de lhe garantir que não é extraditado
para Haia, para o Tribunal Penal Internacional.
O verdadeiro poder será detido
pelo «general» Mohammed Hamdan Daglo (dito «Hemetti»), o qual não é general,
nem sequer soldado, mas chefe da milícia contratada por «MBS» para subjugar a
Resistência iemenita. Durante este jogo de cadeiras de dança, a Turquia —que
possui uma base militar na ilha sudanesa de Suakin para cercar a Arábia
Saudita— nada disse.
De facto, a Turquia aceita perder
em Idlib e no Sudão para ganhar contra os mercenários curdos pró-EUA. Apenas
este último jogo é vital para ela. Terão sido necessários muitos debates para
que se desse conta que não podia ganhar em todos os tabuleiros ao mesmo tempo e
para que ela hierarquizasse as suas prioridades.
Os Estados Unidos contra o
petróleo iraniano
Londres e Washington prosseguem a
sua competição, encetada há setenta anos, para controlar o petróleo iraniano.
Tal como na época de Mohammad Mossadegh, a Coroa britânica pensa decidir
sozinha acerca do que acha que lhe caberá no Irão [9].
Enquanto isso Washington não quer que as suas guerras contra o Afeganistão e o
Iraque tragam proveitos a Teerão (consequência da doutrina Rumsfeld/Cebrowski)
e entende fixar o preço mundial da energia (doutrina Pompeo) [10].
Estas duas estratégias confluíram
durante a tomada do petroleiro iraniano Grace 1 nas águas da colónia britânica
de Gibraltar. O Irão, por sua vez, arrestou dois petroleiros britânicos no
Estreito de Ormuz pretendendo —insulto supremo— que o principal transportava
«petróleo de contrabando», quer dizer petróleo iraniano subsidiado comprado por
Londres no mercado negro [11].
Assim que o novo Primeiro-ministro, Boris Johnson, percebeu que o seu país
tinha ido longe demais, teve a «surpresa» de ver a justiça «independente» da
sua colónia libertar o Grace 1. De imediato Washington emitiu um mandado para o
apreender de novo.
Desde o início deste caso, os
Europeus pagam os custos da política norte-americana e protestam, sem grandes
consequências [12].
Só os Russos defendem, não o seu aliado iraniano, antes o Direito
Internacional, tal como o têm feito a propósito da Síria [13],
o que lhes permite manter uma linha política sempre coerente.
Neste dossiê, o Irão dá provas de
uma grande tenacidade. Apesar da viragem clerical na eleição do Xeque Hassan
Rohani, em 2013, o país reorienta-se para a política nacional do laico Mahmoud
Ahmadinejad [14].
A sua instrumentalização das comunidades xiitas na Arábia Saudita, no Barém, no
Iraque, no Líbano, na Síria, no Iémene poderá acabar por se tornar um simples
apoio. Aqui ainda, foi graças às longas conversações de Astana que aquilo que é
evidente para uns se acabou tornando também para os outros.
Conclusão
Com o tempo, os objectivos de
cada protagonista se hierarquizam e as suas posições definem-se.
De acordo com a sua tradição, a
diplomacia russa não busca, ao contrário dos Estados Unidos, redesenhar as
fronteiras e as alianças. Ela tenta deslindar os objectivos contraditórios dos
seus parceiros. Assim, ela ajudou o velho Império Otomano e o antigo Império
Persa a afastarem-se da sua definição religiosa (os Irmãos Muçulmanos para o
primeiro, o Xiismo para o segundo) e a regressar a uma definição nacional
pós-imperial. Esta evolução é muitíssimo visível na Turquia, mas supõe uma
mudança de chefias no Irão para ser realizada. Moscovo não busca «mudar os
regimes», mas, apenas certos aspectos das mentalidades.
* Intelectual francês,
presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas
análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana
e russa. Última obra em francês: Sous
nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable
imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand,
2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y
desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).
Notas:
[1]
Ver os parágrafos 3, 4, 5 e 10 da « Déclaration conjointe de
la Russie, de l’Iran et de la Turquie relative à la Syrie », Réseau
Voltaire, 2 août 2019, e compará-los com as declarações das reuniões
precedentes.
[2]
“Now is the moment for
peace between Kurds and the Turkish state. Let’s not waste it”, by Cemil
Bayik, Washington Post (United States) , Voltaire Network, 3
July 2019.
[3]
“A Turquia não se
alinhará nem com a OTAN, nem com a OTSC”, “A Turquia renuncia pela
segunda vez ao Califado”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede
Voltaire, 6 & 13 de Agosto de 2019.
[4]
“Os projectos de
Curdistão”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de
Setembro de 2016.
[5]
“Exclusivo : Os
projectos secretos de Israel e da Arábia Saudita”, Thierry Meyssan,
Tradução Alva, Rede Voltaire, 22 de Junho de 2015.
[6]
"إيران
والإمارات توقعان اتفاقا للتعاون
الحدودي", RT, 01/08/19.
[7]
“Missile
fired by Yemen rebels kills dozens of soldiers in port city of Aden”,
Kareem Fahim & Ali Al-Mujahed, The Washington Post, August 1, 2019.
[8]
“O derrube de Omar
al-Bashir”, Thierry Meyssan; “O Sudão passou para o
controle saudita”, “A
Força de reacção rápida no Poder no Sudão”, Tradução Alva, Rede Voltaire,
6, 23, 30 de Abril de 2019.
[9]
“Face ao Irão, Londres
defende as suas sobras do Império”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Al-Watan (Síria)
, Rede Voltaire, 26 de Julho de 2019.
[10]
“A nova Grande
Estratégia dos Estados Unidos”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede
Voltaire, 26 de Março de 2019. “Advancing the U.S.
Maximum Pressure Campaign On Iran” (Note: The graph was distributed with
the text !), Voltaire Network, 22 April 2019.
[11]
“Reino Unido / Irão:
«Grace 1» e «British Heritage»”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 12 de
Julho de 2019.
[12]
« Déclaration
conjointe des chefs d’État et de gouvernement de France, d’Allemagne et du
Royaume-Uni à propos de l’Iran », Réseau Voltaire, 14 juillet
2019.
[13]
“Russian comment on
the seizure of the Panama-flagged tanker by Gibraltar authorities ”, Voltaire
Network, 5 July 2019.
[14]
Como laico, nós pensamos que o muito místico Presidente Ahmadinejad queria
separar as instituições religiosas e políticas e por fim à função platoniana do
Guia da Revolução.
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