Nossa recente experiência
democrática esbarra na fragmentação do convívio. Universalização do ensino foi
maior trunfo em abrigar distintas realidades sociais – mas presidente parece
estar disposto a destruir tudo que nos une
Diogo Tourino de Sousa, na Revista Escuta | em Outras Palavras
A tragédia brasileira foi
retratada com primor pelo ensaio de Kléber Mendonça Filho, O som ao redor (2012).
No drama, um bairro de classe média da zona sul da cidade do Recife tem sua
rotina alterada com a chegada de uma milícia de rua, que oferece segurança aos
moradores em troca de remuneração. O grupo, liderado pelo indizível Clodoaldo,
entra no bairro com a anuência do seu mandão local, “seu” Francisco, uma
caricata e ao mesmo tempo real figura da sociedade brasileira: impune, infenso
ao som dos outros, retratado no ambiente controlado e silencioso do seu
apartamento, o homem nada na praia a despeito dos alertas sobre o risco de
tubarões.
O bairro comporta o diverso. Da
dona de casa que fuma maconha com o auxílio do aspirador de pó e se masturba
com o movimento brusco da lavadora de roupas, sofrendo de forma épica com o
latido do cachorro do vizinho, passando pelo playboy Dinho e seus
pequenos furtos por diversão, até João, um corretor de imóveis algo banal, que
alimenta uma relação de estranhos limites com a emprega doméstica. Mas o
diverso que vive e sobrevive, nunca convive.
Isso até a chegada da milícia. Ao
lado da promessa de ruas mais seguras num contexto em que a violência urbana
impõe decisões fáusticas, o grupo de Clodoaldo promove o que não existia: a
ligação entre o diverso. Os moradores, afundados na fragmentação do espaço
público, confinados na lógica privatista de suas vidas, passam a ter entre si
um elo de ligação, ainda que perverso.
É o grupo de Clodoaldo que
“unirá”, eivado do barbarismo que o cenário impõe, as vidas esparramadas do
bairro. Com ele tanto Bia, a dona de casa, quanto Gustavo, o corretor, ou mesmo
Francisco, o mandão, interagem. Uma interação nunca horizontal, nem ao menos
franca. Contudo, uma forma de interação que passou a ser comum nas cidades
brasileiras.
O filme traz cenas poderosas
sobre nós. Em uma delas o grupo de Clodoaldo, que tem o calado Fernando como
capanga, agride gratuitamente um menino de rua como forma de intimidação. Sem
universalismo, sem impessoalidade. Apenas a força discricionária que passa a
ser a marca do modo como vivemos define o grupo. Atuação sempre intervalada por
comentários sobre a vida dos moradores, que passam pela notificação de casos
extraconjugais, ou mesmo pela ameaça velada ao poder do mandão.
O filme de Mendonça Filho retrata
uma tragédia antiga em toda a sua complexidade, mostrando como a fragmentação
do público abriga consequências para a vida democrática. O diverso que não
convive, que quando se une o faz por meio da força privada, radica distante de
qualquer noção do público como forma de vida. O fenômeno em si não é novo, além
de vivido com mais intensidade nos grandes aglomerados urbanos. Porém, seu
estado presente parece ter alcançado outra forma de realização: se antes
acusávamos a sua incompletude, hoje testemunhamos a implementação de um projeto
que responde pelo seu contrário. Em outras palavras, o público que nunca se
completou, parece conviver hoje com um projeto que pleiteia sua destruição.
As denúncias da literatura
sociológica sobre os desafios presentes nessa ordem urbana são antigas. O
trabalho de Teresa Caldeira, “Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em
São Paulo” (Ed. USP, 2000), é exemplar nesse sentido. No texto, fruto de
pesquisa extensa e cuidadosa, a autora mostra como o surgimento de enclaves
fortificados nas cidades brasileira respondeu não apenas ao desejo por formas
específicas de moradia, mas sobretudo ao anseio por um modo de vida alinhavado
como sonho de ascensão da classe média. A vida nos condomínios fechados
descritos por Caldeira cumpria, assim, dois propósitos: por um lado, conferir
segurança aos moradores, prometendo um ambiente higienizado no qual a diferença
se vê anulada por muros; por outro, um status de sucesso, com uma forma
diferenciada de vida separada da lógica espontânea, desafiadora, “perigosa” e
imprevista das cidades.
O muro, que em Caldeira era
concreto, pode ser pensando de forma metafórica. Talvez seja ele a melhor
imagem de um público que não se efetiva, ainda que seja perseguido pela
dimensão formal da democracia no país. Isso porque, desde a Constituição de 1988 a luta pela
consolidação da uma vida democrática e republicana entre nós caminhou pelo
trilho da busca por formas universalistas de trato e convívio. Tema que pode
ser explorado de muitas formas, mas que encontra no modo como lidamos lá atrás
com a educação um bom exemplo para a reflexão acerca dos rumos do presente.
O Brasil passou por um processo
de massificação do acesso à escola pública que encontra seu início ainda nos
anos 1970. O fato, porém, é que o direito à educação foi constitucionalizado em
88 e hoje podemos afirmar que a escola pública é o segmento do Estado que
alcança o maior número de territórios no país. Conforme discussão avançada por
Marcelo Burgos, isso coloca a escola como instituição central no processo de
institucionalização da democracia entre nós[I], sobretudo quando pensamos nos
segmentos populares.
Isso porque, a lógica de
fragmentação dos territórios nas cidades fez com que a escola pública como
instituição abrigasse cada vez mais uma parcela específica da sociedade. Se no
passado a instituição foi capaz de promover, ainda que de maneira não ideal, o
convívio de segmentos sociais distintos, hoje, confinadas à lógica fragmentada
do urbano, por vezes entrecortado pela violência, as escolas se direcionam a
parcelas muito particulares dos jovens.
E o convívio sem o diferente
traz, por certo, desdobramentos para a vida democrática. Assim como Caldeira
havia notado na questão da moradia, quando reuniões de condomínio, coordenadas
por lógicas sistêmicas e punitivas, não exerciam qualquer pedagogia
democrática, o convívio apartado da diferença no sistema de ensino tem
sintetizado a tragédia há pouco descrita: vidas partidas, que não se unem de
forma horizontal, mediadas pela força.
Ainda assim, o fato de ter sido
esse um direito assegurado pela Carta de 88 faz com que o desafio permaneça. A
escola pública sobreviveu como uma instituição de convívio, que quando capaz de
superar a fragmentação dos territórios, foi capaz de promover alguma pedagogia
para a vida coletiva.
Ao lado dela, mesmo as
instituições privadas de ensino, que têm sido o endereço preferido das famílias
que conseguem arcar com mensalidades variadas, pode ser pensada em sua relação
curiosa com o público. O poder de agenda do Estado nesse quesito é
considerável, e exercido não necessariamente de forma autoritária. Falo do modo
rigoroso como nossa tradição avançou na escolha de materiais didáticos, ou mesmo
na construção de currículos, sem mencionar, é claro, o ingresso nas
instituições públicas de ensino superior, ainda excelentes e sede do ensino,
pesquisa e extensão de qualidade, que é capaz de pautar o ensino médio
brasileiro.
Não por acaso, são esses os alvos
preferidos da nova forma de realização da tragédia entre nós. O governo
Bolsonaro, de forma não aleatória, tem investido sua retórica contra os livros
didáticos, os currículos e, seu objeto privilegiado de ofensa, o Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM). Ao lado disso, avança na classe política, em resposta,
é claro, ao anseio de parcela da sociedade, o debate sobre o ensino domiciliar,
que privaria de vez o convívio, ainda que fragmentado.
Esta última investida responde, por
certo, de forma exemplar sobre o que descrevi como sendo um ataque ao público.
Dado não isolado, já precedido entre nós pelo ataque amplo ao sistema de ensino
como forma de desvalorização, que tem no projeto “Escola sem Partido” triste
nota, a defesa do ensino domiciliar desvela o ataque ao público como forma de
vida que parece ser o principal projeto do governo presente. Bolsonaro não tem
na escola seu único alvo, avançando o privatismo também em áreas como saúde –
com evidente desmobilização do SUS – e segurança – como o franqueamento do
acesso às armas indica.
Essa defesa de uma cidadania
estandardizada não pelo público, mas por padrões não-universalistas de
direitos, encontra mesmo na questão ambiental um marco. Se a ordem regulada dos
anos 1930, conforme célebre descrição de Wanderley Guilherme dos Santos[II],
havia sido “desregulamentada”, já nos anos 1960, por pautas públicas como a
defesa do meio ambiente, o governo Bolsonaro indica hoje não estar disposto a
defender nada que nos una, para além da força privada, claro.
Isso nos leva a crer que em
concomitância ao aparente caos de orientações que invade a agenda governamental
brasileira, e sem negá-lo, há uma orientação que parece sintetizar medidas que
vêm sendo capitaneadas nos diferentes setores da sociedade. Trata-se do projeto
de destruição do público enquanto forma de vida e princípio de estruturação da
sociedade. E esse projeto é, em quantidade e qualidade, distinto do que vinha
sendo nossa lógica.
Assim como nos ensinou Hannah
Arendt, distinções são relevantes em política[III]. No exemplo da filósofa,
“não é porque utilizo o salto do meu sapato para bater um prego na parede que
posso chamá-lo de martelo”. De forma análoga, penso que essa é uma importante
distinção a ser feita sobre nossa tragédia: no drama de Mendonça Filho, ela
surge como a denúncia da incompletude de uma vida, carente da dimensão pública
como espaço de mediação e refém da milícia privada como forma de convívio;
hoje, contudo, ela surge como projeto consciente de um governo que atenta
contra o público como forma de organizar a sociedade por meio do barbarismo do
privado.
Sob vários aspectos, a
Constituição de 1988, que durante os anos turbulentos da nova República serviu
de mapa de navegação, permitindo com que a crença na sua realização
sobrevivesse mesmo ante a empiria adversa da sua incompletude, vive hoje seu
avesso. Na qualidade de “entrave” ao projeto de destruição do público em curso,
a Carta precisa ser “desidratada”, conforme disse, com requintes de crueldade,
o atual presidente do Supremo, com o propósito de “destravar” a economia[IV]. O
Brasil que daí virá será, por certo, contrário ao Brasil que nunca tivemos, mas
sempre desejamos.
[I] BURGOS, Marcelo Baumann.
Escola pública e segmentos populares em um contexto de construção institucional
da democracia. Dados [online]. 2012, vol.55, n.4 [citado
2019-08-22], pp.1015-1054. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582012000400006&lng=pt&nrm=iso>.
ISSN 0011-5258. http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52582012000400006.
[II] SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania
e justiça: a política social e a ordem brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Campus,
1979.
[III] ARENDT, Hannah. Entre
o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007.
[IV] https://www.conjur.com.br/2019-ago-12/tofolli-preciso-desidratar-constituicao-destravar-economia
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