Manuel Carvalho da Silva* |
Jornal de Notícias | opinião
A propósito da possível greve dos
motoristas continuaremos debaixo de um bombardeamento com a tese de que há
contradições insanáveis entre a legislação laboral e a racionalidade económica,
como se as opções económicas ao nível da governação de um país, de setores de
atividade e de empresas não tivessem de considerar a sustentação das obrigações
sociais no geral e, em particular, as inerentes à garantia de emprego digno, de
salários justos e de corretas contribuições para a Segurança Social.
Neste espaço já abordei causas de
ordem laboral e política que conduzem a lutas radicalizadas e voltarei a
fazê-lo quando a atual poeira assentar. Por hoje acrescento a minha indignação
perante a atuação oportunista de setores patronais e políticos retrógrados e de
candidatos a projetos populistas. Também o Governo merece críticas face aos
seus "serviços máximos", às suas crónicas insuficiências na
dinamização da negociação coletiva e à sua complacência perante a
depauperização da Segurança Social. Todos tendem a utilizar os trabalhadores
como carne para canhão na execução dos seus objetivos políticos. Assim, dedico
o espaço que me resta hoje para algumas observações sobre desafios a assumir
para dar futuro à Inspeção do Trabalho (IT).
A transformação tecnológica e
inúmeros fatores de ordem política, ambiental e outras, influenciam a evolução
da divisão do trabalho e as formas como este se pode organizar, introduzem
grandes convulsões e mudanças no mercado de trabalho e a necessidade de se
reformularem as instituições que fiscalizam e julgam o cumprimento das leis
laborais.
Há um potencial de ambiguidade, e
de fugas ao cumprimento da legislação laboral, por ser permitido a muitos
patrões mascararem relações de trabalho assalariado sob a capa de
"modernidade da economia colaborativa". É a marca mais relevante nas
práticas das plataformas digitais, algumas especializadas em colocar propostas
de tarefas online e atribuir o trabalho à menor retribuição aceite pelo
trabalhador. São efetivas praças de jorna, apesar da aparência moderna,
desmaterializada (e governada por algoritmos) com que se apresentam. As
indignidades que transportam são do século XIX e trazem forte retrocesso ao
quadro das relações laborais.
As tensões entre a condição de
prestador de serviços e de trabalhador por conta de outrem estão a marcar o
presente e marcarão o futuro. A legislação laboral tem de ser clara na
identificação de quem (na relação de trabalho) detém a autoridade e a direção
do trabalho, das diversas dependências em que se encontra o trabalhador e da
desproporção de poderes entre as partes; e a obrigação de caraterizar novas
exigências mentais e físicas colocadas aos trabalhadores.
É imperioso municiar de meios
humanos e técnicos a IT, assegurar-lhe sistemas de informação internos que lhes
permitam tratar os dados de que dispõe, garantir-lhe cruzamento de dados
nomeadamente com a Autoridade Tributária e reforçar-lhe quer a preparação de
novas valências quer a autoridade para agir. Concomitantemente, há que preparar
os atores do sistema de Justiça, desde logo juízes e magistrados do Ministério
Público, que hoje, em grande parte, não dispõem nem de preparação específica,
nem de meios para interpretar e julgar corretamente as situações com que se
deparam.
* Investigador e professor
universitário
Sem comentários:
Enviar um comentário