segunda-feira, 23 de setembro de 2019

LER A CHINA


Henrique Burnay | Diário de Notícias | opinião

A Alemanha já fez saber que uma das prioridades da sua presidência rotativa da União Europeia, que acontece no segundo semestre do ano que vem, exactamente antes da portuguesa, é organizar uma cimeira com a China em que estejam sentados à volta da mesa, do lado europeu, não apenas as insituições europeias mas também cada um dos 27 (ou 28, nunca se sabe) Estados Membros. Esta originalidade - incluir todos e cada um dos países da UE - tem um significado externo e interno. O que Berlim quer é mostrar, aos chineses mas sobretudo aos restantes europeus, que o quadro das relações com a China se define a nível europeu e, é esse o ponto, compromete todos. O bilateralismo é só às vezes e só para alguns. Desta vez, querem os grandes Estados Membros (França pensa a mesma coisa), não é para ninguém.

Em Março deste ano, um mês antes da última cimeira UE - China, a Comissão Europeia publicou um documento que pretende ser um olhar estratégico para o futuro das relações entre ambos. O mais significativo desse documento é que define a China, simultaneamente, como "um parceiro de cooperação" com quem a Europa tem objectivos alinhados; um "parceiro negocial" com o qual é necessário encontrar equilíbrios na defesa dos respectivos interesses; "um competidor económico" que sabemos que procura liderança tecnológica; e "um rival sistémico" que promove modelos de governança alternativos. O que isto quer dizer é que, no mais relevante, na economia e nas relações internacionais, não lhe chama inimigo mas chama-lhe competidor e rival. E, expectável, diz que com um parceiro destes se tem de agir em comum.


No tempo da Guerra Fria, que não serve para ler a actualidade mas a ajuda a pensar, do lado de lá estavam inimigos, e com os inimigos não havia intensas trocas comerciais nem parcerias estratégicas. Nesse tempo, a prova derradeira de que o nosso sistema era preferível é que havia muros para impedir os de leste de fugirem para o Ocidente. Hoje, os chineses que podem viajar não tentam desertar, como os artistas e turistas vindos da União Soviética tantas vezes faziam. Hoje, há investimento externo chinês (directa ou indiscretamente público) na Europa e aproximações selectivas aos Estados Membros da UE com mais fragilidades (necessidades) económicas. Foi assim em Portugal e na Grécia, tem sido assim a leste.

Quem percorra as estantes das livrarias portuguesas encontrará pouca literatura sobre a China e a sua visão do mundo escrita ou traduzida em português (ainda que um dos autores internacionais relevantes sobre o tema seja Bruno Maçães e, em Portugal, Raquel Vaz Pinto tenha escrito sobre China também). Pelo contrário, quem quiser poderá ler extensamente sobre Trump. Apesar de ser expectável que se escreva e leia mais sobre o que nos é próximo, o que isto também quer dizer é que por cá pensamos pouco sobre a enorme transformação que a emergência da China - que já não é de ontem - traz ao Mundo, muito em especial ao nosso.

Daqui a um ano haverá uma cimeira, liderada pela Alemanha, entre a Europa e a China, não é a última, a definitiva, mas pretendem que seja um marco. Temos um ano para pensar mais em quais são os nossos interesses nesta relação. Os nacionais e os globais. Veremos se as estantes enchem.

*Escreve segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico

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