Um voo, em seus jatos, consome o
combustível de um ano, numa cidade africana. É preciso cortar seu poder. Um
começo: limitar a renda e a riqueza individuais; e defender a frugalidade
pessoal, combinada com vida coletiva abundante
Não é exatamente verdade que por
trás de cada grande fortuna há um grande crime. Músicos e romancistas, por
exemplo, podem tornar-se extremamente ricos oferecendo prazer a outras pessoas.
Mas parece ser uma verdade universal de que diante de toda grande fortuna está
um grande crime. Riquezas imensas traduzem-se automaticamente em imensos
impactos ao meio ambiente, independentemente das intenções daqueles que as
possuem. Os muito ricos, quase por definição, estão cometendo ecocídio.
Algumas semanas atrás, recebi uma
carta de um funcionário de um aeroporto privado, no Reino Unido. “Eu vejo
coisas que realmente não deveriam estar acontecendo em 2019” , escreveu. Todo dia,
observa aeronaves do modelo Global 7000 [para 10 a 19 passageiros],
Gulfstream G650 [11 a 18 passageiros] e até Boeings 737 decolarem com apenas um
passageiro, a maior parte a caminho dos EUA e da Rússia. Os Boeing 737
privados, construídos para levar 174 passageiros, são abastecidos no aeroporto
com cerca de 25 mil litros de combustível. Essa é a mesma quantidade de energia
fóssil que uma pequena cidade africana utiliza em um ano.
Aonde estão indo esses
passageiros solitários? Talvez, visitar uma de suas supercasas, construídas e
geridas a um enorme custo ambiental, ou a uma viagem em seus superiates, que
podem queimar 500 litros
de diesel por hora em velocidade de passeio, e são construídos e mobiliados com
materiais raros, extraídos às custas de paisagens naturais.
Não deveria nos surpreender o
fato de que quando a Google articulou uma reunião
dos ricos & famosos no resort de Verdura, na Sicília, em julho,
para discutir o colapso climático, seus delegados chegaram em 114 jatos
privados e em uma frota de megaiates, e dirigiram pela ilha com seus
supercarros. Mesmo quando têm boas intenções, os ultrarricos não conseguem
deixar de destruir o mundo vivo.
Uma série de pesquisas mostra que
a renda é, de longe, o fator mais
determinante no impacto ambiental. Não importa quão
ecológica a pessoa pensa que é: se tem dinheiro excedente, ela gasta.
A única forma de consumo que está clara e positivamente correlacionada com
suas boas intenções perante o meio ambiente é a dieta: pessoas que se veem como
“verdes” tendem a comer menos carne e mais vegetais orgânicos. Mas estas atitudes
têm pouca influência na quantidade de combustível de transporte, energia
doméstica e outros materiais consumidos. O dinheiro domina tudo.
Os efeitos desastrosos do poder
de compra são agravados pelos impactos psicológicos de ser rico. Estudos abundantes
mostram que quanto mais rico você é, menos tem capacidade de
se conectar a outras pessoas. A riqueza suprime a
empatia. Um dos estudos revela que pessoas que dirigem carros caros têm menos probabilidade de
parar para pessoas nas faixas de pedestre do as que dirigem carros populares.
Outro, revelou que pessoas ricas tinham menos capacidade que as pobres de
sentir compaixão por
gente com câncer. Apesar de serem desproporcionalmente responsáveis por nossa
crise ambiental, os ricos serão os últimos e
os que menos sofrerão com o desastre planetário, enquanto os pobres serão os
primeiros e os mais prejudicados. Quanto mais ricos, sugere a
pesquisa, menos o conhecimento das mudanças climáticas os perturba.
Outro problema é que a riqueza
limita as perspectivas até das pessoas com as melhores intenções. Na semana
passada, Bill Gates argumentou,
em uma entrevista ao jornal Financial Times, que desinvestir em
combustíveis fósseis é uma perda de tempo. Seria melhor, segundo ele, despejar
dinheiro em novas tecnologias disruptivas com emissões mais baixas. É claro que
precisamos de novas tecnologias. Mas ele não entendeu o ponto crucial: para
prevenir a catástrofe climática, o que conta não é o que você faz, mas o que
você para de fazer. Não importa quantos painéis de energia solar você instala,
se não fechar, simultaneamente, usinas de carvão e gás. A menos que usinas de
combustível fóssil sejam retiradas antes do fim de suas vidas úteis, e toda
exploração e desenvolvimento de novas reservas de combustível fóssil sejam
interrompidas, há pouca chance de impedir que a Terra aqueça 1,5ºC.
Mas isso requer mudanças
estruturais, o que envolve intervenção política tanto quanto inovação
tecnológica: uma abominação para os bilionários do Vale do Silício. Exige o
reconhecimento de que dinheiro não é uma varinha mágica que faz todo o mal desaparecer.
Na semana passada, me uni à Greve
Global pelo Clima, na qual nos levantamos junto aos jovens, cujo grito ressoou
pelo mundo. Como sou um trabalhador autônomo, me pergunto contra quem será
minha greve. Contra mim mesmo? Sim: contra um aspecto meu, pelo menos. Talvez,
a coisa mais radical que possamos fazer agora seja limitar nossas aspirações
materiais. A hipótese com a qual governos e economistas operam é que todos nós
lutamos para maximizar nossas riquezas. Se formos bem sucedidos nessa tarefa,
inevitavelmente demoliremos o sistema em que nossa vida se apoia. Se os pobres
viverem como ricos e os ricos viverem como oligarcas, destruiremos tudo. A
busca contínua por riqueza, em um mundo que já possui o bastante (apesar de
muito mal distribuído) é a fórmula para destruição em massa.
Uma greve significativa em defesa
do mundo vivo é, em parte, uma guerra contra o desejo de aumentar nossa renda e
de acumular riqueza: desejo moldado, mais do que possivelmente nos damos conta,
pelas narrativas sociais e econômicas dominantes. Eu vejo que minha greve é em
apoio a um conceito radical e perturbador: já basta. Individual e
coletivamente, é hora de decidir o que “basta” significa, e como saber em que
momento alcançamos esse ponto.
Há um nome para essa abordagem,
cunhado pela filósofa
belga Ingrid Robeyns: limitismo. Robeyns argumenta que deveria
haver um limite para a quantidade de renda e riqueza que uma pessoa pode
acumular. Da mesma forma como reconhecemos a linha da pobreza, abaixo da qual
ninguém pode estar, deveríamos reconhecer a linha da riqueza, acima da qual
ninguém poderia subir. Esse chamado a um nivelamento talvez seja a maior
blasfêmia para o discurso contemporâneo.
Mas seus argumentos são sólidos.
Excedente de dinheiro permite que algumas pessoas exerçam poder desordenado
sobre outras: no trabalho; na política; e sobretudo na captura, uso e
destruição da riqueza natural do planeta. Se todos quiserem florescer, não podemos
pagar pelos ricos. Tampouco podemos bancar nossas próprias aspirações, que a
cultura da maximização da riqueza encoraja.
A triste verdade é que os ricos
conseguem viver como vivem simplesmente porque outros são pobres: não há espaço
nem físico, nem ecológico, para todos buscarem o luxo privado. Ao invés disso,
deveríamos lutar por c frugalidade
privada e luxo público. A vida na Terra depende da moderação.
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*George Monbiot -- Jornalista, escritor, académico e ambientalista do Reino Unido.
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