Ricardo Paes Mamede | Diário de
Notícias | opinião
A coordenadora do Bloco de
Esquerda, Catarina Martins, afirmou numa entrevista que o programa eleitoral do BE é
social-democrata. João Miguel Tavares (JMT) concluiu daí que todos os
principais partidos portugueses se revêem hoje na social-democracia. Segundo o
colunista isto é um risco para o sistema político, pois reduz as possibilidades
de escolha, alimenta a abstenção e abre caminho a partidos anti-sistema. O
texto de JMT está cheio de equívocos.
O primeiro e decisivo equívoco de
JMT está no entendimento do que é a social-democracia. Segundo afirma,
"social-democracia é defender a democracia representativa e a justiça
social dentro de um sistema capitalista, atribuindo ao Estado um papel de
regulação, protecção e distribuição de riqueza". De facto, estes são traços
característicos da doutrina social-democrata. Mas não são nem necessários nem
suficientes para distinguir a social-democracia de outras correntes políticas e
ideológicas.
Por exemplo, no liberalismo
clássico de John Stuart Mill encontramos tanto a defesa de um sistema de
mercado capitalista, como argumentos poderosos para sustentar a intervenção do
Estado nas economias visando corrigir injustiças, aumentar a eficiência dos
mercados e alargar o espaço de liberdade dos indivíduos. O liberalismo clássico
de Mill ainda hoje inspira grande parte dos partidos liberais europeus. Da
mesma forma, a doutrina democrata-cristã, seguida pela maioria dos governos
europeus durante os trinta anos que se seguiram à 2ª Guerra Mundial, assenta na
defesa do sistema capitalista, ao mesmo tempo que defende a necessidade de
proteger os mais fracos.
A proximidade entre o programa
social-democrata e aquele que é seguido pelos partidos da direita tradicional
(conservadores e liberais) é explicado por JMT com base na tese de que estes
partidos foram integrando ao longo do tempo a agenda da social-democracia.
Também aqui está equivocado. Historicamente, o que se verifica é principalmente
o contrário.
A social-democracia é
frequentemente associada ao Estado Social, às políticas económicas
contra-cíclicas e ao planeamento económico. Acontece que nenhum destes pilares
foi concebido nem inicialmente implementado por social-democratas.
O Estado Social foi primeiro
estabelecido (na sua versão corporativa) por Bismark, um chanceler conservador
alemão, e mais tarde (na versão universalista) por Beveridge, um político
inglês liberal. Da mesma forma, a ideia de políticas contra-cíclicas têm o seu
expoente em Keynes, também ele um inglês apoiante do liberalismo. No quadro das
democracias ocidentais, o planeamento económico foi abraçado no pós-Segunda
Guerra Mundial por várias áreas políticas, sendo Jean Monet (um político
francês insuspeito de simpatias socialistas) um dos seus principais
impulsionadores. Nestes aspectos decisivos foi a social-democracia que se
apoderou de ideias de conservadores e liberais e não o contrário.
A regulação do capitalismo não é
nem nunca foi o aspecto que permite distinguir a social-democracia das
restantes ideologias e práticas políticas. A social-democracia (quando o é de
facto) distingue-se pela ênfase que atribui à promoção das igualdades, ao
combate às discriminações e à utilização do sistema de impostos e de serviços
públicos universais para assegurar direitos e redistribuir recursos. Outros dão
prioridade à acumulação capitalista, defendendo que "primeiro é preciso
crescer, para depois distribuir", secundarizando assim o combate às
desigualdades.
Outro equívoco de JMT consiste em
confundir o programa social-democrata com a aceitação do capitalismo. Uma das
clivagens históricas dentro do partido social-democrata alemão (e que se
reflectiu nos debates internos na maioria dos outros partidos da mesma área)
foi o contraste entre as visões de Kautsky e de Bernstein. O primeiro, cuja
influência foi dominante na tradição social-democrata até meados do século XX,
defendia como objectivo de longo prazo a construção de uma sociedade
socialista, sem prejuízo da implementação de reformas sociais favoráveis aos
trabalhadores no quadro do capitalismo. Bernstein destacou-se na história do
movimento por atribuir ao sistema capitalista a capacidade de responder às
aspirações dos trabalhadores e das classes médias, defendendo para os
sociais-democratas o papel de gestores do sistema, deixando cair a ambição de o
suplantar.
A partir da década de 1950, a diferença entre
aqueles que pretendem superar o capitalismo e os que apenas se propõem geri-lo
melhor (eventualmente para nele introduzir elementos de natureza socialista)
tornou-se um elemento diferenciador entre os partidos social-democratas e os
partidos revolucionários de matriz marxista. Por quererem mais do que gerir o
capitalismo e não aceitarem os constrangimentos externos que limitam o alcance de
acção dos Estados nacionais, os partidos revolucionários raramente almejaram ou
aceitaram participar nos governos. Isto nunca os impediu de lutarem por
reformas sociais no quadro do capitalismo, mas limitou fortemente o seu grau de
envolvimento na governação.
JMT ou ignora todas estas
clivagens dentro e fora das doutrinas socialistas ou considera-as irrelevantes.
No entanto, sempre que existiram de facto elas conduziram a uma diferenciação
significativa nos programas e na prática dos partidos europeus.
Isto leva-me ao último equívoco
de JMT. Ao contrário do que sugere, não é a convergência dos partidos em torno
de um programa social-democrata que afasta os eleitores da política e cria
condições para o surgimento de movimentos que querem romper com a democracia
dita liberal. O que a história recente nos mostra é o contrário: foi nos países
em que os partidos socialistas e social-democratas mais se afastaram da sua
tradição doutrinária (e onde os partidos da esquerda anti-capitalista são menos
expressivos) que a confiança na democracia mais se degradou e onde a crise
política é maior. A preservação da diversidade ideológica no sistema político
português - tendo por base comum o respeito pela democracia representativa e a
defesa da justiça social - é provavelmente o principal factor de estabilidade
democrática em Portugal.
*Economista e Professor do ISCTE-IUL
[O autor escreve de acordo com a
antiga ortografia.]
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