Para sinólogo, governo de Xi
Jinping desencanta mídia e produção acadêmica hegemônicas, por não se render ao
capitalismo financeirizado. Por isso, crescem as críticas à Nova Rota da Seda e
a disputa por Hong Kong
Gao Mobo, entrevistado no Sin
Permiso, traduzido por Victor Farinelli, na Carta Maior e em Outras Palavras
Originário de Jiangxi, e hoje
professor de estudos chineses na Austrália, na Universidade de Adelaide, Gao
Mobo é uma das muitas figuras da chamada “Nova Esquerda”, termo ambíguo que
designa uma linha de pensamento, internamente muito diversa, através de um foco
multidisciplinar, que relê a recente história chinesa em seu contexto, indo
além das categorias estabelecidas pelos ocidentais. Em consequência, alguns
autores desta corrente têm se dedicado concretamente ao tema da Revolução
Cultural e seu impulso transformador inicial. Além de sua projeção acadêmica,
esta “Nova Esquerda” chinesa também tem suas referências políticos, e uma delas
é, justamente, a obra de Gao Mobo.
Enquanto Wang Hui (também
acadêmico e professor no Departamento de Língua e Literatura Chinesa da
Universidade Tsinghua, em Pequim) e outros se concentram no conceito de
modernidade, que alimenta o pensamento daqueles que acreditam que a China só
passou a ser “moderna” a partir da chegada do capitalismo e da reforma de Deng
Xiaping, Gao Mobo se enfoca em uma leitura da história chinesa que pretende
revelar em termos explícitos o curto-circuito intelectual que se produz no
campo dos “estudos asiáticos” de origem norte-americana, estabelecido
principalmente na época da Guerra Fria – claro que isso pode afetar o relato
histórico também de outros países, assim como o do sistema midiático em seu
conjunto.
No recente livro Constructing
China, Clashing Views of the People’s Republic (“Construindo a China:
Visões Conflitantes da República Popular”, em tradução livre do título em
inglês), Mobo oferece um excelente resumo do método que se baseia em devolver à
China o conhecimento que a historiografia ocidental lhe havia negado. Ao mesmo
tempo, ele nos presenteia com extraordinárias intuições interpretativas da
China contemporânea.
Pergunta: Comecemos por Hong
Kong e o que está acontecendo agora. Sua opinião é que tanto Hong Kong como
Taiwan estão ligadas ao sentido de identidade e de nação da China. Então, o
caso dos protestos em Hong Kong nos leva a perguntar, mais uma vez: o que é a
China?
Gao Mobo: Sim, creio que
Deng Xiaoping tinha a esperança de que, cinquenta anos depois da devolução, já
não haveria “dois sistemas”, porque a China se transformaria em algo similar a
Hong Kong, se não idêntico, em muitos aspectos. Entretanto, com a chegada de Xi
Jinping à presidência, as coisas mudaram de forma significativa. Sua campanha
contra a corrupção ameaçava os capitalistas de ambos os lados. Não obstante,
colaborar efetivamente com os capitalistas de Hong Kong significa não ajudar as
classes inferiores, o que produzirá, como resultado, que muitos cidadãos da
antiga colônia britânica se sentirão abandonados. É preciso ver o que Jinping
tentará fazer a respeito.
Pergunta: Em seu livro Constructing
China, você destaca o caríssimo papel desempenhado pelos meios de comunicação,
e os muitos estudos ocidentais, na propagação de um relato de demonização da
Revolução Cultural. Entretanto, 70 anos depois do início daquele processo, até
o veredito do Partido Comunista se mostra um tanto negativo. Até mesmo o atual
presidente chinês, Xi Jinping, publicou recentemente um discurso no qual
reiterou este veredito por parte do partido. Isso acontece por que, como você
explica no livro, “o que Xiaoping fez após a morte de Mao demostra até que
ponto era certo o temor de Mao: a via chinesa ao capitalismo começaria com o
desmantelamento dos bens comunais”?
Mobo: Sim, e muito mais que
isso. Para começar, a Revolução Cultural foi destrutiva em muitos aspectos.
Produziu muitas vítimas entre funcionários e intelectuais, e é muito difícil
para eles e para suas famílias adotar atitudes menos pessoais e melhor
informadas historicamente a respeito da Revolução Cultural, e isso é
compreensível. Mas o fato é que o capitalismo é um sistema global capaz de
tragar todo o mundo, incluindo os membros do Partido Comunista Chinês e seus
principais líderes. Se lemos as opiniões de Zhao Ziyang (secretário do PC em
1989, destituído por suas posturas reformistas e pelo diálogo com os
estudantes), expressadas durante sua prisão domiciliar, podemos perceber isso
plenamente. Esta é a razão pela qual o argumento de que o socialismo não teme
possibilidades de ter sucesso em nenhum país acaba soando razoável. Com
respeito a Xi Jinping, seu discurso é mais complexo que isso, porque ainda
tenho a sensação de que a verdadeira lógica do Partido Comunista busca, como
meta principal, a melhora na vida do seu povo, razão pela qual podemos supor
que o projeto que está sendo impulsado ainda é o oferecer ao mundo como alternativa
ao capitalismo. Para sermos justos com Jinping, ele também declarou que não
deveríamos utilizar as três últimas décadas da República Popular para denegrir
seus primeiros 30 anos.
Pergunta: Hoje em dia,
seguindo a argumentação do seu último livro, parece que a China também é capaz
de determinar o que está bem e o que está mal no mundo, ao menos com respeito
ao seu passado. Porém, que imagem da China o Partido Comunista está disposto a
revelar ao mundo?
Mobo: Não há consenso nesta
questão. Nestes tempos, a maioria dos dirigentes (do PC) carecem de ideias e de
ideais. Estão onde estão somente para fazer carreira. Wang Qishan, Xi Jinping e
Li Keqiang tiveram algumas ideias sobre como responder a esta questão. A
articulação mais explícita é a de Jinping, de perseguir o destino comum da
humanidade, encontrando um terreno comum e deixando de lado as diferenças a
favor da coexistência e o desenvolvimento pacífico, origem da ideia da Nova
Rota da Seda. Se supõe que isso deve se manter, permitindo as diferenças
pertinentes, tanto no plano internacional como no plano político interno.
Pergunta: No caso da China,
qual é a diferença entre o que você chama de “conhecimento” e “atitude”?
Mobo: Na atualidade, a
produção de conhecimento da humanidade é dominada pelo Ocidente e pelo
capitalismo. Boa parte da elite intelectual chinesa termina sendo ofuscada por
esse sistema de produção. A atitude para com a China é particularmente dura,
porque nem a esquerda nem a direita ocidentais acham a China realmente
confiável. A esquerda acredita que a China é capitalista demais, e a direita
acha que é comunista demais. Logo, existem atitudes racistas para com a China.
O conhecimento reforça as atitudes, e as atitudes levam a certo tipo de
produção do conhecimento. Se alimentam um ao outro.
Pergunta: Durante a década
de governo de Hu Jintao, havia a impressão de que a China podia mudar, quero
dizer, não em um sentido democrático, mas sim no sentido de dar maior atenção à
redistribuição e às distorções geradas pelo seu modelo de desenvolvimento.
Logo, esse processo foi interrompido. Por que?
Mobo: Se introduziu uma
mudança muito positiva com a abolição de todos os tipos de taxas agrícolas. Foi
a primeira vez que se fez algo assim em toda a história chinesa, de mais de
2000 anos. Provavelmente, o que Jintao queria era fazer mais nesse sentido, mas
era frágil demais para isso. Não sabemos muito sobre as metas políticas que
ficaram ocultas atrás dos muros vermelhos do Zhongnanhai (quartel-general do
Partido Comunista), mas creio que a razão principal que norteou essas
iniciativas pode ser encontrada nos interesses criados, que eram o reflexo de
muitos setores, especialmente os interesses de autoproteção, o significa que os
objetivos políticos podiam sair de dentro do Zhongnanhai nessa época. Suspeito
que esta era a razão pela que Jinping queria criar muitos grupos políticos
pequenos sob sua liderança. Creio que esta é sua solução para esquivar os
diversos obstáculos ministeriais que afetam a celeridade na realização das
medidas políticas. O que eu chamo “interesses criados” é o mundo das empresas
de propriedade estatal, dos “principezinhos” (uma facção do Partido Comunista
formada por filhos e parentes de funcionários) e da “elite compradora”.
Pergunta: Como você vê o uso
que Xi Jinping faz da imagem de Mao Tsé-Tung?
Mobo: Ele tem a convicção de
que o Partido Comunista poderia e deveria servir melhor à China e ao povo
chinês. Sua insistência no conceito de “chuxin” (algo como “a inspiração
original”) não é mera retórica, mas sim uma tentativa real de restaurar o
espírito e a legitimidade do partido.
Pergunta: Foi reativado na
China o debate sobre o conceito de “tianxia” (conceito político-filosófico com
inspiração no confucionismo, que segundo alguns analistas, é o principal
inspirador do projeto internacionalista chinês). Em parte, devido à Nova Rota
da Seda. Que opinião você tem a respeito? Como isso pode ajudar a China a
propor um sistema de governança global?
Mobo: Posso entender a intenção
do debate, mas não creio que seja um concepto útil neste mundo. Creio que o
“destino comum através do desenvolvimento pacífico” é um conceito mais
aceitável fora da China. “Tianxia” pode significar um centro de poder e uma
hierarquia. Não se trata de um conceito aceitável no mundo moderno.
Pergunta: O livro The
Chinese Model (“O Modelo Chinês), de Daniel A. Bell, acaba de ser
publicado na Itália. Em primeiro lugar, qual é a sua opinião sobre a visão que
ele traz? Não acha que o conflito entre democracia e meritocracia é limitador
porque se inserta dentro de uma lógica capitalista, sem imaginar outras
possibilidades? Para ir além desse paradigma, o modelo chinês seria capaz de se
diferenciar da evolução do capitalismo ocidental?
Mobo: Bell tem o mérito de
mostrar que as escolhas não deveriam constituir o único critério de
legitimidade com o qual se deve avaliar um governo. Até agora, a voz de Bell é
a única disposta a combater o discurso político dominante no Ocidente, e é
importante que seja levada a sério. Se trata de uma conquista enorme. Mas
também tem suas limitações, se analisamos detalhadamente. Logo, a respeito de
se há ou não um modelo chinês que possa proporcionar uma alternativa, não se
trata de um argumento que tenha levado a una resposta definitiva até agora, e
talvez jamais exista uma resposta. Dependerá de dois fatores principais: se a
China conseguirá resolver suas contradições e perplexidades, e o grau em que o
Ocidente está disposto a estrangular a China antes dela ter o sucesso que se espera.
Pergunta: Há algum tempo, a
China tem impulsado um extraordinário empreendimento tecnológico, que é o do
“big data”, que inclui inteligência artificial e um sistema de crédito social.
Parece que a China avança pelo mesmo caminho dos países ocidentais, na direção
de um “Estado de vigilância”, em um mundo caracterizado pelo “capitalismo de
vigilância”. O que você acha disso? Que lições da história chinesa podem ser
resgatadas neste debate sobre as hipóteses de controle social?
Mobo: Sim, isso é preocupante
para as pessoas como nós, que somos individualistas e autônomos. Mas pode não
ser tão ameaçador (mas acho que ainda não é) para muitos na China. Na opinião
dos chineses, de uma forma geral, se eles obedecem as regras e as leis, não
deveriam ter problemas, não a vigilância a qual são submetidas. Para alguns,
isso pode ser até positivo em termos de segurança pessoal. Esta é a atitude que
muitos adotam na China, sobre o experimento do chamado crédito social. É
difícil imaginar, na atualidade, como se pode colocar em prática na China um
conjunto de regulamentos que seja realmente efetivo, mesmo aquelas que
demonstram ter as melhores intenções. Na China tradicional, invadir a liberdade
e privacidade pessoal, em geral, não supõe um problema social, pois a tradição
acentuava a obrigação social, a responsabilidade nas relações mútuas. Contudo,
a, China mudou bastante, e as pessoas já não se preocupam com o espaço pessoal.
Logo, creio que isso pode ser um problema no futuro.
Publicado em Outras Palavras
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário