Salvar o planeta de quê? Das
alterações climáticas, de que mais haveria de ser? Haverá mais coisas assim tão
ameaçadoras com que tenhamos de nos preocupar?
José Goulão* | opinião
Salvar o planeta! Ora aí está uma
causa nobre, por certo não fracturante, à medida do mainstream,
padronizada segundo as normas da opinião única, enfim polémica quanto baste
porque os seus opositores são encabeçados por figuras que estão de passagem,
como Donald Trump, por certo uma excepção na tão recomendável classe bipartidária
e monolítica dos Estados Unidos da América. Atentemos nos casos de Obama, de
Hillary Clinton, consabidamente tão amigos do planeta e do ambiente.
Salvar o planeta de quê? Das
alterações climáticas, de que mais haveria de ser? Haverá mais coisas assim tão
ameaçadoras com que tenhamos de nos preocupar?
Na verdade, parece não haver
coisa mais necessário na sociedade global em que vivemos do que mobilizar-nos
no urgentíssimo e justíssimo combate contra a degradação do ambiente e as
mudanças climáticas dela decorrentes.
Mobilizemo-nos, pois. Sigamos as
marchas juvenis e coloridas inspiradas algures nos meandros onde se move essa
tão carismática como recatada figura de George Soros, conhecido como
«filantropo», um verdadeiro papa do globalismo, do neoliberalismo, reconhecido
patrono ou mesmo proprietário da democracia autêntica.
Sigamos Greta Thurnberg
lamentando os seus «sonhos perdidos», juntemo-nos ao Eng.º Guterres, a quem as
aflições do clima proporcionaram uma energia interventiva até agora
desconhecida, sobretudo desde que se tornou secretário-geral da ONU;
acompanhemos Obama, Mark Zuckerberg, Al Gore, Richard Branson e outros patronos
do movimento de Greta Thurnberg; desfilemos de braço dado com o benemérito Bill
Gates, agora dedicado à causa dos negócios da geoengenharia a bem do ambiente,
com as comissárias e os comissários europeus, os generais da NATO, os
poluidores e as suas vítimas, todos irmanados nesta imensa vaga regeneradora
que a muitos parece cativar e verdadeiramente não tem inimigos pois todos
habitamos nesta Terra e 2030, «o ponto de não retorno», é já amanhã.
Além disso, «não há planeta B»,
como muito bem recordou o prof. Marcelo mesmo que, desta feita, a autoria
do sound bite não lhe pertença.
O sistema autorregenera-se
O sistema autorregenera-se
A crer nesta espécie de
«revolução colorida» – o que não é de espantar, pois várias outras têm a chancela
inconfundível do «filantropo» Soros – o seu êxito não suscita grandes
dúvidas, porque estão mais do que identificadas as causas da revolta do clima.
O segredo não estará, ao que parece, em atacá-las mas sim em «adaptar-nos» a elas e acreditar que os grandes poluidores industriais se converterão beatificamente à causa; os gigantes do agronegócio transnacional deixarão benevolamente de destruir os solos, esbanjar água e expandir a seca; os monstros da indústria mineira global, comovidos pela grande movimentação, deixarão de contaminar os solos para os expurgar de riquezas; os negociantes de madeiras não mandarão acender nem mais um fósforo nas florestas; os magnatas do petróleo abandonarão o fracking e deixarão os mares e os solos em paz, genuinamente convertidos às energias renováveis; os impérios do armamento chegarão à conclusão de que as actividades amigas do ambiente são muito mais interessantes que as guerras, quiçá até do ponto de vista económico; os generais e outros senhores do militarismo deliberarão espontaneamente que o dinheiro investido em armas, sobretudo as nucleares, deve ser transferido para o combate à fome no mundo.
Os grandes interesses económicos
do planeta, desde o grande especulador financeiro ao incansável barão da droga,
curvar-se-ão, enfim, perante os activismos desinteressados que decidiram salvar
a harmonia climática poupando, ao mesmo tempo, o sistema que a destrói. O
capitalismo ecológico, o neoliberalismo climático estavam, afinal, a umas
mobilizações bem comportadas e a uns discursos lamurientos de distância. E sem
que a ordem que nos governa seja minimamente beliscada. Como não nos havíamos
lembrado disto antes? Mas talvez ainda estejamos a tempo, mais vale tarde do
que nunca, os destrambelhamentos climáticos serão domesticados. Com uma
condição: que os aceitemos e nos adaptemos, como recomenda, sábio, Bill Gates.
A «adaptação» será, afinal, a alma do negócio.
Nada de distracções
Mas atenção: foco total, nada de
distracções, dedicação absoluta à «adaptação» do planeta às alterações
climáticas e sempre no quadro da ordem estabelecida. Caso contrário, a ameaça
persistirá.
Não há que esbanjar esforços em causas fracturantes e que, como se percebe pelo consenso quase global suscitado pelo caos climático, acabam por ser marginais.
Em poucas ou nenhuma ocasião como esta vamos encontrar do mesmo lado da barricada as paupérrimas vítimas das inundações do Bangladesh e o presidente do Goldman Sachs, o banco que, segundo o próprio, desempenha o papel de Deus na Terra; ou o indígena da Amazónia e o presidente cessante do Banco Central Europeu, Mario Draghi; ou os sudaneses vítimas da seca e os todo-poderosos dirigentes do Carlyle Group.
O mesmo não acontece com outras
situações que suscitam mobilizações, mas nunca com esta amplitude e consenso. É
o caso das guerras que se multiplicam pelo mundo, ou das crescentes
desigualdades e do fosso que se alarga entre a maioria de pobres e a minoria de
ricos, da acumulação de armas, sobretudo as nucleares, da globalização do
trabalho escravo, dos milhões de desalojados e refugiados.
São, de facto, problemas em torno dos quais não encontramos mobilizações tão massivas, uma tal convergência de opiniões, uma cobertura tão abrangente dos meios de comunicação globais.
Fizeram-se – e fazem-se –
manifestações contra as guerras, acções contra as injustiças e as
desigualdades, iniciativas contra a pobreza, a fome ou os refugiados. Mas nela
não encontraremos as figuras que lhe dão peso, prestígio e fama como Obama, o
Eng.º Guterres, o presidente do Goldman Sachs, o diligente Bill Gates ou a
presidente da Comissão Europeia. E se, por uma hipótese absurda, algum jovem ou
alguma jovem assumir um papel semelhante ao de Greta Thurnberg, mas em defesa
da eliminação total das armas nucleares, certamente não lhe será facultado o
púlpito dos oradores nas Nações Unidas e não será transformado em ícone pela
comunicação mainstream. Pelo contrário, não tardaria a ter à perna a
comunidade global de espionagem e certamente seria tratado como reles agente
russo ou chinês.
No entanto, a proliferação de
guerras e de armas cada vez mais modernas e com efeitos letais massivos pode
provocar amanhã, depois de amanhã, de uma penada, os efeitos que as alterações
climáticas produzem gradualmente e que têm ponto de não retorno agendado para
2030, segundo as previsões mais repetidas. Porém, ao que parece por aquilo a
que temos vindo a assistir, a crise do clima é certa enquanto a destruição do
planeta por um conflito global pode acontecer ou não, saibamos correr riscos…
Portanto, nada de alarmismos e, sobretudo, de dispersões em relação à causa
definitiva, a da «adaptação» às derrapagens do ambiente.
E se ligássemos tudo?
Atendendo à gravidade dos
cenários que ameaçam o planeta, o mais natural seria transformá-los numa causa
única e poderosa capaz de reduzir os riscos. Defender a Terra e os sistemas de
vida que nela existem seria uma acção muito mais eficaz e abrangente se interligássemos
as lutas contra as alterações climáticas, a guerra, a pobreza, as
desigualdades, as agressões aos direitos humanos, a escravatura e outras.
Esta seria a ordem natural das
coisas.
Mas não a ordem natural do
sistema em que vivemos.
Ao associar as causas amigas do
planeta seríamos conduzidos, inevitavelmente, à evidência que a defesa da Terra
é, em si mesma, uma causa fracturante. Não conseguiremos encontrar na luta
contra a guerra as mesmas vedetas globais e a mesma projecção da suposta luta
contra as alterações climáticas. Em boa verdade, essas figuras dizem estar do
lado do ambiente enquanto promovem as guerras e o negócio de armas, ao mesmo
tempo que geram milhões de desalojados e refugiados.
Negócio é, de facto, a palavra-chave, o conceito que transpõe de forma traiçoeira, enganosa e oportunista a movimentação contra as alterações climáticas para o lado da guerra, das desigualdades, da pobreza, da exploração – tudo fruto do mesmo sistema.
Os expoentes do capitalismo na
sua versão fundamentalista neoliberal estão em pleno desenvolvimento de uma
operação de apropriação das questões ambientais tentando impor uma milagrosa
quadratura do círculo.
Ou seja, o capitalismo que
envenena o planeta, que o põe diariamente em risco, surge como salvador do
planeta privatizando uma justíssima causa para que lhe seja possível, com
grande ajuda do sistema mediático, arrastar massas que sofrem de genuínas
inquietações à mistura com ingenuidade e vulnerabilidades.
Mas não só.
O principal é que o capitalismo
neoliberal transformou a luta contra as alterações climáticas num negócio. O
método é insidioso: dá como adquiridas as transformações já ocorridas ou em
curso e põe a tónica na «adaptação» do planeta a essas circunstâncias. O
negócio do clima junta-se assim ao negócio da guerra, ao negócio da droga, ao
negócio do trabalho escravo, ao negócio da exploração dos recursos naturais.
Desenvolver pretensas soluções
científicas capazes de responder ao aquecimento global, à subida dos mares, aos
degelos, às carências de água e outros fenómenos está a transformar-se na
antecâmara de novos grandes negócios. Aos lucros da contaminação do planeta
somam-se os proveitos gerados pela «adaptação» aos efeitos da
contaminação.
O sistema que ganha destruindo o
planeta é o mesmo que continua a ganhar pretensamente «adaptando-o» às
mudanças – não atacando as causas e manipulando multidões. Por isso,
de acordo com a sua estratégia, a nobre causa da luta contra as alterações
climáticas, que mobiliza dezenas de milhões de pessoas genuinamente alarmadas,
tem de ser isolada de outras que, na realidade, lhe são afins e complementares,
como a da luta pela paz. É a manobra a que estamos a assistir.
O capitalismo neoliberal
conseguiu encontrar um caminho para transformar as questões ambientais e
climáticas em lucros. Quanto à «paz», a única maneira de a fazer gerar
proveitos é espalhando a ilusão de que pode ser estabelecida através da
multiplicação de guerras. Nasceu assim o neoliberalismo ambiental, humanista,
pacifista.
É necessário desmontar esta
mistificação e impedir que as causas ambientais sejam capturadas pelos
terroristas do ambiente para que tudo continue na mesma, isto é,
deteriorando-se. A luta contra as alterações climáticas é indissociável dos
combates contra a guerra, a pobreza, a austeridade, as desigualdades, os
problemas dos refugiados, a censura, a exploração, a extinção dos direitos
sociais, a violação dos direitos humanos. Converge tudo na mobilização contra o
sistema que está na base de todas as aberrações que afectam o ser humano e o planeta.
* José Goulão | AbrilAbril |
opinião
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