Anselmo Crespo* | opinião
Sim, eu sei que escrever sobre o
Chega e o seu líder tem sempre o risco de lhe dar ainda mais protagonismo. Sim,
eu sei que, neste momento, decorrem negociações para a formação de um novo
governo e que o centro-direita atravessa uma crise sem precedentes. Sim, eu sei
que, politicamente, o país tem problemas gravíssimos que mereciam ser
denunciados nestas linhas de texto. Mas não posso - não consigo - deixar de
alertar para os riscos que a nossa democracia enfrenta com a eleição de André
Ventura para a Assembleia da República. E, ao contrário do que muitos pensam,
não é ignorando e muito menos normalizando os "venturas" que se faz
este combate.
Confesso que fui daqueles que,
até os dados serem oficiais, não acreditaram que fosse possível. Não
porque seja ingénuo ao ponto de achar que os extremistas, os populistas e os
oportunistas não conseguem penetrar e ascender nas democracias mais
desenvolvidas - o mundo está cheio de exemplos desses -, mas porque achei
sempre que o que se está a passar no Estados Unidos, no Brasil ou no Reino
Unido, só para citar alguns casos, era suficientemente elucidativo para o
eleitorado português.
Não foi. Por ignorância ou
porque, afinal, há mais "venturas" no país do que eu imaginava, a
verdade é que estas eleições mostram bem como uma parte do eleitorado da
abstenção e dos votos nulos encontrou um "salvador" em quem se revê.
Não tendo eu - e, felizmente, a esmagadora maioria dos eleitores - contribuído
para a eleição do deputado do Chega, é bom que quem o fez tenha consciência
daquilo em que nos meteu a todos. E do que ainda pode vir aí.
Chamar extremista e populista a
André Ventura é quase um elogio que se lhe faz. Na verdade, o deputado do Chega
é apenas um oportunista político que se ama a si próprio acima de todas as
coisas e que não tem outro propósito que não seja a autopromoção. Um extremista
- de esquerda ou de direita - tem um programa e uma ideologia política, com a
qual podemos concordar ou discordar, mas tem. A agenda de André Ventura é a
capa do tabloide em cima da mesa de café e a conversa que ela provoca durante
horas entre um copo de três. É apanhar meia dúzia de conversas de pé de orelha
e reproduzi-las com ênfase, para parecer convicto e determinado no que se está
a dizer, mas sem qualquer substância.
Em André Ventura, a tática é
falar primeiro e nunca pensar depois. Não há um pingo de política, o mínimo de
visão estratégica. Ali mora um cata-vento que vai girando para noroeste e para
sudoeste, num movimento rotatório constante que lhe permite dizer tudo e o seu
contrário, mas deixando sempre um soundbyte no ouvido de quem o
estiver a ouvir.
Em André Ventura há, pelo menos,
uma incoerência insanável - que o Ricardo Araújo Pereira retratou de forma
brilhante esta semana: a do político que se diz antissistema e que, ainda há
dois anos, não só fazia parte dele como o elogiava.
Em André Ventura não há uma ideia
sobre economia, saúde, educação, justiça ou mesmo sobre segurança interna, de
que gosta tanto de falar. Há, isso sim, um aproveitamento vergonhoso do
sofrimento dos outros, que é depois capitalizado eleitoralmente em proveito
próprio, sem que quem vota nele se aperceba de que está a ser usado.
É por tudo isto - e por mais
algumas coisas - que a eleição de André Ventura para deputado é uma ameaça à
democracia. Porque, mesmo sozinho no Parlamento, pode fazer muitos
estragos. Não pelas propostas que possa apresentar, que dificilmente - espero -
terão acolhimento dos restantes partidos. Mas porque o novo deputado do Chega
vai querer transformar o plenário da Assembleia da República num estúdio de
televisão e fazer aquilo que sabe fazer melhor: montar um circo onde ele possa
ser o protagonista principal.
André Ventura simboliza um enorme
retrocesso para a nossa democracia. E desenganem-se os que acham que esta
eleição é um epifenómeno que não vai crescer. Quem votou nele deu-lhe o palco
de que ele precisava para poder crescer e "acordar" outros espíritos
que andam para aí ocultos, escondidos cobardemente nas redes sociais. Só temos
de estar "agradecidos": a Pedro Passos Coelho, por lhe ter dado o seu
primeiro grande palco político; aos chamados partidos do sistema, que nas últimas
décadas falharam com as pessoas e escancararam as portas da casa da democracia
aos "venturas" desta vida; e a quem o elegeu, por nos proporcionar a
todos este odor insuportável a mofo. Espero que durmam todos de consciência
tranquila.
*Diário de Notícias, em 10 Outubro 2019
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