Segundo Hassan Akran, professor
de políticas públicas na universidade chilena Diego Portales, doutor em
ciências políticas e especialista por Cambridge, protestos evidenciam que o
sucesso chileno é uma 'farsa neoliberal'
Lu Sudré*
As manifestações massivas contra
o aumento da tarifa no transporte público chileno, iniciadas em 18 de outubro,
foram o estopim para uma revolta popular contra a política neoliberal vigente
no país desde a ditadura comandada por Augusto Pinochet (1973-1990). De lá pra
cá, as reivindicações por trás das “evasiones masivas” – ato de pular as
catracas coletivamente para não pagar a passagem – ganharam força a ponto de
deixar acuado o governo de Sebastián Piñera.
Dias após o início dos protestos
que levaram milhões de pessoas às ruas, as manifestações contra a alta
concentração de renda e contra os serviços privados na área da saúde, educação
e previdência social continuam a chamar atenção do mundo todo.
Em entrevista ao Brasil de
Fato, Hassan Akram, professor de políticas públicas na universidade chilena
Diego Portales, doutor em ciências políticas e especialista em desenvolvimento
econômico pela Universidade de Cambridge, analisa o impacto dos protestos no
país.
“Esse estopim social é algo
histórico”, diz Akram. “É o começo do fim de um sistema tão neoliberal no
Chile. Isso não irá acontecer imediatamente. Agora temos um governo de direita
que vai tentar apaziguar o conflito oferecendo migalhas, mudanças superficiais. Mas há sementes. As ideias do povo estão crescendo. No futuro, nos próximos dez
anos, essas ideias só ficarão mais e mais fortes. Se abre uma possibilidade”.
O Chile é frequentemente citado
por neoliberais como um grande exemplo de desenvolvimento econômico na América
Latina, incluindo Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. No entanto, na opinião do
pesquisador, os protestos populares mostram que “o sucesso chileno é uma
espécie de mito”.
Desde a madrugada do dia 19 de
outubro, Sebastián Piñera decretou estado de emergência em todo país. Somente
na última segunda-feira (28/10), após confrontos violentos entre policiais e
manifestantes, saques e incêndios no metrô, Piñera suspendeu o decreto.
Vinte pessoas foram mortas
durante protestos fortemente reprimidos pelo exército e pelos carabineiros
(instituição de polícia ostensiva militar do Chile). Mais de 2.400 pessoas
foram detidas.
Em resposta, mais de cinco mil
personalidades, entre elas intelectuais como Silvia Federici, Toni Negri e
Judith Butler, assim como 327 organizações sociais e políticas, publicaram uma
moção em repúdio à violência estatal e violação de direitos humanos no
Chile.
Segundo Hassan Akran, os
protestos mostram que há uma clareza entre os manifestantes de que é urgente
mudar a Constituição Pinochetista que ainda vigora no país e uma ruptura
imediata com o modelo de economia neoliberal.
"É muito simbólico que esse
país, que supostamente é exemplo de sucesso no continente em termos de
neoliberalismo, mostre que esse sistema, inclusive aqui, é um fracasso
total", argumenta.
Confira entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: Sabemos que os
protestos no Chile começaram devido ao aumento da tarifa do transporte público.
Mas, há questões maiores do que essa? Os chilenos protestam contra o que?
Hassan Akram: O transporte
público é um tema estrutural no Chile. Em comparação com o continente latino
americano, é muito mais caro. O custo do metrô é 70% a mais que a média da
região, considerando todos os metrôs da América Latina. É o segundo mais caro de
todos… O único mais caro é o de Brasília. Mas o de Santiago é mais caro que
Porto Alegre, de Rio de Janeiro, de São Paulo, de Salvador.
Além disso, a população chilena
ganha pouco. É um país muito rico mas muito desigual. Se calcula que o
transporte é o segundo gasto mais importante das pessoas, 15% de toda a renda
mensal aproximadamente são gastos com transporte em Santiago.
Para os mais pobres, esse número
sobe para 28%. Mas não poderia dizer que o tema do transporte público é um
reflexo do problema dos baixos salários. As pessoas não podem pagar o metrô
porque ganham muito pouco em comparação com os custos de vida em Santiago e
isso tem a ver com a desigualdade. É um país muito rico mas com renda muito mal
distribuída.
Segundo um estudo de Branko Milanovic,
um economista muito famoso da Croácia que trabalhou para o Banco Mundial e
especialista em desigualdade, diz que a renda dos 5% mais pobres do Chile, é
igual a renda dos 5% mais pobres da Mongólia. Mas, os 2% mais ricos no Chile
têm a mesma renda que os 2% mais ricos que Alemanha.
Isso é desigualdade. Existem dois
mundos no Chile completamente diferentes entre pessoas que vivem na Alemanha e
pessoas que vivem na Mongólia. Isso explica porque o aumento do preço do metrô
gera tanta raiva entre pessoas comuns. Porque as coisas são caras e as pessoas
ganham muito pouco, se não são parte da elite. Isso que geram os protestos.
O Chile sempre foi citado como um
país de sucesso econômico do neoliberalismo na América Latina. As manifestações
da última semana, no entanto, mostram que há problemas no país. Qual a real
situação do Chile nos últimos anos e principalmente no governo Piñera?
O sucesso chileno é uma espécie
de mito. Nunca foi bem sucedido. Em algum momento, há muitos anos, nos anos
1990, se falava do Chile como um modelo de sucesso porque crescia
economicamente muito rapidamente. Mas, desde então, houve uma desaceleração no
crescimento da economia. Os salários das pessoas tiveram um crescimento real
muito lento nos últimos dez anos. Há pelo menos quinze anos que a produtividade
é estagnada e os salários não crescem.
O sucesso do Chile é de
comunicação, de relações públicas, propaganda. O Chile nunca foi uma economia
bem sucedida. As economias realmente exitosas, que cresciam rapidamente, logo
conseguiram baixar o nível de pobreza são os países da Ásia. Como Coreia do
Sul, Taiwan, Singapura, mas nunca o Chile. Ele cresce relativamente lento, mas
mais rápido que a média da região, mas não muito melhor do que isso.
O Chile sempre depende do alto
preço do cobre. É um país onde 60% de suas exportações são de cobre ou de
recursos naturais levemente processados. É uma economia que depende de recursos
naturais que cresce mas não tão rapidamente como dizem, e isso implica poucas
possibilidade de aumento de salário.
Não é um problema só do Piñera. É
um problema histórico que está explodindo agora. O neoliberalismo chileno
começa durante a ditadura, em 1973. Desde o retorno da democracia, em 1980, se
seguiu o mesmo modelo. Havia alguns anos em que os salários estavam aumentando
e o Chile estava voltando ao estado anterior a ditadura, mas, rapidamente isso
desapareceu e seguimos na mesma. Nunca foi um país bem sucedido economicamente,
e sim um país dominado pelo poder dos empresários onde as pessoas estão
cansadas sem expressar sua raiva por não ter nenhuma outra opção.
Em termos eleitorais, as pessoas
simplesmente deixaram de ir as eleições porque não viam nenhuma possibilidade
de mudança. É um país cansado que aceitava isso porque não tinha outra opção.
Em algum momento, foi tanto o abuso que explodiu. Não é apenas no governo de
Piñera, é um problema histórico e estrutural de décadas.
De fato, as pessoas que desenhou
o sistema de aumento do preço do metrô é um economista que se chama Claudio
Agostini. Um economista da democracia cristã, que esteve atrás do desenho econômico
e tributário de Michelle Bachelet. Então não é só do governo de Piñera. É de
toda a classe política. Da centro direita e da centro esquerda… esses dois
grupos, o duopólio chileno, estão sendo rechaçados transversalmente.
Aqui no Brasil, o próprio presidente,
Jair Bolsonaro, e Paulo Guedes, ministro da Economia, afirmam que o Chile é um
ótimo exemplo em termos econômicos…
Esse discurso se vende para fora.
Para Colômbia, pro Brasil, para países que falam sobre como o modelo chileno é
bom. Mas a realidade é que não é assim para os chilenos que vivem no Chile. De
fato, aqui chegam muitos imigrantes estrangeiros da América Latino, inclusive
tivemos uma onda recente de venezuelanos. E quando os venezuelanos se dão conta
de que Santiago é tão caro, de que as pessoas ganham tão pouco, e de que o
serviços sociais como saúde e educação são pagos, rapidamente se dão conta de
que o sucesso chileno não é real.
Então, se usa essa narrativa
estrategicamente em defesa do neoliberalismo?
Sim, definitivamente. Nem tanto Bolsonaro,
porque ele não sabe muito de economia. Como militar é mais estatista, a favor
do gasto público com a polícia e com militares. Mas o ministro de Economia do
Brasil, Paulo Guedes, estudou na Universidade de Chicago e tem essa visão
extremista e ideológica de como são as coisas. Então claro que ele apoia o
modelo chileno. Na verdade, o modelo chileno é muito bom se você é parte dos 2%
mais ricos. Se faz parte da elite empresarial, se é um “homem de negócios”…
Chile é o país ideal porque aqui os empresários pagam poucos impostos,
enfrentam poucas regulações, não têm que pagar a aposentadoria de seus
trabalhadores. É o paraíso para os empresários. Enquanto os empresários vivem
bem, resultado de ter o Estado ao seu lado, as pessoas vivem mal.
O senhor citou a questão da
mercantilização da saúde e da educação, bandeiras que têm sido levantadas nos
protestos. Podemos dizer que essas medidas neoliberais aprofundaram a revolta
da população?
Os temas concretos são três:
Saúde, aposentadorias e educação. É o que mais tem sido mencionado. Todos
relacionados a baixos salários e a necessidade de pagar por esses serviços. De
fato, a questão mais forte é a aposentadoria. A maioria das pessoas que se
aposentam no Chile, recebem uma pensão abaixo da linha da pobreza. A forma de
calcular quanto se vai receber de aposentadoria, depende de quanto conseguiu
colaborar durante seu tempo trabalhando.
Esse sistema que chama
capitalização individual ou administradoras de fundo de pensão, um sistema
completamente privatizado, prejudica mais as mulheres. Uma mulher entra no
mercado de trabalho por um tempo e, se tem filhos, sai do mercado laboral. No
tempo que está com seus filhos não está colocando saldo no seu fundo de pensão.
As mulheres têm aposentadorias muito baixas.
É um sistema muito machista, que
paga aposentadorias de miséria. Há muita raiva porque as pessoas precisam pagar
7% de sua renda para uma conta dos fundos privados. As pessoas querem mudar
esse sistema. E o que propôs Piñera? Aumentar a cotização. Além dos 7%, quer 4%
a mais. Mas o que se acontecerá com esse 4% extra? Não irá aumentar a
aposentadoria de todos, vai aumentar a conta individual. Se é uma pessoa com
muito dinheiro, sua aposentadoria aumenta. Se é pobre, a aposentadoria não
aumenta. Ao invés de ir para um fundo comum, irá para uma conta individual e
fará com que a aposentadoria depende do quanto se ganha.
A mesma coisa acontece com a
saúde. Se paga para uma conta individual. Uma pessoa profissional com boa renda
pode colocar em uma conta individual. Ou seja os mais ricos, no Chile,
economizam para por sua saúde. Esse dinheiro vai somente para sua própria
saúde, não vai para um fundo comum, um fundo único, que ajudaria todas as
pessoas a melhorar sua saúde. São muitas pessoas para poucos médicos, enquanto
os 20% dos mais ricos estão com a maioria dos médicos em um sistema a parte, é
a segregação por renda.
Recentemente o Chile foi palco de
um ato com milhões de pessoas, o maior após o período ditatorial. Qual a
relevância dessa manifestação para a história do país? Qual a mensagem que o
povo chileno deixa registrado para todo o mundo?
Esse estopim social é algo
histórico, algo que não acontece há muito tempo no Chile. Fala-se sobre uma
mudança profunda porque muita gente entre as universidades e centros de
pesquisa que têm estudado a desigualdade. O 1% mais rico tem aproximadamente um
terço da renda nacional. Há um problema na desigualdade que no Chile é
excepcionalmente alta e que todos os estudos mostram constantemente. Mas quando
chega a hora de fazer leis para mudar essa situação, esse 1% que tem um terço
da renda, tem um poder de veto.
Há um problema com o
financiamento da política, em que os mais ricos, por meio de suas empresas,
compram políticos. Então os políticos votam contra reformas de redistribuição.
O que está acontecendo aqui é que se tem denunciado isso por anos e a classe
política, o duopólio da centro esquerda e da centro direita, simplesmente
fingiu surdez. Ignoraram esse diagnóstico acadêmico e social sobre a
desigualdade. Agora o povo se cansou e eles não podem seguir ignorando isso.
Eles têm que perceber que são necessárias profundas mudanças, aumentando os
impostos, tirando os serviços sociais do mercado. A saúde e a aposentadoria não
podem ser disponibilizadas de acordo com capacidade de pagamento, devem ser
universais.
Essa pressão está sendo o começo
do fim de um sistema ultra mercantilizado, de um sistema tão neoliberal como o
que se tem no Chile. É o começo do fim. Isso não irá acontecer imediatamente.
Agora temos um governo de direita que vai tentar apaziguar o conflito
oferecendo migalhas, mudanças superficiais. Mas há sementes. As ideias do povo
estão crescendo. No futuro, nos próximos dez anos, essas ideias só ficarão mais
e mais fortes. Se abre uma possibilidade.
Pela primeira vez, desde a
ditadura, o governo chileno colocou militares na rua para reprimir a população.
Apesar de ter suspendido o estado de emergência no Chile, como a decisão de
Piñera impactou a população?
Há que se dividir em termos de
classe social, eu acredito. As pessoas mais pobres, que vivem em lugares como
favelas, estão acostumadas com muita
violência policial. Por conta da criminalização, pela pobreza, os carabineiros
[instituição de polícia ostensiva militar do Chile] entram e tentam achar
culpados fazendo a destruição e atacando comunidades.
No Sul, a comunidade indígena dos
Mapuches vive com a ocupação militar de terras indígenas. Isso, de certa
maneira, é o mais do mesmo para as pessoas dessas populações. Porém, com essa
crise, o tema dos direitos humanos e da violência dos carabineiros está sendo
colocado em primeiro tempo. Está recebendo muito mais atenção. A violência, os
ataques, as humilhações e agora dos militares, pela primeira vez em muitos
anos, as pessoas dizem: "Isso não é aceitável".
As pessoas de classe mais alta
estão vendo essa violência pela primeira vez. Uma das coisas mais novas dessas
mobilizações é que os protestos chegaram aos bairros mais ricos de Santiago.
Aos grandes centros comerciais como Parque Araucano, um grande centro comercial
muito caro onde nunca há protestos. Na Avenida Apoquindo, que é outra parte da
zona mais rica e próspera de Santiago, onde também nunca se vê protestos, as
pessoas começaram a protestar.
E chegaram os militares e
apontaram [armas] nas caras de pessoas que acreditam na democracia do Chile
porque vivem em uma bolha, em um mundo paralelo onde nunca se havia visto
violência de Estado, a violência da força militar e nem a dos carabineiros. As
pessoas das zonas ricas não vivem a realidade da população mais pobre. Na
semana passada, viram pela primeira vez a violência de Estado. Isso mudou
consciências e deixará marcas.
Agora, no Congresso, está sendo
debatida no Congresso uma acusação constitucional contra Sebastián Piñera, por
conta da morte de pelo menos cinco pessoas devido a violência das forças
repressoras. Isso causará um estrondo no sistema político chileno e no sistema
de Justiça por muitos anos.
Há, em certo nível, medo do
retorno da ditadura?
Em certos grupos sim. Sou
professor de políticas públicas e a análise acadêmica é de que o que estamos
vendo não é uma volta da ditadura. Aqui estamos com um sistema democrático,
muito debilitado, mas é um sistema democrático. Com limites em relação ao que
os carabineiros e militares podem fazer. As pessoas que viveram a ditadura,
mais velhas, sabem que isso não é o mesmo. Há muita violência, mais mortos, mas
não é a mesma impunidade. É um nível mais baixo, ainda que muito
terrível.
Estamos vivendo coisas muito
terríveis e as pessoas entendem que não é a normalidade democrática, que há
algo que está violando os direitos humanos, e é uma situação que é preciso
protestar. Não é normal, mas não é o mesmo que a ditadura. Estamos em outra
situação. Inclusive para os eleitores conservadores. Há um eleitor
ideologicamente conservador que crê na mão firme, nas forças militares, na
repressão. Mas, no caso das pessoas que votam em Piñera, que são mais
moderados, para pessoas que defendem o livre mercado mas não são tão políticos,
ver essa violência está gerando aborrecimento também.
Piñera afirmou que o governo
“escutou e compreendeu a mensagem dos chilenos”, e depois pediu a todos os
ministros que deixassem seus cargos. Como avalia essa decisão?
Ele anunciou mudanças da equipe
de governo. Trocou-se o Ministro do Interior, se mudou toda a equipe política.
Isso traz implicações porque o Ministro do Interior é o vice-presidente.
Retiraram Andrés Chadwick, representante de toda a repressão desse sistema.
É algo simbólico e importante. No
entanto, é preciso olhar as mudanças. Sai Chadwick e entra Gonzalo Blumen.
Trocaram também o Ministério da Fazenda, a
secretaria geral da presidência. Mas não trocaram provavelmente os dois
ministros mais controversos por duas decisões anti movimentos sociais que é a
Marcela Cubillo, da Educação. Uma ministra verdadeiramente odiada porque fez de
tudo para destruir a educação pública. Deixar a Marcela Cubillo na educação,
apesar de todos os problemas que tem, mostra quão pouco o governo está dando
peso real a essa situação.
A outra pessoa que se manteve é
Jaime Mañalich, ministro da Saúde. A saúde e educação, duas das grandes
demandas do movimento social das ruas. O governo manteve os seus ministros
assim como estavam. Então não, não aprenderam na realidade que é necessário
outro caminho. Não escutaram, não entenderam a mensagem dos chilenos, porque
deixaram o ministros da Saúde e da Educação em seus postos.
O que aconteceu nessa mudança de
governo é que tiraram ministros da União Democrática Independente (UDI) um
partido mais Pinochetistas, e colocaram ministros de um partido mais liberal, o
Evolução Política. Porém, essa mudança, sem alterar educação e saúde, mostra
uma alteração de seio político, insuficiente.
O Chile é considerado uma das
democracias mais consolidadas na região. No entanto, é regido por uma
constituição pinochetista. Qual a urgência de mudanças nessa Constituição? Os
protestos podem resultar em reformas na lei?
A Constituição foi criada em
1980, sob uma ditadura. Se designou um grupo de advogados constitucionalistas,
todos de extrema direita. O mais importante foi Jaime Guzmán que foi fundador
do UDI, partido que apoia Piñera agora. Supostamente a reformaram em 2005, com
o presidente do partido socialista Ricardo Lagos, foi uma mudança superficial e
seguiu exatamente igual em termos de limitação da democracia.
A versão original da Constituição
de 1980, colocava os militares como os guardiões da ordem constitucional.
Também haviam senadores designados pelo presidente Pinochet. Em 2005 isso
mudou, entretanto, mudou por meio das regras da própria Constituição. Quando se
altera uma Constituição por meio de suas próprias regras, isso implica que toda
mudança tem que ser negociada com a permissão da direita porque eles, com um
terço dos votos, poderiam frear qualquer mudança já que é preciso um quórum de
dois terços para alterar a Constituição. Foram eles que aceitaram as mudanças
de 2005.
Havia um sistema eleitoral que só
representava a direita. Além desse sistema, uma série de lei majoritárias. Para
mudar essas certas leis não é simplesmente 50% + 1% e sim dois terços. Depois a
direita poderia mandar leis ao Tribunal Constitucional que declarou que as leis
alteradas no Congresso são inconstitucionais. Isso aconteceu, por exemplo, com
a legalização do aborto. O Chile queria, havia uma maioria favorável na
população. Porém quando propuseram essa lei, o Tribunal Constitucional disse
que a lei que legalizava o aborto era inconstitucional. Alteraram a lei,
fazendo a autorização do aborto muito mais difícil. É assim todo o tempo. Há uma
intervenção na política pelo Tribunal Constitucional, fruto desse
sistema.
Há uma coisa interessante. Há
muita raiva, as pessoas vão às ruas protestam e se organizam em conselhos
comunitários, grupos de pessoas que participam dos protestos e pensam como
resolver a questão. Há muita clareza de que a solução para democratizar o
Chile, mudar o sistema de saúde e de aposentadoria, é mudando a Constituição.
Está se propondo a urgência de uma mudança constitucional para resolver os
problemas. É preciso uma Constituição que não esteja direcionada para limitar a
democracia, e sim facilitar a democracia.
Acredita que as mobilizações no
Chile irão continuar? Elas podem inspirar outros países latino-americanos?
O Chile é um país distinto em
relação aos demais na América Latina. Penso que estamos em um ciclo diferente.
No caso do Brasil, da Argentina, da Venezuela e do Uruguai, são países que de
certa forma maneira, nos anos 2000, viveram processos de esquerda. Aqui isso
nunca aconteceu. Tivemos governos de centro esquerda. O Ricardo Lagos, que foi
do partido socialista, teve negociações com Lula sobre o Mercosul… E o Chile
votou pelo Mercosul fechar um tratado de livre comércio com os Estados Unidos.
Isso mostra onde estava o Chile nos anos 2000. Enquanto toda a América Latina
estava com a esquerda construindo algo diferente, Chile estava com os Estados
Unidos.
O que estamos vendo em Chile é
uma ação contra um modelo muito extremista. Muito livre mercado, muito
neoliberal, que não tem comparação com os demais países da América Latina. No
caso do que aconteceu com a vitória da esquerda da Argentina e na Bolívia,
incluindo nas eleições municipais da Colômbia, é outra coisa. É outro ciclo.
Por isso não sei se o Chile, por estar tão distante, pode inspirar ou liderar esse
processo. Eu creio honestamente que o que acontece no Chile tem mais
repercussão em nível mundial, em nível europeu e estadunidense, mais do que na
América Latina.
É muito simbólico que esse país,
que supostamente é exemplo de sucesso no continente em termos de
neoliberalismo, mostre que esse sistema, inclusive aqui, é um fracasso
total.
Em outros países
latino-americanos também há indícios de insatisfação popular. Na sua opinião, o
que pode ser um aspecto em comum a esses países com o Chile?
Como disse, o Chile é muito
diferente dos outros países. No entanto, é uma coincidência interessante que
justamente nas últimas semanas no Equador, tenha acontecido protestos contra o
aumento no combustível. O Fundo Monetário Internacional (FMI) quis impor ao
Equador o aumento, tirando o subsídio. Isso gerou um estopim social enorme
contra a ação. E o presidente Lenin Moreno teve que barrar a proposta.
Aqui temos uma situação parecida,
não é como o Equador, porque aqui não é uma organização internacional, são os
empresários que impõem o aumento da tarifa de transporte. Essa é a primeira
diferença. A segunda é que o Equador é super organizado, com um movimento
indígena muito expressivo, com uma confederação nacional e um partido político
próprio.
No Chile, nada. São empresários
locais lutando contra um povo sem muita organização. Com muita raiva em relação
a esse modelo tão extremista, tão fora do comum na América Latina, onde
geralmente a esquerda possui mais instituições estabelecidas. Aqui a direita
controla tudo: o poder empresarial, limita o Estado. Finalmente estamos vendo
uma revolta muito mais generalizada e muito mais fora da institucionalidade.
Nesse sentido há algo em comum,
que é a raiva. Uma raiva que está contra as elites e seus privilégios. Mas o
contexto no Chile é muito mais extremo e os caminhos são muitos diferentes. Com
certeza porque esse modelo aqui, está em seu extremo.
Imagem - Rafael Edwards/FlickrCC
- Manifestações contra alta concentração de renda e contra os serviços privados
continuam a chamar atenção do mundo.
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