Desgaste do neoliberalismo
alastra-se e chega à Colômbia. Cavalga na paralisia dos EUA, perdidos em
disputas internas e fracassos geopolíticos. Washington ainda pode vetar e
estrangular – mas impasses vão crescer, e exigem respostas
José Luís Fiori | Outras Palavras
“Muitos no Departamento de Estado
perderam o respeito por Mike Pompeo –
por um bom motivo. Seu comportamento
é uma das coisas mais vergonhosas
que já vi em 40 anos de cobertura
da diplomacia americana”.
perderam o respeito por Mike Pompeo –
por um bom motivo. Seu comportamento
é uma das coisas mais vergonhosas
que já vi em 40 anos de cobertura
da diplomacia americana”.
Thomas Friedman, no New York
Times
Num primeiro momento, pensou-se
que a direita retomaria a iniciativa, e se fosse necessário, passaria por cima
das forças sociais que se rebelaram, e surpreenderam o mundo durante o “outubro
vermelho” da América Latina. E de fato, no início do mês de novembro, o governo
brasileiro procurou reverter o avanço esquerdista, tomando uma posição
agressiva e de confronto direto com o novo governo peronista da Argentina. Em
seguida interveio, de forma direta e pouco diplomática, no processo de
derrubada do presidente boliviano, Evo Morales, que havia acabado de obter 47%
dos votos nas eleições presidenciais da Bolívia. A chancelaria brasileira não
apenas estimulou o movimento cívico-religioso da extrema-direita de Santa Cruz,
como foi a primeira a reconhecer o novo governo instalado pelo golpe
cívico-militar e dirigido por uma senadora que só havia obtido 4,5% dos votos
nas últimas eleições. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro procurou intervir no
segundo turno das eleições uruguaias, dando seu apoio público ao candidato
conservador, Lacalle Pou – que o rejeitou imediatamente – e recebendo em
Brasília o líder da extrema-direita uruguaia que havia sido derrotado no
primeiro turno, mas que deu seu apoio a Lacalle Pou no segundo turno.
Mesmo assim, ao fazer-se um
balanço completo do que passou no mês de novembro, o que se constata é que uma
expansão da “onda vermelha” havia se instalado no mês anterior no continente
latino-americano. Nessa direção, e por ordem, o primeiro que aconteceu foi a
libertação do principal líder da esquerda mundial, segundo Steve Bannon, o
ex-presidente Lula, que se impôs à resistência da direita civil e militar do
país, graças a uma enorme mobilização da opinião pública nacional e
internacional. Em seguida aconteceu o levante popular e indígena da Bolívia,
que interrompeu e reverteu o golpe de Estado da direita boliviana e brasileira,
impondo ao novo governo instalado a convocação de novas eleições presidenciais
com direito à participação de todos os partidos políticos, incluindo o de Evo
Morales. Da mesma forma, a revolta popular chilena também obteve uma grande
vitória com a convocação, pelo Congresso Nacional, de uma Assembleia
Constituinte que deverá escrever uma nova Constituição para o país, enterrando
definitivamente o modelo socioeconómico herdado da ditadura do General
Pinochet. E mesmo assim, a população rebelada ainda não abandou as ruas e deve
completar dois meses de mobilização quase contínua, com o alargamento
progressivo da sua “agenda de reivindicações” e a queda sucessiva do prestígio
do presidente Sebastian Piñera, que hoje está reduzido a 4,6%. Neste momento, a
população segue discutindo nas praças públicas, em cada bairro e província, as
próprias regras da nova constituinte, prenunciando uma experiência que pode vir
a ser revolucionária, de construção de uma constituição nacional e popular,
apesar de ainda existirem partidos e organizações sociais que seguem exigindo
um avanço ainda maior do que o que já foi logrado.
No caso do Equador, o país que se
transformou no estopim das revoltas de outubro, o movimento indígena e popular
também obrigou o governo de Lenin Moreno a recuar do seu programa de reformas e
medidas impostas pelo FMI, e aceitar uma “mesa de negociações” que está
discutindo medidas e políticas alternativas junto com uma agenda ampla de
reivindicações plurinacionais, ecológicas e feministas. Mas além de tudo isso,
o mais surpreendente acabou acontecendo na Colômbia, o país que vem sendo há
muitos anos o baluarte da direita latino-americana e é hoje o principal aliado
dos Estados Unidos, do presidente Donald Trump, e do Brasil do capitão
Bolsonaro, no seu projeto conjunto de derrubada do governo venezuelano e de
liquidação dos seus aliados “bolivarianos”. Depois da vitória eleitoral da
esquerda, e da oposição em geral, em várias cidades importantes da Colômbia,
nas eleições do mês de outubro, a convocação de uma greve geral em todo o país,
no dia 21 de novembro, deslanchou uma onda nacional de mobilizações e protestos
que seguem contra as políticas e reformas neoliberais do presidente Ivan Duque,
cada vez mais acuado e desprestigiado.
A agenda proposta pelos
movimentos populares varia em cada um desses países, mas todas elas têm um
ponto em comum: a rejeição das políticas e reformas neoliberais, e sua
intolerância radical com relação às suas consequências sociais dramáticas – que
já foram experimentadas várias vezes através de toda a história da América
Latina – e que acabaram derrubando o seu próprio “modelo ideal” chileno. Frente
a esta contestação quase unânime, duas coisas chamam muito a atenção dos
observadores: a primeira é a paralisia ou impotência das elites liberais e
conservadoras do continente, que parecem acuadas e sem nenhuma ideia ou
proposta nova, que não seja a reiteração de sua velha cantilena da austeridade
fiscal e da defesa milagrosa das privatizações que vêm fracassando por todos os
lados; e a segunda é a relativa ausência ou distanciamento dos Estados Unidos
frente ao avanço da “revolta latina”. Porque mesmo quando tenham participado do
golpe boliviano, fizeram com uma equipe de terceiro time do Departamento de
Estado, e não contaram com o entusiasmo que o mesmo departamento dedicou, por
exemplo, à sua “operação Bolsonaro” no Brasil. Ao mesmo tempo, este
distanciamento americano tem dado maior visibilidade ao amadorismo e à
incompetência da nova política externa brasileira, conduzida pelo seu chanceler
bíblico.
Para entender melhor esse
“déficit de atenção” americano, é importante olhar para alguns acontecimentos e
desdobramentos internacionais dos dois últimos meses, e que se encontram em
pleno curso. É óbvio que não existe uma relação de causalidade necessária entre
esses acontecimentos, mas com certeza existe uma grande “afinidade eletiva” entre
o que está passando na América Latina e a intensificação da luta interna dentro
do establishment norte-americano, que alcançou um novo patamar com a
abertura do processo de impeachment contra o presidente Donald Trump,
envolvendo diretamente sua política externa.
E tudo indica que esta briga
passou para outro patamar de violência depois que Trump demitiu John Bolton,
seu Conselheiro de Segurança Nacional. Esta demissão parece ter provocado uma
inusitada convergência entre a ala mais belicista do Partido Republicano e do “deep
state” norte-americano e um grupo expressivo de congressistas do Partido
Democrático que foi responsável pela decisão de julgar o presidente Trump. É
muito pouco provável que o impeachment se concretize, mas seu
processo deverá se transformar num campo de batalha política e eleitoral até as
eleições presidenciais de 2020. Além disto, com o afastamento de Bolton e a
intimação imediata para depor do Secretário de Estado, Mike Pompeo,
desmontou-se a dupla – extremamente agressiva – que junto com o vice-presidente
Mike Pence, foi responsável pela radicalização religiosa da política externa
americana nos últimos dois anos.
Com isto rompeu-se também a linha
de comando da extrema-direita latino-americana, e talvez tenha sido isto que
deixou a descoberto seus operadores brasileiros de Curitiba e Porto Alegre, na
hora em que foram desmascarados pelo site do Intercept, como também tenha
deixado a devida cobertura o pupilo idiota que eles ajudaram a instalar nas
Relações Exteriores brasileiras. Não se pode esquecer que Mike Pompeo teve
papel decisivo na “trapalhada diplomática”’ da Ucrânia que deu origem ao
processo de impeachment. Por isto, tudo o que hoje diga ou ameace o chefe
do Departamento de Estado tem uma credibilidade e eficácia que serão cada vez
menores, pelo menos até novembro de 2020.
Mas atenção que este não foi o
único erro, nem é o único motivo da luta que divide a elite norte-americana no
acirramento de sua briga interna. Pelo contrário, a causa mais importante desta
divisão está no fracasso da política americana de contenção da China e da
Rússia, que não está conseguindo deter nem curvar a expansão mundial da China,
e o acelerado avanço tecnológico-militar da Rússia. Duas forças expansivas que
já desembarcaram na América Latina, modificando os termos e a eficácia da
famosa Doutrina Monroe, formulada em 1822. Isso pôde ser verificado
recentemente como posicionamento russo frente à crise boliviana, sobretudo com
a ajuda chinesa para “salvar” os dois últimos leilões, da “cessão onerosa”, na
Bacia de Campo, e da “partilha”, na Bacia de Santos, e para viabilizar – muito
provavelmente – as próximas privatizações anunciadas pelo ministro Paulo
Guedes. Tudo isto, a despeito e por cima das bravatas “judaico-cristãs” do seu
chanceler.
Não é necessário repetir que não
existe uma única causa, ou alguma causa necessária, que explique a “revolta
latina” que começou no início do mês de outubro. Mas não há dúvida de que esta
divisão americana, junto com a mudança da geopolítica mundial, tem contribuído
decisivamente para a fragilização das forças conservadoras na América Latina.
Tem contribuído também para a acelerada desintegração do atual governo
brasileiro e a perda de sua liderança dentro do continente latino-americano,
com a possibilidade de que o Brasil se transforme brevemente num pária
continental.
Por tudo isto, concluindo, quando
se olha para frente,é possível prever algumas tendências, apesar da densa
neblina que encobre o futuro neste momento da nossa história:
A divisão interna americana deve
seguir e a luta deve aumentar, apesar de que os grupos em disputa compartam o
mesmo objetivo, que é, em última instância, preservar e expandir o poder global
dos Estados Unidos. Mas os EUA encontraram uma barreira intransponível e já não
conseguirão mais ter o poder que alcançaram depois do fim da Guerra Fria.
Por isso mesmo, os EUA se
voltaram para o “hemisfério ocidental com redobrada possessividade, mas também
na América Latina eles estão se enfrentando com uma nova realidade, e já não
conseguirão mais sustentar a incontestabilidade do seu poder.
Como consequência, será cada vez
mais difícil impor à população local os custos sociais gigantescos da
estratégia económica neoliberal que eles apoiam ou tentam impor a toda sua
periferia latino-americana. Trata-se de uma estratégia que é definitivamente
incompatível com qualquer ideia de justiça e igualdade social, e é literalmente
inaplicável em países com maior densidade demográfica, maior extensão
territorial e complexidade socioeconômica. Uma espécie de “círculo quadrado”.
Por fim, apesar disso, existe um
enigma no caminho alternativo proposto pelas forças progressistas. E este
enigma não é técnico, nem tem a ver estritamente com política económica, porque
é um problema de “assimetria de poder”. Na verdade, mesmo quando contestados,
os EUA e o capital financeiro internacional mantêm o seu poder de vetar,
bloquear ou estrangular economias periféricas que tentem uma estratégia de
desenvolvimento alternativa e soberana, fora da camisa de força neoliberal, e
mais próxima das reivindicações desta grande revolta latino-americana.
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