segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Maior parte do dinheiro transferido ilegalmente continua fora de Angola


Lei que regulamenta repatriamento de recursos transferidos ilicitamente para o exterior foi aprovada há cerca de um ano em Angola. Mas até agora recuperação desse capital por parte do governo foi ínfima, diz economista.

Um ano depois de o Governo angolano ter dado início à fase coerciva do repatriamento de capitais, especialistas como Jonuel Gonçalves dizem que o volume de recursos recuperado é inferior ao que ainda pode ser repatriado. "Mesmo com um cálculo muito por baixo, os ativos de angolanos no exterior, e mesmo simples depósitos, são incomparavelmente maiores com o pouco que se recebeu" até agora, afirma o economista.

"Tirando os 500 milhões de dólares de Londres, não há nenhum volume deste tamanho que tenha voltado para Angola", sublinha o investigador, referindo-se ao processo de transferência indevida de 500 milhões de dólares (450 milhões de euros) para um banco em Londres, em 2017, em que é coarguido o ex-governador do banco central angolano Valter Filipe.

O julgamento teve início a 9 deste mês no Tribunal Supremo de Angola, que tem também como coarguidos Jorge Gaudens Pontes Sebastião, empresário angolano, José Filomeno dos Santos, ex-presidente do Fundo Soberano de Angola, e António Samalia Bule Manuel, antigo diretor do departamento de Gestão e Reservas do Banco Nacional de Angola (BNA).
Segundo Jonuel Gonçalves, "o desvio foi na ordem das dezenas de biliões de dólares", de maneira que "esse capital está mantido no exterior por duas razões": primeiro porque "aqueles que desviaram não têm confiança de o fazer regressar, têm peso na consciência, têm medo que possa haver algum tipo de perseguição de caráter judicial", alega. E, em segundo lugar, "os países que receberam os depósitos têm esses depósitos como importantes para o seu próprio sistema bancário", explica o economista.


Paraísos fiscais: uma dor de cabeça para Luanda

O investigador angolano, visitante do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), revela os dilemas que existem por detrás do repatriamento de capitais: "Há inclusive uma certa luta sobre determinado capital ilícito, que foi investido no exterior, e a pergunta é se esse resultado pertence ao Estado angolano ou se pertence àqueles que investiram neles, na medida em que houve desvio."

O académico questiona as tentativas de negociação com aqueles que desviaram o dinheiro do erário público. Os casos mais complicados são os ativos colocados em paraísos fiscais, onde não se consegue determinar o montante de capital transferido.

Para Gonçalves, esta é a principal dor de cabeça para o Governo angolano. "Esse é o calcanhar de Aquiles, o problema central. Ou realmente o Governo consegue que regresse ao país um montante significativo de capital ou consegue que o capital que foi investido no exterior em empresas, que essa parte de ações passe a ser considerada como propriedade de Angola." Caso contrário, salienta, "não há possibilidade de financiar um programa de desenvolvimento."

Portugal evita comentários sobre repatriamento

Abordada pela DW África, a procuradora-geral adjunta portuguesa, Maria José Morgado, evitou comentar se Portugal tem colaborado efetivamente com Luanda no que toca ao repatriamento de capitais para Angola. "Não faço a mínima ideia. Eu sei que tudo isto é transnacional, mas não vou dar opiniões sobre o que se passa para aqui e daqui para Angola. É uma matéria muito complexa."

O analista angolano Carlos Gonçalves considera que o processo de repatriamento de ativos transferidos de forma ilícita de Angola não conheceu avanços consideráveis em Portugal, apesar da vontade política expressa pelo Governo de António Costa em colaborar com o executivo de Luanda. "Publicamente não há referências. Antes pelo contrário, há uma ideia de que Portugal desandou um pouco em relação àquilo que era a vontade inicial do repatriamento de capitais angolanos retidos aqui", afirma.

O jornalista diz ainda que em Angola há uma ideia muito clara da inércia portuguesa em relação a este dossier, porque  "o Estado português quer, de facto, fazer o repatriamento de ativos, mas que esses ativos sejam retornados em bens e produtos portugueses."

Segundo Carlos Gonçalves, "houve uma primeira tentativa de adjudicar isso à dívida de Angola com Portugal", que não vingou e depois começou a ser criado um processo em que os ativos angolanos retidos em Portugal fossem convertidos em bens e serviços portugueses para Angola. Mas "isso também não serve porque não está no domínio do executivo, está no domínio da justiça", explica o analista, que considera que em Portugal ainda não há uma ideia exata dos montantes em causa, nem há notícias da tal vontade política expressa por Lisboa.

João Carlos (Lisboa) | Deutsche Welle

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