Mais interessado do que em
escolher o seu próprio candidato, o aparelho do partido Democrático está
preocupado em afastar Trump da corrida – dando assim como adquirido que, com
ele, as eleições estariam perdidas.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
O mundo está suspenso do impeachment.
Parece não se passar nada mais
relevante à face da Terra do que saber se o fascista Trump, presidente dos
Estados Unidos da América, será substituído pelo fascista Pence até ao começo
de 2021, altura em que entrará em funções a nova escolha do establishment que
gere o regime norte-americano – sem qualquer dúvida alguém do partido único com
duas faces. Para tudo continuar na mesma.
Sucedem-se os depoimentos das
testemunhas, multiplicam-se os comentários de analistas sobre os depoimentos
das testemunhas, a rede mediática global transborda de factos e pareceres
próprios comentando os comentários dos analistas sobre os depoimentos das
testemunhas. O mundo sofre uma indigestão de informação para, afinal, não ter
informação alguma credível sobre a essência do que está em causa.
Porque estará, afinal, Donald
Trump a ser alvo de um impeachment?
Por ser fascista? Não parece. Em
Washington isso não conta como pecado tendo em conta a quantidade de golpes
fascistas que ali foram e continuam a ser preparados para que os interesses dos
sustentáculos do regime sejam devidamente alimentados, interna e externamente.
A causa do impeachment será
o facto de Donald Trump roubar petróleo à Síria? Ou por apoiar a
Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos na chacina que praticam no Iémen vai para seis anos?
Será porque a administração Trump
tem deixado os iranianos e os venezuelanos a morrer à fome? Por ter largado os
cães fascistas à solta na Bolívia? Por querer obrigar os europeus a consumir
gás natural muito acima do preço? Por viciar a livre concorrência internacional
através das suas guerras comerciais?
Será o impeachment porque
Trump continua a financiar grupos terroristas na Síria, contemporiza com
limpezas étnicas, trata os imigrantes como gado separando crianças das suas
famílias, erguendo muros e barreiras para que seres humanos morram à fome ou
tenham vidas sem destino?
Será por continuar a permitir –
na esteira dos antecessores – que o Afeganistão sob o domínio da NATO funcione
como o paraíso do narcotráfico e inunde o mundo de heroína?
Será por negar aos palestinianos
e aos saarauís o direito a terem as suas pátrias; por ter assumido que as opções terroristas do regime sionista de Israel valem
mais que o direito internacional e as deliberações das Nações Unidas? Por
estar de acordo em que os dois milhões de habitantes de Gaza vivam em regime de
campo de concentração onde pouco mais lhes resta do que esperar pela morte?
Escrutinando a confusão
deliberada em que se transformou o processo de impeachment contra o
presidente dos Estados Unidos parece que nenhum destes crimes contra os
direitos humanos, contra a condição humana, ou outros do mesmo género estão na
origem dos procedimentos.
O telefonema maldito
Parece que, afinal, a causa de
tão extrema pretensão é um telefonema. Não um telefonema qualquer, é bom de
ver, mas ainda assim um telefonema.
Na sua qualidade de presidente
dos Estados Unidos, Donald Trump telefonou ao presidente da Ucrânia, Volodymyr
Zelensky, pedindo-lhe informações sobre o comportamento do ex-vice-presidente
norte-americano, Joseph (Joe) Biden a propósito de acontecimentos pouco claros
na maior empresa ucraniana de gás natural.
Tudo leva a crer, sem necessitar
de entrar pelo campo da especulação, que o presidente norte-americano de turno
não estará propriamente incomodado com o comportamento ético do vice de Obama.
Não é uma inquietação própria de alguém que rouba petróleo a uma nação soberana
ou decide mudar arbitrariamente os presidentes de países terceiros.
Pelo que o objectivo que guiou a
diligência de Trump foi o de encontrar armas para utilizar na batalha eleitoral
já em andamento contra aquele que se perfila como o maior adversário à sua
reeleição, Joseph Biden.
Golpe baixo, dir-se-á, como
se a refrega pela eleição do presidente dos Estados Unidos se guiasse por
princípios éticos e de respeito mútuo. Acresce que o presidente em exercício
não fez um simples pedido ao presidente ucraniano. Numa relação de imperador
para suserano fez saber que a próxima remessa de auxílio militar ao aparelho
fascista que sustenta o regime de Kiev fica congelada até que Zelensky responda
convenientemente. Se o congelamento está em vigor ou não é assunto que faz
agora parte da guerra de prós e contras que caracteriza o processo de impeachment.
Se Biden será ou não o grande
rival de Trump nas eleições presidenciais do próximo ano é assunto que está em
aberto e caberá ao Partido Democrático resolver.
Porém, mais interessado do que em
escolher o seu próprio candidato, o aparelho do partido está preocupado em
afastar Trump da corrida – dando assim como adquirido que, com ele, as eleições
estariam perdidas. Essa é a principal motivação do impeachment; os
democráticos sofrem de pouca fé certamente porque, melhor do que ninguém, sabem
que têm boas razões para isso: o seu passado recente em nada os distingue do
presente da administração Trump.
Serve a Ucrânia onde falhou a
Rússia
O impeachment é,
portanto, uma fabricação do Partido Democrático e suas muitas correias de
transmissão no establishment. É uma iniciativa que esteve sempre na mente
das eminências do partido desde as eleições de 2016 – e que, portanto, não se inspira
na revolta contra a forma de governar de Trump.
Ao princípio foi a suposta
interferência da Rússia nas anteriores eleições presidenciais, o chamado
«Russiagate». Isto é, o Kremlin tinha conspirado com Trump em prejuízo da senhora Clinton, uma impoluta democrata sem nada que se lhe
aponte. Arrasar a Líbia e organizar internacionalmente os grupos terroristas para fazerem
o mesmo na Síria são actos que, naturalmente, apenas lhe enriquecem o currículo.
O «Russiagate» estendeu-se por
mais de dois anos, até que as investigações culminaram no chamado «Relatório
Muller», que retirou qualquer fundamento ao assunto.
O telefonema de Trump a Zelensky,
desvendado através de convenientes «fugas de informação» organizadas pela
constelação de serviços secretos, surgiu então como a oportunidade para os
democráticos alcançarem com a Ucrânia o que não conseguiram com a Rússia. Com a
vantagem de o regime de Kiev poder proporcionar novas variantes capazes de
ressuscitar a suposta «cumplicidade» entre Trump e Putin, que o aparelho
democrático teima em não abandonar. Uma promissora situação de dois em um.
A Ucrânia é, na realidade, um
terreno que os democráticos norte-americanos conhecem bem: foram eles que o
criaram não se importando – tal como a União Europeia, não o
esqueçamos – de recorrer ao banditismo fascista.
Joseph Biden foi, como
vice-presidente de Obama, um dos principais envolvidos na organização do golpe
da Praça Maidan, em 2014, que supostamente restaurou «a democracia» em Kiev
através da entronização de personalidades e grupos saudosos dos tempos do
colaboracionismo com Hitler. Joseph Biden não perdeu tempo e, uma vez consumada
a mudança de regime, entrou no lucrativo negócio do gás natural ucraniano
introduzindo um filho como membro da administração da maior empresa do ramo. E
quando uma investigação judiciária de Kiev quis saber como tal foi possível,
Biden não hesitou: ou o inquérito parava ou congelaria o auxílio militar
norte-americano a Kiev. Trump, afinal, não introduziu ideias novas na
engrenagem.
O impeachment nos
carris
Foi então que, munido da carta
ucraniana, o Partido Democrático fez entrar finalmente o impeachment nos
carris, valendo-lhe também a presença poderosa que tem no aparelho do establishment e
numa área mediática bem-falante e supostamente «de referência» – mas sempre bem
sintonizada com o essencial da política imperial de Washington.
Por isso a carta ucraniana é
glosada de todas as maneiras e feitios, sugada sem descanso para abastecer a
realidade paralela em que decorre todo o processo.
E não poderia ser de outra
maneira.
Em relação ao fascismo de Trump
não podem esquecer-se as equivalências de Biden, Obama, Clinton como autores da
legitimação democrática dos nazis ucranianos no poder.
Se o tema for o roubo de
petróleo, os democráticos não estarão isentos da mesma acusação pelos seus
comportamentos na Líbia, no Iraque, na própria Síria; a carnificina no Iémen
foi lançada com uma administração democrática em Washington.
As sanções contra o Irão e contra
a Venezuela, acrescidas, neste caso, com as tentativas de mudança de regime,
também foram armas usadas por Obama e Clinton.
Que dizer da agonia de Gaza, do
desrespeito pelos direitos dos palestinianos e dos saarauis, da cumplicidade
com o terrorismo israelita, do lançamento das guerras contra a Líbia e a Síria,
dos golpes no Brasil, no Paraguai e nas Honduras, do narcotráfico afegão, da
organização e financiamento do terrorismo internacional, incluindo a própria
entrada em cena do Isis ou Estado Islâmico – tudo em tempos de administração
democrática?
É certo que não foi Obama quem
construiu o muro contra os imigrantes; mas as suas guerras provocaram milhões
de refugiados; e a sua gestão foi responsável pelo maior número de sempre de
execuções extrajudiciais além-fronteiras.
O impeachment é uma
farsa em ambiente de podridão de uma política que nos é apresentada como
exemplo a seguir.
O processo em curso deveria ser o
do impeachment do próprio regime; mas é apenas muito barulho, uma
enorme encenação para nada: independentemente do resultado deste caso
específico tudo continuará na mesma em Washington – com democráticos ou
republicanos ou vice-versa.
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