quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O «impeachment» de um regime


Mais interessado do que em escolher o seu próprio candidato, o aparelho do partido Democrático está preocupado em afastar Trump da corrida – dando assim como adquirido que, com ele, as eleições estariam perdidas.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

O mundo está suspenso do impeachment.

Parece não se passar nada mais relevante à face da Terra do que saber se o fascista Trump, presidente dos Estados Unidos da América, será substituído pelo fascista Pence até ao começo de 2021, altura em que entrará em funções a nova escolha do establishment que gere o regime norte-americano – sem qualquer dúvida alguém do partido único com duas faces. Para tudo continuar na mesma.

Sucedem-se os depoimentos das testemunhas, multiplicam-se os comentários de analistas sobre os depoimentos das testemunhas, a rede mediática global transborda de factos e pareceres próprios comentando os comentários dos analistas sobre os depoimentos das testemunhas. O mundo sofre uma indigestão de informação para, afinal, não ter informação alguma credível sobre a essência do que está em causa.

Porque estará, afinal, Donald Trump a ser alvo de um impeachment?

Por ser fascista? Não parece. Em Washington isso não conta como pecado tendo em conta a quantidade de golpes fascistas que ali foram e continuam a ser preparados para que os interesses dos sustentáculos do regime sejam devidamente alimentados, interna e externamente.


A causa do impeachment será o facto de Donald Trump roubar petróleo à Síria? Ou por apoiar a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos na chacina que praticam no Iémen vai para seis anos?

Será porque a administração Trump tem deixado os iranianos e os venezuelanos a morrer à fome? Por ter largado os cães fascistas à solta na Bolívia? Por querer obrigar os europeus a consumir gás natural muito acima do preço? Por viciar a livre concorrência internacional através das suas guerras comerciais?

Será o impeachment porque Trump continua a financiar grupos terroristas na Síria, contemporiza com limpezas étnicas, trata os imigrantes como gado separando crianças das suas famílias, erguendo muros e barreiras para que seres humanos morram à fome ou tenham vidas sem destino?

Será por continuar a permitir – na esteira dos antecessores – que o Afeganistão sob o domínio da NATO funcione como o paraíso do narcotráfico e inunde o mundo de heroína?
Será por negar aos palestinianos e aos saarauís o direito a terem as suas pátrias; por ter assumido que as opções terroristas do regime sionista de Israel valem mais que o direito internacional e as deliberações das Nações Unidas? Por estar de acordo em que os dois milhões de habitantes de Gaza vivam em regime de campo de concentração onde pouco mais lhes resta do que esperar pela morte?

Escrutinando a confusão deliberada em que se transformou o processo de impeachment contra o presidente dos Estados Unidos parece que nenhum destes crimes contra os direitos humanos, contra a condição humana, ou outros do mesmo género estão na origem dos procedimentos.

O telefonema maldito

Parece que, afinal, a causa de tão extrema pretensão é um telefonema. Não um telefonema qualquer, é bom de ver, mas ainda assim um telefonema.

Na sua qualidade de presidente dos Estados Unidos, Donald Trump telefonou ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, pedindo-lhe informações sobre o comportamento do ex-vice-presidente norte-americano, Joseph (Joe) Biden a propósito de acontecimentos pouco claros na maior empresa ucraniana de gás natural.

Tudo leva a crer, sem necessitar de entrar pelo campo da especulação, que o presidente norte-americano de turno não estará propriamente incomodado com o comportamento ético do vice de Obama. Não é uma inquietação própria de alguém que rouba petróleo a uma nação soberana ou decide mudar arbitrariamente os presidentes de países terceiros.

Pelo que o objectivo que guiou a diligência de Trump foi o de encontrar armas para utilizar na batalha eleitoral já em andamento contra aquele que se perfila como o maior adversário à sua reeleição, Joseph Biden.

Golpe baixo, dir-se-á, como se a refrega pela eleição do presidente dos Estados Unidos se guiasse por princípios éticos e de respeito mútuo. Acresce que o presidente em exercício não fez um simples pedido ao presidente ucraniano. Numa relação de imperador para suserano fez saber que a próxima remessa de auxílio militar ao aparelho fascista que sustenta o regime de Kiev fica congelada até que Zelensky responda convenientemente. Se o congelamento está em vigor ou não é assunto que faz agora parte da guerra de prós e contras que caracteriza o processo de impeachment.

Se Biden será ou não o grande rival de Trump nas eleições presidenciais do próximo ano é assunto que está em aberto e caberá ao Partido Democrático resolver.

Porém, mais interessado do que em escolher o seu próprio candidato, o aparelho do partido está preocupado em afastar Trump da corrida – dando assim como adquirido que, com ele, as eleições estariam perdidas. Essa é a principal motivação do impeachment; os democráticos sofrem de pouca fé certamente porque, melhor do que ninguém, sabem que têm boas razões para isso: o seu passado recente em nada os distingue do presente da administração Trump.

Serve a Ucrânia onde falhou a Rússia

O impeachment é, portanto, uma fabricação do Partido Democrático e suas muitas correias de transmissão no establishment. É uma iniciativa que esteve sempre na mente das eminências do partido desde as eleições de 2016 – e que, portanto, não se inspira na revolta contra a forma de governar de Trump.

Ao princípio foi a suposta interferência da Rússia nas anteriores eleições presidenciais, o chamado «Russiagate». Isto é, o Kremlin tinha conspirado com Trump em prejuízo da senhora Clinton, uma impoluta democrata sem nada que se lhe aponte. Arrasar a Líbia e organizar internacionalmente os grupos terroristas para fazerem o mesmo na Síria são actos que, naturalmente, apenas lhe enriquecem o currículo.

O «Russiagate» estendeu-se por mais de dois anos, até que as investigações culminaram no chamado «Relatório Muller», que retirou qualquer fundamento ao assunto.

O telefonema de Trump a Zelensky, desvendado através de convenientes «fugas de informação» organizadas pela constelação de serviços secretos, surgiu então como a oportunidade para os democráticos alcançarem com a Ucrânia o que não conseguiram com a Rússia. Com a vantagem de o regime de Kiev poder proporcionar novas variantes capazes de ressuscitar a suposta «cumplicidade» entre Trump e Putin, que o aparelho democrático teima em não abandonar. Uma promissora situação de dois em um.

A Ucrânia é, na realidade, um terreno que os democráticos norte-americanos conhecem bem: foram eles que o criaram não se importando – tal como a União Europeia, não o esqueçamos – de recorrer ao banditismo fascista.

Joseph Biden foi, como vice-presidente de Obama, um dos principais envolvidos na organização do golpe da Praça Maidan, em 2014, que supostamente restaurou «a democracia» em Kiev através da entronização de personalidades e grupos saudosos dos tempos do colaboracionismo com Hitler. Joseph Biden não perdeu tempo e, uma vez consumada a mudança de regime, entrou no lucrativo negócio do gás natural ucraniano introduzindo um filho como membro da administração da maior empresa do ramo. E quando uma investigação judiciária de Kiev quis saber como tal foi possível, Biden não hesitou: ou o inquérito parava ou congelaria o auxílio militar norte-americano a Kiev. Trump, afinal, não introduziu ideias novas na engrenagem.

O impeachment nos carris

Foi então que, munido da carta ucraniana, o Partido Democrático fez entrar finalmente o impeachment nos carris, valendo-lhe também a presença poderosa que tem no aparelho do establishment e numa área mediática bem-falante e supostamente «de referência» – mas sempre bem sintonizada com o essencial da política imperial de Washington.

Por isso a carta ucraniana é glosada de todas as maneiras e feitios, sugada sem descanso para abastecer a realidade paralela em que decorre todo o processo.

E não poderia ser de outra maneira.

Em relação ao fascismo de Trump não podem esquecer-se as equivalências de Biden, Obama, Clinton como autores da legitimação democrática dos nazis ucranianos no poder.

Se o tema for o roubo de petróleo, os democráticos não estarão isentos da mesma acusação pelos seus comportamentos na Líbia, no Iraque, na própria Síria; a carnificina no Iémen foi lançada com uma administração democrática em Washington.

As sanções contra o Irão e contra a Venezuela, acrescidas, neste caso, com as tentativas de mudança de regime, também foram armas usadas por Obama e Clinton.

Que dizer da agonia de Gaza, do desrespeito pelos direitos dos palestinianos e dos saarauis, da cumplicidade com o terrorismo israelita, do lançamento das guerras contra a Líbia e a Síria, dos golpes no Brasil, no Paraguai e nas Honduras, do narcotráfico afegão, da organização e financiamento do terrorismo internacional, incluindo a própria entrada em cena do Isis ou Estado Islâmico – tudo em tempos de administração democrática?

É certo que não foi Obama quem construiu o muro contra os imigrantes; mas as suas guerras provocaram milhões de refugiados; e a sua gestão foi responsável pelo maior número de sempre de execuções extrajudiciais além-fronteiras.

O impeachment é uma farsa em ambiente de podridão de uma política que nos é apresentada como exemplo a seguir.

O processo em curso deveria ser o do impeachment do próprio regime; mas é apenas muito barulho, uma enorme encenação para nada: independentemente do resultado deste caso específico tudo continuará na mesma em Washington – com democráticos ou republicanos ou vice-versa.

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