domingo, 22 de dezembro de 2019

Portugal | De um longo sono



A contestação interna à directora de informação da RTP e a sua demissão colocaram o jornalismo nacional na ribalta. Um dos aspectos curiosos neste processo foi o abaixo-assinado de solidariedade que lhe foi endereçado por colegas com peso na profissão. Tomada de posição pública que contrasta com o silêncio dos mesmos acerca de um quadro geral em que o jornalismo e os jornalistas são afectados por múltiplos problemas - sociais, profissionais e de constrangimento ao exercício livre da sua actividade.

Há coisas que dizem muito do jornalismo nacional.

Ao fim de 45 anos de democracia e num momento em que a comunicação social se encontra abalada, surge um abaixo-assinado de figuras cimeiras do jornalismo nacional.

Em defesa de quê? Por boas condições contratuais dos jornalistas, nomeadamente nos grandes grupos de comunicação? Contra os baixos salários praticados nos meios de comunicação social? Contra a progressiva e avassaladora desigualdade salarial entre chefes e índios? Contra as opções editoriais dos principais meios de comunicação? Contra a escandalosa desigualdades na distribuição política da opinião praticada nos principais meios de comunicação que leva à fabricação de falsos consensos sociais? Contra a censura interna ou subliminar que se pratica no quotidiano dos meios de comunicação? Contra o medo que se vive de se levantar o queixo em defesa constitucional dos seus direitos laborais ou de participação na gestão de informação? Contra a falta de organização dos jornalistas como classe, a qual permitisse a unidade de todos os profissionais? Contra a correria infernal em que se vive nas redacções que conduz à superficialidade de informação, homogeneizada e mercantilizada? Contra a forte penetração de agências de comunicação, contratadas por empresas, instituições ou personalidades, nas notícias que saiem nos meios de copmunicação social? Contra a venda - eu diria prostituição - dos jornalistas como se de meros suportes publicitários se tratassem, em benefício dos interesses publicitários dos principais grupos de comunicação social que não têm o pudor de dizer que tudo isso é para a salvaguarda dos postos de trabalho de todos? Etc, etc…. ?
Não. Nada disso.

Estas figuras cimeiras do jornalismo nacional acordaram de um longo sono meditativo para defender a directora de informação da televisão pública (RTP), em forte embaraço face à sua redacção, que convocou um plenário para esta 2ª feira. O abaixo-assinado surge dias antes desse plenário.


A redacção, zangada, mal sabe o que a sua directora pensa, porque pouco a vê no quotidiano da sua actividade, já que a directora mal frequenta a redacção. E, a somar a isso, a redacção viu-se, sim, confrontada com a intervenção da sua directora de informação em defesa de uma instituição - onde ela própria já deu aulas -, que estava a ser objecto de trabalho jornalístico pela própria RTP, a quem a directora, antes dos jornalistas da RTP entrarem em contacto com a instituição, aconselhou - como qualquer assessor de imprensa ou amiga da instituição - que não prestasse declarações à reportagem em preparação e que respondesse por escrito. Tudo confirmado pela própria directora de informação - na reunião extraordinária do Conselho de Redacção da RTP - mas tudo em nome da melhor eficácia do trabalho jornalístico da RTP.

E o que diz o abaixo-assinado? Veja-se lá:

“Confrontados com o grave ataque público à integridade profissional da jornalista Maria Flor Pedroso, os jornalistas abaixo assinados não podem deixar de tomar posição em sua defesa, independentemente das questões internas da empresa onde é Diretora de Informação, que manifestamente nos ultrapassam”. Independentemente das questões internas? Mas são as questões internas que levam à crítica da directora de informação, os quais subscritores dizem estar a defender: “Maria Flor Pedroso é jornalista há mais de 30 anos. Sem mácula. Jornalista exemplar. Reconhecida e respeitada pelos pares. Maria Flor Pedroso é uma das mais sérias profissionais do jornalismo português. Chegou por mérito ao cargo que atualmente ocupa. Defensora irredutível do jornalismo livre, rigoroso. Sem cedências ao mediatismo, a investigações incompletas, ou à pressão de poderes de qualquer natureza. Maria Flor Pedroso foi escolhida pelos pares para presidir à Comissão Organizadora do 4.° Congresso dos Jornalistas Portugueses, uma iniciativa que se revelou um marco na discussão dos problemas da profissão” - e cujas poucas resoluções foram levadas, de facto, à prática. “Maria Flor Pedroso é frontal. Rejeita favores. Nunca foi acusada de mentir”.

Ou seja, parece aquela conversa da Câmara dos Lordes a chamar a atenção dos pobrezinhos para a sua boa vida de pobrezinhos: “Então vocês não vêem que têm o privilégio de trabalhar com a Flor Pedroso, seus pobres de espírito?”

Flor Pedroso foi convidada para um cargo importante, como é o de Directora de Informação da televisão pública, para o qual não tinha conhecimentos necessários. E foi-o na sequência de um conjunto de asneiras praticadas pela administração da RTP. Foi uma fuga para a frente. E esse tipo de jogadas políticas pagam-se caro. Sobretudo para a RTP. Mas na cabeça do presidente da RTP não fazia mal, porque é o dinheiro, a posição, o estatuto da televisão pública e os recursos da RTP que estavam em causa e não os dele, presidente da administração.

Foi contratada a Flor Pedroso, da casa, mas na Antena 1, e duas pessoas de fora (Helena Garrido, Cândida Pinto (SIC), esta última a única com créditos em televisão), quando a própria administração da RTP tinha dado indicações de não haver mais contratações externas. Ainda hoje nem absorveram os seus precários detectados!

Desde cedo, ficou claro que as pessoas contratadas sem créditos em televisão não tinham a mínima vocação para o trabalho. Era boas profissionais noutras áreas, mas não em televisão. Desde o início e até agora, andam perdidas no seu novo quotidiano. Os lugares de direcção da RTP foram disponibilizados como se de um período experimental se tratasse, embora sem os benefícios legais do período experimental. Ninguém parece querer dar a mão à palmatória. No fundo, a RTP gere-se sozinha.

Mas, mais tarde ou mais cedo ou mais cedo que tarde, as lacunas aparecem. Pode ser um mero episódio, que nem sequer é o caso, porque nunca é de esperar ver um director de informação fazer de assessor de imprensa. Mas é inevitável que essa incompetência para um cargo se note. Foi o caso.

Vá lá, camaradas jornalistas. Digam de vossa justiça ao que vêm e não se refugiem no “independentemente das questões internas da empresa onde é Diretora de Informação, que manifestamente nos ultrapassam”. Quantas vezes assinaram um abaixo-assinado em nome de outro camarada em apuros, de outras redacções em apuros, de camaradas das vossas próprias redacções? Tantos despedidos, afastados, humilhados, postos em causa, eventualmente com carreiras destruídas…

Por quê agora, porquê este caso?


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