Nova fronteira do capitalismo:
capturar as horas humanas – não mais no chão da fábrica, mas convertendo todo
tempo livre em trabalho extra, consumo idealizado e burocracia. Acima de tudo
bloquear o ócio, a reflexão e a possível dissidência
Quando Paul Lafargue escreveu seu
manifesto Le Droit à la Paresse (O Direito à
Preguiça), entre 1880 e 1883, primeiro como exilado em Londres e
depois em vestes de prisioneiro político, no interior de uma cela úmida do
cárcere de Sainte-Pélagie, em Paris, a classe operária europeia vivia em uma
situação que, hoje, chamaríamos de aprisionada. O preço a pagar pela
reivindicação de um ilusório e venenoso “direito ao salário” era a aceitação de
condições de trabalho massacrantes, que, de fato, afogavam na mais completa
escravidão. Estava entre os regimes de servidão voluntária plenamente
normalizados e institucionalizados por aquela que o pensador francês definia
profeticamente como a “religião do capital” – ou seja, a pretensa necessidade
de um capitalismo que, já naquele tempo, tentava de todas as maneiras impor-se
como lei natural e universal.
Um dos fundadores do Partido
Operário Francês, esposo de Laura Marx e genro de Karl, Lafargue logo
compreendeu que os avisos de tempestade descritos por seu sogro em O
Capital, e ainda antes por Engels (seu padrinho de casamento) em A Situação da Classe Operária na
Inglaterra (1845) haviam se transmutado numa realidade dramática. Para
percebê-lo, bastava observar o que ocorria do lado de dentro dos portões de
entrada das fábricas. O proletariado industrial parisiense – mulheres, homens e
crianças – trabalhava, em média, doze horas por dia. Longe da “zona de
conforto” da capital, nas províncias e no campo, a predação de tempo podia
chegar a picos de 14 horas. Na Itália, o quadro era ainda mais dramático,
principalmente em razão de uma cultura sindical mais escassa. O dado mais preocupantes
relacionava-se à situação das mulheres empregadas nas fábricas: nas fiações
piemontesas, centenas de operárias passavam até 16 horas ao dia com as mãos
imersas na água fervente, obrigadas a permanecer em espaços restritíssimos, a
inalar vapores nauseabundos, a suportar condições higiênico-sanitárias péssimas
e a conviver com um abafamento insustentável (para favorecer a fiação da seda,
as janelas deviam permanecer fechadas, do contrário o ar poderia danificar a
trama), sacrificando a própria saúde por 45 centavos ao dia.
O proletariado europeu aceitava
passivamente os abusos dos patrões, que impunham suas próprias condições graças
a uma posição contratual de preeminência absoluta e a um movimento operário
ainda pouco maduro. Privado de uma consciência de classe ele, de um lado, fez
do “direito ao trabalho” o núcleo essencial do próprio manifesto
reivindicativo; de outro, raramente parecia interrogar-se a fundo o real
significado daquele direito.
É a partir da observação deste
exército de assalariados nos porões, da escuta dos gemidos de desespero dos
novos subjugados das fábricas e escritórios, que Lafargue escreveu O
Direito à Preguiça, colocando ao centro de sua reflexão a necessidade de
recuperar algo muito similar ao conceito latino de otium: para romper
as grades da prisão, os subproletários deveriam reapossar-se daquele tempo que
os antigos dedicavam ao estudo, ao cuidado com o espírito e à estruturação do
pensamento. Uma dimensão do viver de valor inestimável, que a fé cega no
produtivismo havia rapidamente restringido à damnatio memoriae [condenação
da memória]. Apenas recuperando o próprio tempo, a classe operária poderia
identificar um antídoto eficaz à alienação, cuidando do desenvolvimento das
potencialidades humanas que a dominação capitalista reprimia ao som do trabalho
por peças e dos prémios de produção.
O convite a lutar pela
recuperação do sacrossanto direito ao ócio e a lançar forte desconfiança nos
diálogos de um capitalismo predatório, que na maior parte das vezes
apresenta-se diante de nossos olhos de forma mutável e amistosa, com “faces que
asseguram o progresso, a liberdade de expressão e de entretenimento” aparecem
com força também nas linhas de Cronofagia. Come il capitalismo
depreda il nostro tempo [Cronofagia: como o Capitalismo devora nosso
Tempo], último ensaio de Davide Mazzocco, publicado pela D Editore em 2019. No transcurso de suas
páginas, a força disruptiva da mensagem de Paul Lafargue se renova com toda a
sua brutal atualidade, lembrando-nos como, agora ou há um século e meio, as
tramas do capitalismo permaneceram, em essência, inalteradas.
O Zeitgeist dominante é
o mesmo: temos pouquíssimo temo a dedicar a nós mesmos. O que mudou foram os
mecanismos voltados a fazer estoque dos tempos mortos. Tornaram-se mais sutis e
imperceptíveis. Diferente do que ocorria no tempo de Lafargue, Marx e Engels, o
apetite “cronófago” do capital não investe tanto sobre o horário de trabalho,
mas também (e sobretudo) sobre a esfera do tempo livre, objeto de uma campanha
de colonização cada vez mais agressiva. Em consequência, um pensador como
Lafargue podia conceder-se o “luco” de focalizar apenas o que ocorria no
interior das fábricas, uma análise crítica das dinâmicas atuais do capitalismo
tardio exige projetar o olhar também ao que sucede além dos locais de trabalho.
A reflexão de Mazzocco retoma a
obra do ensaísta francês Jean-Paul Galibert. Este, em seu manifesto Cronòfagi (2015),
cunhou pela primeira vez o termo “cronofagia”, configurando-o como uma das
bases de sustentação do hipercapitalismo contemporâneo. Segundo Galibert, o
indivíduo é “simultaneamente uma quantidade de tempo disponível para a
cronofagia e uma quantidade de dinheiro disponível para o hipercapitalismo.
Esta regra ergue-se em condição para nossa existência, ao ponto de se tornar
uma nova condição humana. No ideal de disponibilidade, o ser humano reduz-se a
um jazida dupla de dinheiro e de tempo a explorar sem limites. Porém, é
necessário estabelecer uma relação de equivalência entre o tempo, do qual ele é
privado, e o dinheiro, que lhe é tirado”. Retomando e atualizando o trabalho de
Galibert, Mazzocco volta a aprofundar o tema da cronofagia, o braço
armado de que o hipercapitalismo serve-se para autoperpetuar-se, fagocitando o
tempo das massas e procedendo a uma progressiva erosão do tempo da inatividade
e, em consequência, da não rentabilidade.
Faz já vinte anos que Naomi Klein
evidenciou, em seu No Logo, como os
produtos a desenvolver no futuro serão aqueles não apresentados como
“mercadorias”, mas como “conceitos”, explorando do trabalho imaginário dos
consumidores por meio da criação de uma mitologia empresarial que possa
“infundir significado aos objetos colocando-lhes simplesmente o nome de uma
grife”. O paradoxo do intercâmbio cronófago reside mesmo neste curto-circuito
lógico: “trabalhar e depois pagar, àqueles para os quais trabalhamos, o preço
justo do nosso trabalho”. Uma vez exaurido o “verdadeiro” uso, o indivíduo
passa a quase totalidade do próprio “tempo livre” vestindo as fantasias de
consumidor e, por meio da própria imaginação, realiza inconscientemente uma
segunda tarefa profissional em favor do capital, in primis desejando
fortemente um certo tipo de bem (um carro, um notebook, um smartphone) e
contribuindo, de tal modo, a aumentar o valor económico: em segundo lugar,
pagando o sobrepreço da sua própria mente contribuiu a estruturar:
Se a quantidade de tempo que os
indivíduos deveriam consagrar à “preguiça” de memória lafarguiana – e que, ao
invés disso, é sacrificado no altar do consumo – representa o primeiro âmbito
de colonização do hipercapitalismo, outro objetivo estratégico de valor
absoluto é constituído da ocupação do único espaço em que ainda é permitido
permanecer pessoa, e não consumidor: o sono.
Não por acaso, uma outra
influência literária muito presente em Cronofagia é um ensaio de
2015, Capitalism
24/7 – Il capitalismo all’attacco del sonno [Capitalismo 24/7 – o sono
sob ataque do sistema]. O autor, Jonahthan Crary, evidencia como uma
necessidade biológica fundamental entrou em claro contraste com as exigências
voltadas a alcançar a distopia de um capitalismo 24 horas por dia, 7 dias
por semana, uma ucronia que só poderia ser animada por zumbis sonâmbulos e
em dependência perene do consumo.
Retomando Crary, Mazzoco
evidencia como, ao longo de um século, o tempo que os indivíduos dedicam ao
sono reduziu-se abruptamente: das dez horas por noite, do início dos anos 1900,
às oito da metade daquele século e à média tual de cerca de seis horas. Não é à
toa que o executivo-chefe da Netflix, Reed Hastings, definiu, durante uma
conferência em Los Angeles, em 2017, o sono como o principal competidor de sua
plataforma. Sua observação é muito verossímil. O tempo que passamos dormindo
está protegido de todas as necessidades induzidas artificialmente, que aplacam
os apetites cornófagos do hipercapitalismo. Uma zona de imunidade cuja fruição,
cada vez mais frequentemente, tendemos a subestimar: o tempo que os indivíduos
deveriam dedicar ao sono acaba, cada vez mais engrossando os lucros da
indústria do entretenimento, através de sessões bulímicas noturnas de bingewatching [maratona
insone para assistir a seriados]. Compras compulsivas na Amazon ou despesas
improvisadas nos tantos hipermercados abertos 24 horas que proliferam,
contribuindo à criação de espirais gigantes de precariado no Ocidente, símbolo
de “progresso”. Abater a necessidade humana de fechar os olhos por um terço dos
dias é, provavelmente, o objetivo estratégico mais importante que a economia de
mercado pretende perseguir nos próximos anos.
Como evidenciado em Crary:
“o sono estabelece o problema de
uma necessidade humana que pode ser satisfeita apenas em um certo intervalo de
tempo e não pode, portanto, ser dominado ou subjugado a uma máquina para gerar
lucros, oferecendo-se assim como uma exceção incôngura, uma verdadeira área de
crises no âmbito da atual globalização”.
Um ponto posterior de reflexão
oferecido pelo ensaio de Mazzocco é o que concerne o tempo que, dia a dia, é
dispendido pela burocracia. Há meio século, os tecno-otimistas impuseram a
própria narrativa sobre o poder redentor da informatização. Ela teria se
convertido em libertadora da “escravidão do papel e dos atrasos dos processos
de tratamento de dados”. Apesar das previsões entusiásticas, a simplificação
burocrática está se tornando um mito: basta defrontar com qualquer guichê da
administração pública para perceber que a tecnologia não resolveu o problema
mas, em determinados casos, contribuiu para ampliar as barreiras.
Como David Graeber evidenciou, em Burocracia (citado
explicitamente por Mazzocco no terceiro capítulo de seu livro), no estágio
atual “cada um de nós sabe que deverá aprender a fazer o trabalho que, em outra
época, faziam os agentes de viagem, os intermediários financeiros e os comerciantes”.
Graeber sublinha como, paradoxalmente, a hiperburocratização de nossa sociedade
ocoreu no período imediatamente posterior à queda dos aparatos da burocracia
socialista.
Aqueles encargos que, até há
algumas décadas, pesavam sobre as costas de profissionais formados
adequadamente, atualmente pesam sobre todos os indivíduos. Para um professor
universitário, tornou-se inevitável dedicar sempre mais tempo à correta gestão
das bolsas de estudo, assim como para um pai é perfeitamente normal é agora perfeitamente
normal dedicar horas e horas na compilação de módulos infinitos, para inscrever
seus próprios filhos em uma escola digna. As horas que empregamos para nos
alienar das exigências de uma burocracia que “nos transformaram em funcionários
administrativos em tempo parcial e em secretários de nós mesmos” são horas
roubadas do desenvolvimento de nossas potencialidades. Os labirintos
burocráticos nos transformaram em uma massa indistintas de autómatos
insatifeitos, ocupados, preocupadíssimos e esgotados.
O ensaio de Mazzocco, por meio de
uma linguagem deliberadamente não acadêmica e de referências contínuas a
histórias próprias do quotidiano do autor (como aquele em que é obrigado a
enfrentar filas intermináveis nos correios, para obter a isenção de uma taxa
ferroviária), realiza perfeitamente sua intenção. Ele quer conferir ao leitor a
consciência de uma contemporaneidade dramática, que os poderes que governam
nossa sociedade tendem a normalizar cada vez mais. Para tanto, empregam uma
narrativa complacente, voltada a tornar desejável um mundo em que o conceito de otium é,
agora, pouco mais que uma fotografia desbotada.
Sobre o tempo de leitura, o
próprio Mazzocco nos tranquiliza, na quarta capa do livro: 594 minutos…
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