O totalitarismo é também a ideia
de não olhar a meios para obter certos fins
Carlos de Matos
Gomes* | Jornal Tornado | opinião
Há quem acredite em bons
denunciantes, em generosos e desinteressados denunciantes. Há quem goste de
denunciantes.
Lendo a diretiva europeia sobre a
proteção de denunciantes percebemos a influência do Processo de Kafka nos
sistemas burocráticos a caminho do totalitarismo.
Para a burocracia da União
Europeia, denunciante é uma pessoa que pretende alertar para eventuais violações
do direito da União. O denunciante não tem de se identificar, nem de apresentar
provas. O denunciante adquire o estatuto e a proteção por ele garantida apenas
por ‘pretender alertar’ para eventuais violações. Para os burocratas kafkianos,
o denunciante existe ainda antes da denúncia, ainda na fase em que pretende,
isto é, tem a intenção de, alertar e não para violações, mas para eventuais
violações!
O que distingue, nesta definição
o denunciante de um vulgar boateiro? Nada!
Mas o boateiro, ainda assim
constitui a categoria mais baixa do denunciante. O tipo que produz fake
news, por exemplo, mas que a União entende já merecer proteção, porque pode
haver uma eventual violação… Nunca se sabe…
Na escala dos denunciantes
seguem-se os das espécies mais vulgares, os ressabiados. Uma pessoa sentiu-se
prejudicada num negócio, numa promoção, até num affaire amoroso e
denuncia para se vingar. Também merece proteção da nossa União!
Segue-se o denunciante jogador e
chantagista. Uma pessoa espia computadores, escuta telefones, tira fotografias,
obtém documentos e vai fazer chantagem. Se correr bem e receber o que pediu,
mete ao bolso e parte para nova ação, se correr mal, vai apresentar as ditas
“provas” e assim ganhar o estatuto de denunciante, com a devida proteção da
União.
É evidente que, apresentada
nestes termos, a diretiva da União Europeia parecia escandalosa até aos
comentadores avençados mais venais. Por isso, para evitar o ridículo, os
encarniçados defensores dos denunciantes refugiam-se na fé. Fazem de pastorinhos
de Fátima!
A vibrante doutora Ana Gomes que
quase defende o Angola é nossa também vai bem de irmã Lúcia e há por aí vários
Jacintos. Alguns jornais e estúdios de televisões surgem com o brilho velado de
capelas de aparições! Eles, os videntes, acreditam na boa fé dos denunciantes e
invocam a Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, que prevê a proteção
aos denunciantes contra todo trato injusto desde que denunciem de boa-fé e com
motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos (ONU 2003).
Devem apresentar-se com atestado de bom comportamento?
Os legisladores europeus foram
mais longe e propõem que os Estados-membros forneçam apoio jurídico, financeiro
e psicológico aos denunciantes!
Isto é, o denunciante passa a ser
um cidadão digno e dignificado, com direito a apoio jurídico, psicológico e até
salário fornecidos pelos contribuintes! Não pode ser prejudicado no trabalho,
nem na progressão das carreiras.
Curiosamente, as diretivas de
proteção a denunciantes excluem o segredo de Estado. Isto é, os poderes que
determinam o essencial da vida das sociedades, a guerra e a paz, a morte de
milhões de seres humanos, não podem ser denunciados e quem os denuncie é
severamente punidos, como o caso Assange/Wikileaks e o caso Edward Snowden
demonstram. Para os Estados o bom denunciante é aquele que lhe permite
arrecadar mais impostos, controlar fluxos financeiros e, especialmente, atacar
poderes emergentes que ponham em causa o domínio da clique (a fração reinante,
em termos marxistas) instalada.
Em claro, entendo que a exposição
dos crimes de Estado como o fizeram Assange e Snowden são um serviço à
humanidade que não se pode defender do incomensurável poder do Estado imperial
e não sujeito à lei, a nenhuma lei a não ser a da força; e entendo que
denunciantes como Rui Pinto de negócios e lutas entre fações e oligarquias pelo
poder – caso de Angola com os Luandaleaks – e entre gangues, como os futeboleaks,
são atos de chantagem que correram mal ao chantagista, que pretende agora a
proteção do estatuto de denunciante e até quase uma beatificação, uma
condecoração e um emprego bem remunerado nas burocracias do Estado!
Já agora podia ser autorizado a
entregar os cartões do euromilhões à quarta-feira e ao sábado!
Uma nota pessoal: enquanto
militar conheci alguns “denunciantes” forçados – guerrilheiros aprisionados que
foram obrigados a denunciar as localizações das bases dos seus camaradas. Tive
e tenho por esses homens obrigados a denunciar o maior respeito. Mas estávamos
em guerra e com todas as chagas que ela abre. Não tenho qualquer respeito por
quem vende denúncias para obter lucro e se faz de vítima porque a coisa correu
mal.
Há, pelos vistos, quem abençoe
este benemérito e se reveja nele. Dizia Goethe: “Vemos o mundo com que temos no
coração”. Isto é, vemos os outros como nós somos. Há quem o promova a santo
soprador e padroeiro da anticorrupção. Cada um come do que gosta.
Os denunciantes devem ter um
estatuto? O Estado de Direito deve conceder um estatuto aos denunciantes?
Denunciante é uma categoria de servidor público? O denunciante deve merecer
retribuição?
Durante a guerra havia esse
estatuto: se te apresentares com a tua arma ganhas 1 e 500 escudos e recebes
uma palhota.
*Por opção do autor, este artigo
respeita o AO90
* Militar, investigador de
história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz
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