Martinho Júnior, Luanda
OPORTUNA REINTERPRETAÇÃO
SUSCITADA POR ESTE 4 DE FEVEREIRO DE 2020
Há um abismo entre os conceitos
de guerra e de luta, em particular quando essa luta é de libertação nacional,
com toda a carga de dignidade e legitimidade que ela envolve, implicando-se com
a vida e com a própria história!
Decerto que as abordagens sobre a
guerra, sendo limitadas, estão muito longe de ter a percepção que no outro lado
do “front”, é o homem total, com uma outra visão da vida, valorizando-a
num colectivo, que se eleva aos limites das suas mais sagradas esperanças e
aspirações.
O colonialismo português e
o “apartheid”, por muito baixa intensidade que fosse a guerrilha, estavam
condenados à derrota, pelo que a percepção da derrota apenas tardou aos que
fizeram a guerra do lado errado da história!
São ainda hoje os conceitos da
NATO que toldam essa percepção em benefício de equivocados expedientes de
assimilação e por isso esse diálogo de surdos entre o norte e o sul situa-se no
desnorte duma “civilização” que afinal não passa de máscara da
própria barbárie!…
CONTINUAÇÃO
4- Com o Exercício Alcora já em
pleno funcionamento, a tese da internacional-fascista na África Austral
determinou o regime de Marcelo Caetano a “esmerar” além do mais a
estratégia militar e de inteligência em Angola e Moçambique, ao mesmo tempo que
introduzia apropriados “pacotes” integrados na economia, nas finanças
e no conjunto das alianças internacionais (“redes stay behind” da NATO,
utilizando o manancial consubstanciado pelo “Le Cercle”, sua ideologia e
suas integradas transnacionais mineiras, incluindo o cartel de diamantes, assim
como pressupostos do Pacto Ibérico, entre Salazar e Franco).
A continuação do esforço militar
e de inteligência colonial-fascista, era de antemão inglório, pois o isolamento
internacional (inclusive no quadro da ONU), era já um facto politicamente
consumado e praticamente irreversível.
A introdução duma nova filosofia,
doutrina, ideologia e prática pelo colonial-fascismo em função dos enlaces
propiciados pelo Exercício Alcora (e Pacto Ibérico), determinou um novo quadro
de contraguerrilha visando a sua contenção, a sua circunscrição e, em casos de
resistência, o seu aniquilamento (Despacho conjunto dos Ministro da Defesa e do
Ultramar, de 7 de Outubro de 1970 para as 3 frentes – Guiné, Leste de Angola –
Moçambique), mas não impediu “os ventos da história”:
. A “Directiva Angola em
Armas” foi aplicada a Angola, sob a égide do general Costa Gomes, que
havia chegado a Angola (proveniente de Moçambique), em nova comissão de
serviço, a 3 de Maio de 1970;
. Nela dava-se prioridade máxima
para “a conquista das populações”, procurando atraí-las à causa colonial
na disputa contra a guerrilha do MPLA;
. Priorizava-se ainda nesse
quadro, a integração de procedimentos civis e militares nas acções de ordem
estratégica e tática-operativa, a desenvolver de forma a garantir uma muito
maior intensidade e coordenação interna à manobra das contramedidas da tese
colonial-fascista;
. Criou-se para o efeito, o
Conselho Provincial de Contra Subversão (CPCS) tendo como coordenador o
Governador Provincial Rebocho Vaz (que esteve no cargo de 1966 a 1972),
coadjuvado pelo Comandante Geral das Forças Armadas em Angola (general Costa
Gomes);
. Criou-se a (sub) Directiva
Geral Angola em Armas, lançada a 30 de Março de 1968 (definindo zonas militares
com seus sectores e áreas militares com suas zonas, ali onde era impossível a
actividade politica-administrativa);
. Fez-se surgir a Área Militar 1,
(na Zona Militar Norte), incidindo particularmente sobre a 1ª Região Política
Militar, visando passar do cerco, circunscrição e infiltração, para a sua
asfixia e diluição de sua ameaça;
. Reforçou-se as competências do
Comandante da Zona Militar Leste (ZML) de 1971 a 1973 (tarefa do general
Bettencourt Rodrigues), a fim de lhe permitir planear, coordenar, dirigir e
impulsionar a actividade tática operacional, em paralelo com o processamento de
dados, acções de informação, contrainformação, análise, assim como pesquisa de
informação, acções de contrassubversão, acções psicológicas e acções de
segurança, numa apurada base de contrapropaganda;
. Criou-se na ZML um Conselho
Especial de Contrassubversão a fim de gerir as manobras do novo quadro de
contramedidas, desde a perspectiva do foco de sua incidência no sentido de
atracção e controlo de populações e comunidades;
. Reorganizou-se interna e
externamente, procurando voltar a ganhar a iniciativa perdida principalmente a
Leste (ZML para os dispositivos colonial-fascistas em Angola);
. Utilizou-se movimentos
rápidos em intervenções utilizando a Força Aérea, as Forças Especiais
(comandos, paraquedistas e fuzileiros) articuladas com apoios terrestres, os
apoios aéreos, os apoios fluviais, as novas comunicações e as Forças Auxiliares
aferidas ao terreno e à tipologia dos desafios e riscos;
. Vulnerabilizou-se a produção
alimentar indispensável à logística da guerrilha e comunidades afectas,
obrigando à penúria, ao abandono dos lugares escolhidos para sua implantação, à
fuga, ou à sua captação em novos aldeamentos que em termos de contrapropaganda
passaram a ser as “sanzalas da paz”;
. Desenvolveu-se a rede de
estradas nas áreas afectadas pela pressão da guerrilha (auxílio dos Fieis
catangueses e ds Leais, zambianos barotses, no Leste), assim como
construíram-se novas pistas para a aviação (na ZMN os terreiros do café permitiam
pistas para a aviação tática com a utilização de aviões ligeiros e
helicópteros).
5- Na 1ª Região Política e
Militar do MPLA (Dembos e vale do Zenza) constatei a asfixia por via de minha
actuação no destacamento de Santa Clara ao nível de um pelotão da CCAÇ 1204,
entre 1971 e 1974 (provas recolhidas em função dos Destacamentos Deolinda e
Tala Hady, da Zona C da 1ª RPM, segundo mobilizações das aldeias do Combe, do
Esso e do Cage-Mazumbo):
. Exaustão da capacidade tática
operativa acompanhada de exaustão dos combatentes e comunidades civis nas
matas, até ao ponto de ficarem entregues à sua sorte, à miséria, à fome e à
compulsiva desnutrição e morte das crianças;
. Impossibilidade de ligação ou
conexão da 1ª RPM aos vínculos do MPLA no interior (Luanda) e no exterior;
. Infiltrações de agentes dos
SCCIA, da PIDE/DGS e dos Serviços de Informações Militares na direcção da CCAÇ
1204, sobre alvos civis da área do café (agentes entre fazendeiros e
comerciantes) e sobre os Destacamentos da Zona C da 1ª RPM localizados junto à
margem direita do rio Zenza, a fim de diluir os restos da guerrilha;
. Pressões de quadrícula,
contrapropaganda e acção psicológica sobre as unidades de mobilização angolana
(no caso da 1204 proveniente do Regimento de Infantaria nº 21 sedeado no
Huambo), com emprego de forças muito superiores de mobilização portuguesa e
Serviços de Inteligência Militar, a fim de as controlar de perto;
. Destruição das lavras que
garantiam a logística dos Destacamentos da 1ª RPM;
. Caça aos guerrilheiros nas
áreas das fazendas a fim de tentar capturá-los, assim como aos civis afectos
que procurassem comida para sustento nas matas (diluição da ameaça, tirando
proveito da asfixia);
. Malha muito apertada da
quadrícula militar de ocupação, impedindo ao máximo a circulação dos diversos
tipos de ameaça;
. Malha muito apertada dos SCCIA,
por via das autoridades político-administrativas e seus enquadramentos,
desenvolvendo os planos “aliciantes” de “sanzalas da paz”;
. Malha muito apertada de fortins
(kibutz) nas fazendas de café e nas aldeias sob controlo colonial-fascista,
fortins adstritos à OPVDCA, à Guarda Rural, assim como às unidades
paramilitares de Tropas Especiais de recrutamento local, algo que passou a constituir
uma arma psicológica fluente, em termos de contrapropaganda;
. Malha muito apertada da
PIDE/DGS (Caxito, Quibaxe, N’Dalatando e Catete), com múltiplas redes de
agentes nas fazendas, nos comércios a retalho, nas populações e dentro das
matas (infiltrando a guerrilha e provocando a sua neutralização até à asfixia,
diluição e extinção);
. Malha muito apertada de
estradas rurais (aproveitando as fazendas de café) e de pistas de aviação para
aeronaves de pequeno porte (na extensão dos terreiros das fazendas de café);
. Construção de estradas
militares (“Via Láctea”, “Centauros” e picada Conda, a norte e a sul
das margens do rio Zenza), possibilitando o movimento militar discreto, a
instalação de peças de artilharia, o movimento das pequenas aeronaves (entre
elas as Dornier 27 e as Auster, para além dos helicópteros Alouette III), entre
muitas outras acções operativas; as estradas militares assim construídas não
vinham identificadas nos mapas e eram descritas como “picadas de caça”;
. Trabalho ideológico intenso em
termos de acção psicológica, propaganda e contrapropaganda sobre todas as
comunidades e por via de todo o tipo de enredos, influências, manipulações e
conveniências.
6- A velocidade dos
acontecimentos e a intensidade da luta armada, assim como o empenhamento
político-diplomático do próprio MPLA, impediram em parte ao muito diminuto
fulcro dos que seguiram o espírito e a letra do pensamento dialético e
estratégico de Agostinho Neto, a prestar uma atenção maior aos contraditórios
internos, desde a Revolta de Viriato da Cruz, à eclosão do “nitismo” que
desencadeou a tentativa do sangrento golpe de estado a 27 de Maio de 1977, no
sentido de tentar evitar cisões, ou chegar-se a uma melhor plataforma interna
de entendimento, apaziguamento e de gestação de consensos.
O “nitismo” subsistiu
oportunisticamente, em função do contraditório com tensões próprias entre o Não
Alinhamento Activo e o Pacto de Varsóvia (com a URSS à cabeça), abrindo-se a
díspares correntes que integravam desde factores inerentes a revoltas
anteriores no MPLA, a pequenas correntes urbanas indexadas ao trotsquismo, a
Enver Hoxa e a outros…
Tirou discretamente partido de
alinhamentos próximos ao “spinolismo” (lembre-se a tese neocolonial
de “Portugal e o Futuro”) e a correntes “à sua direita” (lembre-se
a expressão do ELP e dos que desencadearam entre 1975 e 1977 o “verão
quente” em Portugal, como haviam integrado também a FNLA, sob a égide do
oficial comando Santos e Casto, no âmbito da operação Iafeature, a Operação da
CIA contra Angola, sob mando de Henry Kissnger, sincronizada com a Operação
Savannah do “apartheid”, numa “border war” que afinal chegava a
Luanda).
O “nitismo”, enquanto
contraditório interno do MPLA que se abriu em osmose a contraditórios
anteriores e se foi radicalizando logo a seguir ao 11 de Novembro de 1975 até
desembocar na sangrenta tentativa do golpe de estado do 27 de Maio de 1977, é a
prova mais provada de que o pensamento dialético e estratégico de Agostinho
Neto havia sido todo ele elaborado fora do âmbito da Guerra Fria, fugindo
também aos conceitos dilectos e até hoje em vigor da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (NATO)!
7- Face ao pensamento dialético e
estratégico de Agostinho Neto no estrito âmbito do Não Alinhamento Activo, os
componentes do Exercício Alcora tiraram partido das leituras típicas dos
conceitos inerentes à NATO, no âmbito da Guerra Fria, tal como muitos dos
seus “herdeiros” e “sucessores”.
É assim que, não se levando em
conta o insuficiente fornecimento de armamento na época (sobretudo material de
guerra antiaéreo), alguns proclamaram “a vitória militar no Leste”, quando
já haviam perdido a nível internacional e a nível de suas próprias
universidades, a batalha política na tentativa de romper o profundo isolamento
internacional a que já estavam votados, ainda que o “Le Cercle” fosse
utilizado pela NATO, no âmbito de suas próprias “redes stay behind”, como
último “balão de oxigénio” e bastião de rectaguarda internacional
(que seria por exemplo importante enquanto manancial e instrutivo para o
desencadear da Operação Condor na América Latina ed golpe sangrento de Pinochet
no Chile, a 11 de Setembro de 1973)!
O recuo da guerrilha n leste de
Angola, não diminuiu a capacidade operativa do MPLA, conforme atesta aliás a
Proclamação das FAPLA, a 1 de Agosto de 1974!
A pertinaz manutenção de
fidelidade ao Movimento Não Alinhado, além desse recuo militar no leste
(1970/1974) e a proliferação de revoltas internas (Revolta Activa, Revolta do
Leste e Revolta de Chipenda), haveria de custar mais tarde o retardamento da vitória
contra as South Africa Defence Forces (SADF) do regime do “apartheid”.
O “nitismo”, no espectro que
comportou, foi também uma tentativa de que a luta contra o “apartheid” na
África Austral tivesse levado outro rumo…
… “No terreno” e com
efeito, só quando a superioridade aérea foi garantida em toda a Frente Sul
durante a batalha de Cuito Cuanavale em 1987 e 1988 (que se desenrolou desde a
margem esquerda do rio Cunene até à fronteira marcada pelos rios Cuando
(afluente da bacia do Zambeze) e Cubango, foi possível, em função do golpe de
mão da aviação de ataque em Calueque, levar finalmente o “apartheid” a
uma mesa de negociações a partir da qual “foi ao tapete”, sem mais
retorno!
A pírrica vitória militar no
leste, uma “vitória” que politicamente não houve, continua a
alimentar a visão “atlantista” da NATO (e sua imagética ainda à
sombra dos conceitos de Guerra Fria), a visão “psicossocial” de
saudosistas do passado colonial (alguns dos quais continuando a argumentar
que “Angola é Nossa”, ainda que nos “novos” moldes de
assimilação neocolonial e em função do capitalismo neoliberal) e a visão dos
que têm sido dominantes nos governos que em Portugal se sucederam até hoje ao
golpe do 25 de Novembro de 1975 (14 dias apos a data da independência de
Angola)!...
Deliberadamente arrasta-se
assim, “limpando a história” e levando até onde for possível, a visão
camoniana da “dilatação da fé e do império”, (tão oportuna como “alimento” ideológico
em pleno século XXI), uma “vitória” colonial-fascista que nunca houve,
também para que hoje prevaleça a leitura de conveniência à assimilação no
âmbito da globalização neoliberal e neocolonial, via NATO, via AFRICOM e
via “transversalidades” da Organização das Nações Unidas, ao sabor do
império da hegemonia unipolar e seus vassalos da “civilização judaico-cristã
ocidental”!
FIM
Martinho Júnior -- Luanda, 9 de
Fevereiro de 2020
Imagens da Frente Leste do MPLA
(3ª e 4ª RPM) e a primeira bandeira de Angola independente, içada a 11 de
Novembro de 1975.
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