domingo, 16 de fevereiro de 2020

O terrorismo e a mãe de todas as mentiras

A 3 de Janeiro de 2020, em Bagdade, Iraque, o general Qassem Soleimani, comandante da Guarda Revolucionária do Irão e o maior inimigo operacional do Daesh (dito Estado Islâmico) e da Al-Qaeda, foi assassinado durante um ataque ordenado por Donald Trump, presidente dos EUA - AP Photo/ Evan Vucci/Office of the Iranian Supreme Leader

Suspeitava-se de que assim era, mas o apuramento mais pormenorizado de factos e circunstâncias confirmam-no: uma mentira esteve na base da recente escalada de violência no Médio Oriente.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

Uma mentira esteve na base da recente escalada de violência no Médio Oriente que culminou com o assassínio do general iraniano Qasem Soleimani. Suspeitava-se de que assim era, mas o apuramento mais pormenorizado de factos e circunstâncias confirmam-no. O mainstream global evita abordar os acontecimentos segundo este novo ângulo – apesar de o New York Times o ter feito – porque seria obrigado a substituir toda a conveniente narrativa montada. Porém, o que na realidade aconteceu foi: os terroristas do Estado Islâmico realizaram a operação que serviu de pretexto a Trump e ao Pentágono para assassinarem o maior inimigo do Estado Islâmico – e da al-Qaeda.

Há uma mentira fundadora da torrente de falsidades que acompanhou a escalada desencadeada pelos Estados Unidos contra o Irão e o Iraque no início do ano. Serviços militares iraquianos, entre eles o sector de inteligência, explicam que era impossível um grupo armado xiita como o Khataeb Hezbollah, qualificado como «pró-iraniano», ter sido o autor do ataque de 27 de Dezembro contra a base norte-americana K-1 na província iraquiana de Kirkuk.

Citado pelo New York Times, o brigadeiro general iraquiano Ahmed Adnan afirma que «todas as indicações vão no sentido de ter sido o Daesh», ou Isis, ou Estado Islâmico, a realizar a operação. «Nós próprios, como forças iraquianas, não podemos sequer entrar na área de onde foi feito o ataque a não ser com forças de envergadura, porque não é seguro», acrescenta. «Como poderia um grupo xiita, que não conhece a zona, chegar ao local, tomar posições e desencadear o ataque»?

Os pressupostos da confirmação do militar iraquiano são simples, elementares mesmo. A zona de onde foi lançado o ataque com rockets contra a base K-1 situa-se numa região de população sunita controlada pelo Estado Islâmico. Não há conhecimento de qualquer presença de grupos armados xiitas na área desde 2004. Os militares iraquianos tinham, entretanto, informado as tropas norte-americanas de ocupação de que havia um recrudescimento das actividades do Estado Islâmico durante as semanas que antecederam o ataque. Além disso, a viatura pickup de onde foram lançados os rockets foi encontrada a 300 metros de um local onde membros deste grupo procedem a execuções.

Todas as circunstâncias apontam no mesmo sentido: só poderia ter sido o Estado Islâmico a atacar a base norte-americana.


Enxurrada de mentiras

Desse ataque, segundo as fontes oficiais de Washington, terá resultado a morte de um civil norte-americano de uma empresa contratada pelo Pentágono, possivelmente um mercenário; e quatro militares teriam ficado feridos. Na realidade, nem estas informações podem ser dadas como adquiridas, porque as identificações da vítima mortal e dos feridos nunca foram divulgadas.

Segundo a versão oficial do Pentágono, dada a conhecer imediatamente após o ataque, a operação foi realizada por forças paramilitares xiitas do grupo «pró-iraniano» Khataeb Hezbollah, organização que integra as Forças Populares de Mobilização, todas elas associadas à maioria parlamentar que apoia o governo do Iraque.

No dia 28 de Dezembro, como «resposta» à acção, os Estados Unidos realizaram ataques aéreos contra bases do Khataeb Hezbollah na Síria e no Iraque, matando dezenas de pessoas.

As operações geraram uma onda de indignação em várias cidades iraquianas, principalmente em Bagdade, onde os manifestantes escolheram como alvo o edifício da Embaixada dos Estados Unidos, a maior e mais protegida do mundo.

E no dia 3 de Janeiro registou-se, nas imediações do aeroporto de Bagdade, o assassínio do general iraniano Qasem Soleimani e de Abul Mahdi al-Muhandis, vice-presidente das Forças Populares de Mobilização. A ordem para matar foi dada pessoalmente por Donald Trump e a operação significou a realização de actos de guerra contra os governos do Irão e do Iraque.

O presidente dos Estados Unidos declarou publicamente que mandou matar Soleimani «por ser o responsável pelo ataque de 27 de Dezembro» contra a base de Kirkuk e por estar «a preparar ataques iminentes contra embaixadas norte-americanas».

Quanto ao ser «responsável pelo ataque» de dia 27, já se percebeu tratar-se de uma redonda mentira. Ao invés, o chefe do regime de Washington assassinou o principal inimigo operacional de grupos terroristas como o Estado Islâmico e a al-Qaeda, usando como pretexto um ataque cometido pelo Estado Islâmico e cujas supostas vítimas permanecem anónimas.

Acresce que o presidente norte-americano não apresentou, até hoje, uma única prova de que estariam em preparação «ataques iminentes» contra embaixadas dos Estados Unidos, apesar de ter sido instado a fazê-lo por jornalistas e membros do Congresso.

Mais recentemente, no discurso sobre o estado da União proferido há uma semana, Donald Trump ufanou-se de ter «destruído o Estado Islâmico a cem por cento» – uma declaração desmentida pelas realidades que continuam a viver-se na Síria, no Iraque, no Afeganistão e mesmo na Líbia.

Se um dos objectivos desta coxíssima peta foi o de dar a entender que, uma vez «destruído», o Estado Islâmico não poderia ter sido o autor do ataque contra a base em Kirkuk o presidente norte-americano passou da mentira à falta de senso do ridículo – no que é acompanhado pelos media que continuam a dar-lhe crédito.

Terrorismo, o fulcro da questão

Conhece-se o epílogo desta escalada bélica do início do ano, o que não significa o fim das mentiras que a marcaram.

O Irão respondeu ao assassínio de Soleimani atacando duas bases norte-americanas ocupadas no Iraque; e no rescaldo da operação a anti-aérea iraniana abateu «por engano» um avião civil ucraniano. Uma acção que, apesar das admissões de Teerão, não está isenta de dúvidas e suspeitas sobre a eventual existência de pirataria informática externa na manipulação dos sistemas de defesa iranianos.

O que resultou da crise, com efeitos no presente e no futuro, foram novas sanções impostas contra o Irão, o fim do acordo internacional sobre o sistema nuclear civil iraniano – uma vez que as potências europeias se renderam, uma vez mais, às chantagens de Washington – e o aprofundamento da crise social e política no Iraque.

Este aspecto é de grande importância para todo o Médio Oriente se for lido à luz das denúncias feitas no Parlamento de Bagdade pelo ex-primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi. Na ocasião, citou conversas que manteve com Trump nas quais o presidente dos Estados Unidos lhe comunicou que a agitação social interna iria continuar, com incentivos de Washington, e que as tropas norte-americanas permanecerão se o governo iraquiano não cancelar o recente acordo com a China sobre a reconstrução do país.

Chega-se assim a uma das questões centrais relacionadas com os mais recentes desenvolvimentos no Médio Oriente. Os Estados Unidos, através do seu aparelho militar – e o da NATO – propõem-se fazer tudo para travar a crescente influência da China e da Rússia na região, designadamente na Síria, no Iraque, no Irão, inclusivamente na Arábia Saudita – o maior fornecedor de petróleo de Pequim.

Fazer tudo significa manter latente e activo, como braço armado, o terrorismo dito islâmico, que não é mais do que um exército mercenário informal em mobilidade através da região, coberto sob uma miríade de bandeiras que se resumem a duas – Estado Islâmico e al-Qaeda –, cumprindo objectivos de guerra e desestabilização.

No Iraque existe um claro recrudescimento do Estado Islâmico no quadro da política de «contenção da influência iraniana»; na Líbia actuam milhares de mercenários que já estiveram na Síria e foram transferidos sob a égide da Turquia para travar quaisquer esforços de solução pacífica da guerra civil.

E na Síria voltam a estar muito em evidência as conexões entre o terrorismo e a NATO através dos esforços que estão a ser desenvolvidos militarmente pela Turquia para impedir que as tropas regulares sírias libertem Idlib, o derradeiro bastião da al-Qaida no país.

Por isso, todas as mentiras que Trump e o Pentágono despejam em enxurrada de crise em crise, de episódio em episódio, convergem na mãe de todas as mentiras: a chamada «guerra global contra o terrorismo».

Não há guerra dos Estados Unidos e da NATO contra o terrorismo; há uma guerra feita de várias guerras regionais travada de braço dado com o «terrorismo islâmico», essa mezinha mágica da dominação imperial que começou a ser aplicada nos anos setenta e oitenta do século passado no Afeganistão e continua a ser usada contra os governos que se recusam a seguir a bússola de Washington. A NATO serviu-se do terrorismo para assassinar Khaddafi na Líbia e destroçar o país, da mesma maneira que a Turquia acode agora à al-Qaida na Síria interpretando os anseios da aliança, como Trump mandou matar o mais capacitado operacional do autêntico combate ao terrorismo servindo-se de uma operação montada com a colaboração dos terroristas do Estado Islâmico.

Quem é capaz de mentir sobre o flagelo do terror que acossa centenas de milhões de pessoas não hesitará em mentir sobre tudo o resto.

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