A 3 de Janeiro de 2020, em
Bagdade, Iraque, o general Qassem Soleimani, comandante da Guarda Revolucionária
do Irão e o maior inimigo operacional do Daesh (dito Estado Islâmico) e da
Al-Qaeda, foi assassinado durante um ataque ordenado por Donald Trump,
presidente dos EUA - AP Photo/ Evan Vucci/Office of the Iranian
Supreme Leader
Suspeitava-se de que assim era,
mas o apuramento mais pormenorizado de factos e circunstâncias confirmam-no:
uma mentira esteve na base da recente escalada de violência no Médio Oriente.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Uma mentira esteve na base da
recente escalada de violência no Médio Oriente que culminou com o assassínio do
general iraniano Qasem Soleimani. Suspeitava-se de que assim era, mas o apuramento
mais pormenorizado de factos e circunstâncias confirmam-no. O mainstream global
evita abordar os acontecimentos segundo este novo ângulo – apesar de o New
York Times o ter feito – porque seria obrigado a substituir toda a
conveniente narrativa montada. Porém, o que na realidade aconteceu foi: os
terroristas do Estado Islâmico realizaram a operação que serviu de pretexto a
Trump e ao Pentágono para assassinarem o maior inimigo do Estado Islâmico – e
da al-Qaeda.
Há uma mentira fundadora da
torrente de falsidades que acompanhou a escalada desencadeada pelos Estados
Unidos contra o Irão e o Iraque no início do ano. Serviços militares
iraquianos, entre eles o sector de inteligência, explicam que era impossível um
grupo armado xiita como o Khataeb Hezbollah, qualificado como «pró-iraniano»,
ter sido o autor do ataque de 27 de Dezembro contra a base norte-americana K-1
na província iraquiana de Kirkuk.
Citado pelo New York Times,
o brigadeiro general iraquiano Ahmed Adnan afirma que «todas as indicações vão
no sentido de ter sido o Daesh», ou Isis, ou Estado Islâmico, a realizar a
operação. «Nós próprios, como forças iraquianas, não podemos sequer entrar na
área de onde foi feito o ataque a não ser com forças de envergadura, porque não
é seguro», acrescenta. «Como poderia um grupo xiita, que não conhece a zona,
chegar ao local, tomar posições e desencadear o ataque»?
Os pressupostos da confirmação do
militar iraquiano são simples, elementares mesmo. A zona de onde foi lançado o
ataque com rockets contra a base K-1 situa-se numa região de
população sunita controlada pelo Estado Islâmico. Não há conhecimento de
qualquer presença de grupos armados xiitas na área desde 2004. Os militares
iraquianos tinham, entretanto, informado as tropas norte-americanas de ocupação
de que havia um recrudescimento das actividades do Estado Islâmico durante as
semanas que antecederam o ataque. Além disso, a viatura pickup de
onde foram lançados os rockets foi encontrada a 300 metros de um
local onde membros deste grupo procedem a execuções.
Todas as circunstâncias apontam
no mesmo sentido: só poderia ter sido o Estado Islâmico a atacar a base
norte-americana.
Enxurrada de mentiras
Desse ataque, segundo as fontes
oficiais de Washington, terá resultado a morte de um civil norte-americano de
uma empresa contratada pelo Pentágono, possivelmente um mercenário; e quatro
militares teriam ficado feridos. Na realidade, nem estas informações podem ser
dadas como adquiridas, porque as identificações da vítima mortal e dos feridos
nunca foram divulgadas.
Segundo a versão oficial do
Pentágono, dada a conhecer imediatamente após o ataque, a operação foi
realizada por forças paramilitares xiitas do grupo «pró-iraniano» Khataeb
Hezbollah, organização que integra as Forças Populares de Mobilização, todas
elas associadas à maioria parlamentar que apoia o governo do Iraque.
No dia 28 de Dezembro, como
«resposta» à acção, os Estados Unidos realizaram ataques aéreos contra bases do
Khataeb Hezbollah na Síria e no Iraque, matando dezenas de pessoas.
As operações geraram uma onda de
indignação em várias cidades iraquianas, principalmente em Bagdade, onde os
manifestantes escolheram como alvo o edifício da Embaixada dos Estados Unidos,
a maior e mais protegida do mundo.
E no dia 3 de Janeiro
registou-se, nas imediações do aeroporto de Bagdade, o assassínio do general
iraniano Qasem Soleimani e de Abul Mahdi al-Muhandis, vice-presidente das
Forças Populares de Mobilização. A ordem para matar foi dada pessoalmente por
Donald Trump e a operação significou a realização de actos de guerra contra os
governos do Irão e do Iraque.
O presidente dos Estados Unidos
declarou publicamente que mandou matar Soleimani «por ser o responsável pelo
ataque de 27 de Dezembro» contra a base de Kirkuk e por estar «a preparar
ataques iminentes contra embaixadas norte-americanas».
Quanto ao ser «responsável pelo
ataque» de dia 27, já se percebeu tratar-se de uma redonda mentira. Ao invés, o
chefe do regime de Washington assassinou o principal inimigo operacional de
grupos terroristas como o Estado Islâmico e a al-Qaeda, usando como pretexto um
ataque cometido pelo Estado Islâmico e cujas supostas vítimas permanecem
anónimas.
Acresce que o presidente
norte-americano não apresentou, até hoje, uma única prova de que estariam em
preparação «ataques iminentes» contra embaixadas dos Estados Unidos, apesar de
ter sido instado a fazê-lo por jornalistas e membros do Congresso.
Mais recentemente, no discurso
sobre o estado da União proferido há uma semana, Donald Trump ufanou-se de ter
«destruído o Estado Islâmico a cem por cento» – uma declaração desmentida pelas
realidades que continuam a viver-se na Síria, no Iraque, no Afeganistão e mesmo
na Líbia.
Se um dos objectivos desta
coxíssima peta foi o de dar a entender que, uma vez «destruído», o Estado
Islâmico não poderia ter sido o autor do ataque contra a base em Kirkuk o
presidente norte-americano passou da mentira à falta de senso do ridículo – no
que é acompanhado pelos media que continuam a dar-lhe crédito.
Terrorismo, o fulcro da questão
Conhece-se o epílogo desta
escalada bélica do início do ano, o que não significa o fim das mentiras que a
marcaram.
O Irão respondeu ao assassínio de
Soleimani atacando duas bases norte-americanas ocupadas no Iraque; e no
rescaldo da operação a anti-aérea iraniana abateu «por engano» um avião civil
ucraniano. Uma acção que, apesar das admissões de Teerão, não está isenta de
dúvidas e suspeitas sobre a eventual existência de pirataria informática
externa na manipulação dos sistemas de defesa iranianos.
O que resultou da crise, com
efeitos no presente e no futuro, foram novas sanções impostas contra o Irão, o
fim do acordo internacional sobre o sistema nuclear civil iraniano – uma vez
que as potências europeias se renderam, uma vez mais, às chantagens de
Washington – e o aprofundamento da crise social e política no Iraque.
Este aspecto é de grande
importância para todo o Médio Oriente se for lido à luz das denúncias feitas no
Parlamento de Bagdade pelo ex-primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi. Na ocasião,
citou conversas que manteve com Trump nas quais o presidente dos Estados Unidos
lhe comunicou que a agitação social interna iria continuar, com incentivos de
Washington, e que as tropas norte-americanas permanecerão se o governo
iraquiano não cancelar o recente acordo com a China sobre a reconstrução do
país.
Chega-se assim a uma das questões
centrais relacionadas com os mais recentes desenvolvimentos no Médio Oriente.
Os Estados Unidos, através do seu aparelho militar – e o da NATO – propõem-se
fazer tudo para travar a crescente influência da China e da Rússia na região,
designadamente na Síria, no Iraque, no Irão, inclusivamente na Arábia Saudita –
o maior fornecedor de petróleo de Pequim.
Fazer tudo significa manter
latente e activo, como braço armado, o terrorismo dito islâmico, que não é mais
do que um exército mercenário informal em mobilidade através da região, coberto
sob uma miríade de bandeiras que se resumem a duas – Estado Islâmico e al-Qaeda
–, cumprindo objectivos de guerra e desestabilização.
No Iraque existe um claro
recrudescimento do Estado Islâmico no quadro da política de «contenção da
influência iraniana»; na Líbia actuam milhares de mercenários que já estiveram
na Síria e foram transferidos sob a égide da Turquia para travar quaisquer
esforços de solução pacífica da guerra civil.
E na Síria voltam a estar muito
em evidência as conexões entre o terrorismo e a NATO através dos esforços que
estão a ser desenvolvidos militarmente pela Turquia para impedir que as tropas
regulares sírias libertem Idlib, o derradeiro bastião da al-Qaida no país.
Por isso, todas as mentiras que
Trump e o Pentágono despejam em enxurrada de crise em crise, de episódio em
episódio, convergem na mãe de todas as mentiras: a chamada «guerra global
contra o terrorismo».
Não há guerra dos Estados Unidos
e da NATO contra o terrorismo; há uma guerra feita de várias guerras regionais
travada de braço dado com o «terrorismo islâmico», essa mezinha mágica da
dominação imperial que começou a ser aplicada nos anos setenta e oitenta do
século passado no Afeganistão e continua a ser usada contra os governos que se
recusam a seguir a bússola de Washington. A NATO serviu-se do terrorismo para
assassinar Khaddafi na Líbia e destroçar o país, da mesma maneira que a Turquia
acode agora à al-Qaida na Síria interpretando os anseios da aliança, como Trump
mandou matar o mais capacitado operacional do autêntico combate ao terrorismo
servindo-se de uma operação montada com a colaboração dos terroristas do Estado
Islâmico.
Quem é capaz de mentir sobre o
flagelo do terror que acossa centenas de milhões de pessoas não hesitará em
mentir sobre tudo o resto.
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