“A vida em primeiro lugar, mas,
sem emprego, a sociedade enfrentará um problema tão grave quanto a doença: a
miséria”, regurgitou Bolsonaro. É mais uma ideia estúpida, sem nenhum sentido
lógico, que condiz plenamente com o que se espera do nosso futuro ex-presidente.
Ele fala como se a miséria já não
fosse um problema brasileiro. A sua existência não é só uma obviedade como vem
se intensificando com as políticas anti-pobre comandadas pelo seu governo,
principalmente as medidas ultraliberais de Paulo Guedes na economia. Todas as
políticas de enfrentamento da miséria, como Bolsa Família e o Benefício de
Prestação Continuada, o BPC, por exemplo, vêm sendo desidratadas. Para salvar o
caixa dos empresários durante a pandemia, o governo chegou a criar uma medida provisória
autorizando a suspensão de salários por quatro meses. Apesar da revogação desse
ponto, o texto continua ferrando o trabalhador: permite corte de 25% do
salário, sem redução de carga horária e sem seguro-desemprego.
Essa preocupação repentina com a
miséria expressa na fala do presidente, claro, é estratégia demagógica para
esconder a real intenção do governo: proteger os interesses das elites que
patrocinaram a eleição da extrema direita.
Seguindo uma estratégia anunciada
por Donald Trump, que desistiu dela no dia seguinte, Bolsonaro contrariou as
recomendações do seu ministro da Saúde e defendeu o chamado isolamento vertical
— apenas idosos e pessoas do grupo de risco seriam isolados, e o resto da
população poderia circular normalmente. A tese que move essa ideia é a de que
os impactos econômicos decorrentes do isolamento total causarão mais mortes
que o próprio coronavírus e, por isso, seria necessário encontrar um
equilíbrio. A experiência de outros países mostra como essa ideia é
estapafúrdia. Desde o início da epidemia na China, o governo brasileiro teve
dois meses para analisar quais medidas deram certo no mundo. A medida mais
óbvia, que virou um consenso entre os epidemiologistas do mundo, é justamente o
isolamento horizontal (total).
Todos os países que adiaram o
isolamento total da população demoraram mais para conter o avanço da
contaminação. A Itália inicialmente testou o isolamento vertical, mas desistiu
quando viu o vírus se espalhando com muito mais rapidez do que nos países que
adotaram o isolamento horizontal. O prefeito de Milão, na Itália, reconheceu que errou ao apoiar a campanha “Milão não
para”, que incentivava os moradores da cidade a viverem normalmente, mesmo com
a pandemia. Segundo ele, há um mês “ninguém ainda havia entendido a virulência
do vírus”.
Nas redes sociais, os
bolsonaristas encamparam campanha de nome parecido: #OBrasilNãoVaiParar. A hashtag é o lema de uma campanha
publicitária na qual o governo federal está investindo R$ 4,8 milhões. Supostamente preocupado em
combater a miséria, Bolsonaro irá incentivar os brasileiros a voltar à vida
normal, o que, na prática, levará muitos deles à morte.
A negligência dos italianos levou o sistema de saúde do
país entrar em colapso e tornar o país líder no ranking de mortos pela
doença. Bolsonaro tem plena ciência do fracasso dessas medidas e, mesmo assim,
pretende adotá-las. As vidas que poderiam ser perdidas com o isolamento
vertical entrariam na conta como mero efeito colateral de uma nobre ação para
salvar a economia. Isso tem nome: necropolítica.
“A vida vem em primeiro lugar,
mas” é uma frase de quem não considera a vida humana um valor absoluto. Claro,
nós estamos falando do político que faz arminha com a mão, que revela
publicamente seu desejo de metralhar adversários políticos e que disse que a
ditadura militar deveria ter matado uns 30 mil. A frase soa como se a economia
não fosse uma atividade humana, mas um deus a ser louvado e protegido, assim
como seus apóstolos – os grandes empresários. A vida em primeiro lugar, mas o
deus mercado acima de todos. Esse deus não se importa em sacrificar vidas para
se proteger. Ainda mais se forem das pessoas mais vulneráveis às complicações
do vírus, como as idosas, que participam menos da atividade econômica, ou de
pobres, cuja mão de obra pode ser facilmente substituída pela de milhões de
outros pobres desempregados. Existe uma lógica genocida por trás da fabricação
desse falso dilema.
Há também uma lógica anticiência.
Acaba de ser divulgado um estudo de economistas do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts e do FED (o banco central americano) sobre a pandemia da
gripe espanhola em 1918. A conclusão é a de que as cidades que tomaram medidas
drásticas mais cedo, como o isolamento total, além de reduzirem o número de
mortos, tiveram suas economias menos prejudicadas em comparação com as que não
tomaram. Não sejamos ingênuos imaginando que uma pesquisa patrocinada pelo
governo americano convencerá Bolsonaro. Em tempos de terraplanismo no poder,
uma pesquisa científica tem praticamente o mesmo valor que um vídeo circulando
no WhatsApp de um médico picareta chamando o coronavírus de “gripezinha”.
Preocupados em conter maiores
perdas das suas fortunas, vários grandes empresários e pastores aproveitaram
a quarentena para gravarem vídeos demonstrando seu desapego à vida (alheia)
humana. Roberto Justus, por exemplo, se colocou radicalmente contra o
isolamento total, apelando para o falso dilema. Junior Durski, da rede de
restaurantes Madero, também disse que “não podemos parar por conta de cinco ou
sete mil pessoas que vão morrer”. Na ânsia de proteger seus negócios, o
empresariado brasileiro ignora a experiência internacional, a ciência e coloca
a vida humana em uma célula de Excel. As mortes de cinco ou sete mil idosos ou
pessoas já acometidas por outras doenças não causarão nenhum impacto no mercado
de trabalho. É esse o tipo cálculo que é feito por mentes perturbadas que
acreditam possível que uma sociedade doente seja produtora de uma economia
pujante.
Desde o início da pandemia, está
claro que Bolsonaro age norteado pela missão de proteger suas bases eleitorais.
Isso ficou ainda mais evidente quando, em reunião online com o governador João
Doria para tratar da pandemia, o presidente decidiu lavar a roupa suja da
última eleição com seu ex-aliado. Tanto a MP que ajuda os empresários quanto o
decreto que liberou os cultos religiosos mostram que a prioridade do governo
durante a pandemia é a contenção dos danos nos lucros de empresários e
pastores. Enquanto as principais ações tomadas pelos governos no mundo —
inclusive nos EUA de Trump — para conter o aprofundamento da crise foram no
sentido de ajudar os mais pobres, aqui foram para ajudar os bancos e o alto empresariado.
Depois do presidente defender o
isolamento vertical, o vice-presidente, Hamilton Mourão, correu para desmenti-lo e disse que a posição do governo é uma só:
isolamento social e confinamento em massa. Bolsonaro, claro, não deixou por
menos e declarou “o presidente sou eu. Os ministros seguem
minhas recomendações”. Disse ainda que o ministro da Saúde já está convencido
de que o isolamento vertical é a melhor estratégia. Esse bate-cabeça é uma
síntese de como o presidente trata a epidemia: na base do improviso, negando a
ciência, relativizando vidas humanas, mas sempre protegendo os interesses dos
mais ricos.
The Intercept Brasil | João Filho | Imagem: Mauro Pimentel/AFP
via Getty Images
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