Crescem os sinais de que Trump,
ameaçado pela crise econômica e sanitária, pode buscar salvação num conflito
externo – contra a Venezuela. E de que Bolsonaro, com quem se encontrou há
dias, pretende envolver o Brasil nesta aventura insana
José Luís Fiori e William
Nozaki | Outras Palavras
Em momentos como este, é bom
lembrar aos “cruzados” uma velha lição da história, a respeito das “guerras
santas”, entre pequenos “peões militares” terceirizados pelas grandes
potências: depois que começam, elas não costumam ter fim. -- J.L. Fiori,
Geopolítica e Fé, JB, janeiro de 2019
Basta ligar dois pontos para
desenhar uma reta. Mas no caso da economia brasileira, são muitos pontos numa
mesma direção, apesar de que as autoridades insistam em desconhecê-lo,
iludindo-se com a ideia de uma “retomada” que nunca existiu e nem nunca esteve
no horizonte. Tudo isso muito antes e independentemente da epidemia de
coronavírus, da guerra de preços do petróleo e da recessão mundial que deverá
ocorrer piorando a situação. De forma que hoje, a única dúvida que existe é se
o desastre a frente assumirá a forma de uma estagnação prolongada, acompanhada
da destruição da indústria e de seu mercado de trabalho, ou a forma pura e
simples de um colapso, com a desintegração progressiva da infraestrutura, dos
serviços públicos e do próprio tecido social.
Tudo isto se reflete no
crescimento pífio do PIB brasileiro dos últimos três anos, mas muito mais ainda
no declínio continuado da taxa de investimento da economia, que era de 20,9% em
2013, e que hoje é de 15,4%, a despeito do golpe de Estado, da reforma
trabalhista, da reforma da previdência e das privatizações. Ao contrário do
prometido, a economia não só não cresceu, como aumenta a cada dia a “fuga de
capitais”, que nos últimos três meses já é maior do que em todo o ano de 2019.
A esperança depositada nos investidores internacionais também esmaeceu com a
notícia de que, em 2019, o Brasil simplesmente desapareceu do Índice Global de
Confiança para Investimento Estrangeiro, da consultoria americana Kearney, que
indica os 25 países mais atraentes para os investidores internacionais. O mesmo
índice em que o Brasil ocupava a 3a posição nos anos de 2012 e 2013, tendo
caído para o 25º em 2018, e do qual foi simplesmente eliminado na hora das
grandes reformas ultraliberais de Paulo Guedes, que supostamente iriam atrair
os grandes investidores internacionais.
Este quadro só deve piorar com a
nova crise económica mundial que se anuncia, com o avanço da pandemia do
coronavírus e com o início de uma nova guerra de preços na indústria do
petróleo. As agências financeiras privadas e os organismos internacionais já
estão prevendo uma redução do investimento global na ordem de 15%, e uma queda
do PIB mundial na ordem de 1,9%, com a possibilidade de uma recessão mundial no
primeiro semestre de 2020, que pode prolongar-se no segundo semestre, tanto na
Europa como nos Estados Unidos. Neste momento, o que domina é o pânico e a
incerteza, mas o pior ainda pode estar por vir.
Tudo isso deverá ocorrer no
período das eleições presidenciais norte-americanas, quando o presidente Donald
Trump busca sua reeleição. Desde agora, bem no início da crise que se anuncia,
o presidente americano parece que já está perdendo apoios, segundo pesquisa
publicada pelo jornal Financial Times. E é exatamente aqui que pode estar
se gestando a grande “tentação” do presidente Trump e que poderá se transformar
numa catástrofe para a América Latina nos próximos meses. Afinal, é nessas
horas, sobretudo no caso de um presidente americano que busca sua própria reeleição,
que é comum a aposta em alguma inciativa de “alto teor” explosivo, como é o
caso de guerras ou ações militares que façam esquecer a agenda desfavorável e
que sejam capazes de mobilizar o sentimento comum de identidade nacional e
patriotismo dos norte-americanos.
O problema é que o “menu de
alternativas” à disposição do presidente Donald Trump é bastante limitado, e
parece que só existe uma opção capaz de unificar o establishment norte-americano,
cooptando inclusive as principais lideranças do Partido Democrata, qual seja, o
cerco, o bloqueio naval ou o ataque direto à Venezuela, em tempo de driblar a
epidemia, a recessão e a crise de sua indústria do petróleo.E foi exatamente
isto que Donald Trump anunciou no seu discurso sobre o Estado da União, frente ao
Congresso Americano, mesmo sem entrar em detalhes. Devendo-se anotar que este
foi o único momento em que ele foi aplaudido de pé, e em conjunto, por todos os
congressistas, republicanos e democratas.
É exatamente aqui, na preparação
dessa operação militar americana, que se inscreve a encenação do jantar do
presidente Trump na sua casa de praia, com seu vassalo brasileiro, que ele
despreza de forma visível, mas que vem lhe entregando sem contrapartida tudo o
que lhe é solicitado – inclusive o novo acordo militar RDT&E, que deverá
servir de “guarda-chuva” para todas as ações militares conjuntas no futuro
próximo, englobando o tensionamento com a Venezuela. Trata-se de um Acordo que
começou a ser negociado logo depois do Golpe de Estado de 2016, pelo Departamento
de Defesa dos EUA em conjunto com o Ministério de Defesa do Brasil, e que acaba
de ser assinado pelos representantes brasileiros, de forma emblemática,
diretamente com o Comandante Craig Faller, chefe do Comando Sul das Forças
Armadas dos EUA para a América Latina e o Caribe.
Na ocasião da assinatura, o
Almirante Craig declarou: “assinamos um acordo histórico hoje, que abrirá
caminho para o compartilhamento ainda maior de experiências e informações.
Trabalhamos muito próximos das nações aliadas”, além disso fez referências
explícitas à Venezuela e à Bolívia (conforme jornal Valor de 08/03/2020).
É interessante chamar atenção
para o papel do General Braga Neto, que participou das negociações deste Acordo
e que depois foi Comandante do Estado Maior do Exército brasileiro, antes de
assumir recentemente a Casa Civil da Presidência da República, colocando-se ao
lado do general Luiz Eduardo Ramos, que era o Chefe do Comando Militar do
Sudeste e hoje ocupa a Secretaria do Governo, como cabeças visíveis de um governo
“paramilitar” que já conta com 2.897 integrantes das FFAA, alocados em inúmeros
órgãos da administração pública federal, muito mais do que durante toda a
ditadura militar de 1964 (segundo Portal 360).
Além disso, do ponto de vista
económico, merece atenção neste período recente a forma como a política e os
gastos da Defesa têm crescido, na contramão da política económica ultraliberal
do Ministério da Economia. Basta dizer que foi exatamente no período recente de
2019-2020 que o Ministério da Defesa brasileiro teve seu maior orçamento
histórico, R$ 115 bilhões em média. E só a Empresa Gerencial de Projetos Navais
(Emgepron), vinculada à Defesa e à Marinha, foi capitalizada em R$ 7,6 bilhões,
passando por um projeto de revisão de sua atuação e escopo que lhe permite
coordenar e executar projetos estratégicos não apenas da Marinha, mas também do
Exército e da Aeronáutica. Seguindo esta linha, cabe sublinhar que o próprio
acordo RDT&E, parece ter sido apenas um passo a mais de uma estratégia que
já passou por outros acordos anteriores com as FFAA norte-americanas, como é o
caso do Master Information Exchange Agreement (de troca de
informações tecnológicas militares), o Acquisition and Cross-Servicing
Agreement (de apoio logístico e de serviços militares) e o Space
Situational Awareness (de uso do espaço exterior e aéreo para “fins
pacíficos”).
Vários movimentos militares que
parecem convergir e coincidir com o documento divulgado recentemente pelas
FFAA, no qual elas definem, a partir de seu próprio arbítrio, os cenários da
política de defesa brasileira até 2040, com a escolha da França como principal
inimiga estratégico do Brasil. Uma escolha que surpreendeu aos menos avisados,
mas que parece perfeitamente coerente com o objetivo central e imediato da preocupação
das FFAA brasileiras, que é a Venezuela, e agora também a Guiana, devido a sua
descoberta recente de imensas reservas de petróleo off-shore. Além disso,
a escolha da França como principal inimigo facilita a provável denúncia futura
do acordo de cooperação militar do Brasil com a França, em torno da construção
do primeiro submarino nuclear brasileiro, que provavelmente será substituído
por um novo projeto conjunto com os próprios Estados Unidos. É dentro dessa
mesma perspectiva que se deve enquadrar também o acordo já assinado com os EUA
de libertação do lançamento de foguetes e satélites na Base de Alcântara, de
venda da Embraer para a Boeing, de transformação do Brasil em aliado
preferencial extra-OTAN, o que significa, no limite, a transformação progressiva
do Brasil em um “protetorado militar” dos EUA.
Mais ainda, é dentro dessa mesma
“ofensiva final” contra a Venezuela, anunciada pelos Estados Unidos e apoiada
pelo Brasil, que se pode entender a nomeação do General Mourão para o comando
unificado do Conselho da Amazónia, do qual foram excluídos todos os
governadores civis da região, que assim ficam afastados de todo tipo de
informação e decisão, inclusive na eventualidade de que que o Brasil seja
convocado pelos norte-americanos para garantir o cerco amazónico da fronteira
venezuelana. Uma situação que parece cada vez mais exequível depois que o
Brasil retirou seus diplomatas e cônsules das cidades fronteiriças da
Venezuela, e depois que o governo brasileiro notificou vários funcionários e
diplomatas venezuelanos de que devem abandonar o território brasileiro no prazo
de 60 dias. Uma ruptura diplomática sem precedentes, que só costuma ocorrer em
caso de escaladas militares ou de preparação para a guerra.
Dadas as características próprias
da sociedade americana, não é impossível que essa ofensiva militar – muito
provável – possa “salvar” a eleição de Donald Trump, numa conjuntura de forte
recessão económica. O mesmo se pode dizer com relação ao governo “paramilitar”
brasileiro, que poderia passar a governar por “decreto” e por cima do Congresso
Nacional, em caso de uma “emergência de segurança nacional” desse tipo. No
entanto, se o Brasil quiser obedecer e seguir atrás dos Estados Unidos, os
responsáveis por tal insensatez devem ter claro para si que estarão entrando em
um tipo de conflito internacional do qual o Brasil nunca participou, envolvendo
de forma direta as três maiores potências militares do sistema mundial.
Deve-se ter bem claro, além
disso, que o Brasil não dispõe de armamentos, nem de capacidade financeira e
logística para enfrentar as forças armadas venezuelanas, a menos que se
restrinja ao mesmo papel simbólico, subalterno e pontual que teve ao lado dos
Estados Unidos na Segunda Guerra, e na invasão de Santo Domingos, em 1965. Mas,
se mais à frente – e isto é muito provável – as FFAA brasileiras receberem e
aprenderem a utilizar o armamento americano mais sofisticado que deve lhes ser
repassado pelo novo acordo RDT&E, e decidirem utilizá-lo contra um vizinho
latino-americano, seria muito importante que esses senhores que pretendem tomar
uma decisão de tamanha gravidade, em nome do povo brasileiro, tenham muito
claro o que estão fazendo e quais as consequências do seu ato de vassalagem,
para o longo prazo da história do Brasil e da América Latina. Porque eles serão
os responsáveis, frente à História, por terem trazido a guerra em grande escala
para um continente que foi sempre pacífico, e por terem contribuído com os
Estados Unidos para transformar esta região da América do Sul num novo Oriente
Médio. Com a diferença que, neste caso, não será concedido ao Brasil o lugar
que Israel ocupa na política externa americana. Pelo contrário, o mais provável
é que o Brasil se transforme num novo Iraque de Saddam Hussein, que foi usado
pelos americanos durante uma década de guerra contra o Irão, e que depois foi
destruído pelos próprios Estados Unidos. Quase da mesma maneira com que os
Estados Unidos utilizaram os Talibãs na sua guerra contra a URSS, na década de
80, e depois os bombardearam durante 20 anos antes de trazer seus jovens de
volta para casa, deixando para trás um Afeganistão completamente destroçado.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário