segunda-feira, 2 de março de 2020

Guiné-Bissau: Conflito de interesses


A Guiné-Bissau parece insanavelmente dividida, a começar uma nova era sem legitimidade constitucional. Resta saber se os líderes regionais foram cúmplices da quebra da ordem constitucional no país.

António Rodrigues | Público | opinião

São muitos os interesses em luta na Guiné-Bissau e, aparentemente, nenhum deles está relacionado com o povo guineense. Temos os interesses do PAIGC, que governa o país desde a independência e agora se comporta como a virgem enganada da política porque a sua hegemonia está cada vez mais posta em causa. Temos os interesses do ex-Presidente José Mário Vaz (conhecido por Jomav), sempre disponível para contrariar Domingos Simões Pereira e o PAIGC com encenações à margem da Constituição, do Governo e do Parlamento. Temos os interesses de Umaro Sissoco Embaló que já tinha demonstrado por gestos e palavras os seus tiques autoritários e que inaugura uma nova era, indo para além da cartilha do seu antecessor — já não se trata de uma interpretação diferente da Constituição, mas um completo desrespeito pela sua aplicação e pelas regras do Estado de direito. Temos os interesses do narcotráfico e de quem no país ganha muito dinheiro com ele, a quem só serve comprar os dirigentes ou minar as instituições, para seguir utilizando o país como plataforma giratória entre a América do Sul e a Europa.

Temos ainda os interesses dos militares que, a julgar pela presença das suas chefias na cerimónia de posse de Nuno Nabiam como primeiro-ministro, acham que estão melhor salvaguardados com Embaló no poder. Temos ainda os interesses dos países da região, a maioria preferiu não se envolver directamente na tomada de posse encenada por Embaló, só a Gâmbia e o Senegal mostraram estar com o candidato do Madem-G15. E o interesse do petróleo, que está por explorar, mas cuja renegociação do contrato de exploração com o Senegal está em discussão.

Com tantos interesses em jogo, muitos antagónicos, não admira que o conflito esteja instalado, os problemas se multipliquem e a Guiné-Bissau esteja insanavelmente dividida. O caos tornou-se quotidiano, uma outra forma de vida para a classe dirigente do país.

Como refere Carlos Sangreman, em entrevista ao PÚBLICO, a única boa notícia para a Guiné-Bissau é que os militares deixaram de sentir a necessidade de impor a ordem pela força das armas no meio do desajuizado xadrez político do país.

No meio disto tudo, a Comissão Nacional de Eleições comporta-se como outro jogador político mais, descredibilizando o seu trabalho e dando azo a que se questionem os resultados eleitorais.

E o Supremo Tribunal, na sua dupla função como Tribunal Constitucional, vem falhando no seu papel de defensor da democracia guineense. Tão divididos como a sociedade, os juízes são dúbios nas suas decisões, pouco claros nos seus argumentos, incapazes de produzir uma solução jurídica sem margem para dúvidas sobre o processo eleitoral. Custava ter escrito: contem os votos novamente porque há erros na primeira apuração de resultados?

Após cinco anos de permanente crise política, por causa de um Presidente que assumiu uma interpretação presidencialista da Constituição e entrou em conflito com os outros poderes, a fraqueza do Supremo Tribunal abriu espaço para que se tenha em Sissoco Embaló um novo José Mário Vaz. Com a agravante de o primeiro ser uma criação do segundo.

O PAIGC também paga caro os seus erros políticos. Julgou que tinha Vaz na mão só por o ter ajudado a eleger, escolheu o confronto e não o diálogo, queimou pontes e quando se apercebeu, já Jomav usava o Palácio Presidencial para minar por dentro a maioria do partido que domina a política da Guiné-Bissau desde a independência.

Com dois presidentes, dois primeiros-ministros, aguarda-se uma intervenção da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) que permita repor a ordem constitucional violada.

Por mais legítimo que Embaló se considere Presidente e esteja exasperado pela demora na sua confirmação, a escolha de tomar posse do cargo à revelia do Parlamento, num hotel qualquer, e demitir o primeiro-ministro e o seu executivo — que foi eleito em sufrágio legítimo, com resultados reconhecidos e que tem uma maioria para governar — é um golpe de Estado.

Diz o Africa Monitor que Embaló só avançou porque os líderes da CEDEAO lhe deram luz verde. A ser assim, abre-se um grave precedente. A quem interessará?

antonio.rodrigues@publico.pt

Na imagem: Chefias militares na posse de Nabian (de branco); ao centro, Embaló

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