Constitucionalista Jorge Miranda,
que ajudou a escrever a lei máxima da Guiné-Bissau, diz que Sissoco Embaló
devia ter esperado pela decisão do STJ. Tomando posse como fez, "é um
verdadeiro golpe de Estado", diz.
Há uma semana, o coletivo de
advogados de Umaro Sissoco Embaló disse
à DW África que não houve golpe de Estado na Guiné-Bissau, que a
Constituição está a ser respeitada e que há um candidato derrotado. Segundo os
advogados de Sissoco, Domingos Simões Pereira estaria em conluio com o
Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e, por isso, não aceitou os resultados.
Em nome do coletivo de advogados,
Nelson Moreira disse que Sissoco Embaló não pode ser chamado de
"autoproclamado Presidente" porque foi declarado vencedor pela
instância competente - a Comissão Nacional de Eleições (CNE).
Em entrevista à DW, no entanto,
o constitucionalista português Jorge Miranda - que ajudou a
escrever a Lei Magna da Guiné-Bissau - critica a tomada de posse
de Sissoco Embaló. Segundo o professor catedrático da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa, Sissoco Embaló "não é um Presidente
verdadeiramente constitucional" porque, antes de tomar
posse, devia ter esperado pela decisão do STJ sobre os recursos
apresentados por Domingos Simões Pereira - do Partido Africano para a
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Jorge Miranda lamenta a crise
pós-eleitoral: "É uma coisa extremamente triste" e "muito
grave", afirma.
DW África: Aos olhos da
Constituição da Guiné-Bissau estamos perante o quê?
Jorge Miranda (JM): A
Constituição da República da Guiné-Bissau não fala explicitamente nessa fase de
apuramento e de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Mas a prática é, a
meu ver, verdadeiramente um golpe de Estado. Aquilo que o candidato que tinha
ficado em primeiro lugar nas eleições fez, assumindo o poder, tomando posse
como Presidente da República, sem esperar pela decisão do Supremo Tribunal de
Justiça, é um verdadeiro golpe de Estado. Se tinha tanta confiança que ganhou
as eleições, por que não aguardou mais uns dias até o STJ decidir?
Tomando posse nos termos em que
tomou e com o apoio dos militares - com a intervenção dos militares que
ocuparam os serviços públicos. Isso, a meu ver, corresponde a um golpe de
Estado. [Houve] uma violação das regras fundamentais de um Estado de direito,
porque, num Estado de direito, a última palavra, quando há contestação, cabe
aos tribunais. No caso da Guiné-Bissau, não há Tribunal Constitucional
- como acontece em Portugal ou na Alemanha - mas é o Tribunal de
Justiça que deveria decidir e acabou por não poder decidir. Portanto, a
situação, a meu ver, é muito grave. É muito triste também, para quem tem
acompanhado a Guiné-Bissau há muitos anos, verificar que o país, ao fim de
mais de 45 anos da independência, ainda não consegue viver em paz e
tranquilidade. É uma coisa extremamente triste.
DW África: Na sua interpretação,
Umaro Sissoco Embaló deve ser chamado de "autoproclamado Presidente da
República" mesmo com os resultados da CNE?
JM: Acho que sim. Porque
proclamou-se Presidente sem haver o cumprimento dos processos jurídicos
necessários, sem haver a decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Portanto, não
é um Presidente verdadeiramente constitucional.
DW África: A legislação guineense
prevê que, em caso de vacatura na Presidência da República, é o presidente do
Parlamento quem deve assumir como interino...
JM: Aliás, é uma situação
anómala que já se tinha verificado com o anterior Presidente, que terminou o
mandato e se manteve em funções. Até convocou eleições. Também já era uma
situação manifestamente contrária à Constituição. O anterior Presidente, José Mário
Vaz, manteve-se no cargo para além do termo do mandato. Neste momento, estamos
também numa situação muito grave de crise e de golpe de Estado.
DW África: Então, quer dizer que
o presidente do Parlamento deveria ser o Presidente interino?
JM: Sim, seria o presidente
do Parlamento a assumir a Presidência. Tendo em conta que tinha terminado o
mandato do antecessor, seria o presidente da Assembleia Nacional Popular a
assumir as funções.
DW África: Umaro Sissoco Embaló,
que chama de autoproclamado Presidente, demitiu o Governo que resultou das
eleições legislativas e nomeou um novo Executivo. Como podemos enquadrar este
Governo?
JM: Enquadra-se no mesmo
conjunto. Ele [Sissoco Embaló] demitiu o Governo exercendo aquilo que seriam as
funções de um verdadeiro Presidente. Mas, como não é um verdadeiro
Presidente, essa demissão do Governo também é inconstitucional.
DW África: Qual seria a saída
para a situação à luz da Constituição?
JM: Receio que o Supremo
Tribunal de Justiça já não esteja em condições de decidir, porque há de haver
uma pressão terrível, principalmente dos militares, sobre o STJ. Se o Supremo
realmente reconhecer a validade da eleição e reconhecer que o autoproclamado
Presidente é Presidente, deveria fazer-se uma nova cerimónia de posse nos termos
constitucionais.
DW África: Quer dizer que as leis
não foram respeitadas na sua tomada de posse?
JM: [A Constituição] não
está a ser respeitada.
DW África: Eliminar o cargo do
primeiro-ministro, ou seja, mudar o sistema de governo de semipresidencial para
presidencial seria uma solução para as crises cíclicas na Guiné-Bissau?
JM: Eu tenho muito medo do
presidencialismo fora dos Estados Unidos da América. Em geral, o
presidencialismo fora dos EUA tem conduzido sempre ao poder pessoal do
Presidente. Veja o que tem acontecido na América Latina e veja o que tem
acontece em grande parte de África. De maneira que, o melhor sistema seria um
sistema semipresidencial, com um equilíbrio entre o Parlamento e o Presidente
da República, e no meio o Governo. Agora, não haver o
primeiro-ministro daria uma grande força ao Presidente da República. De
maneira que eu acho que é melhor haver um primeiro-ministro com o apoio
parlamentar. E depois tem que se encontrar uma solução de consenso,
de equilíbrio, entre o Presidente e o primeiro-ministro - o que
evidentemente não é fácil. Mas em Portugal tem-se conseguido encontrar, noutros
países também. Nunca é fácil. Agora, o presidencialismo é um risco enorme de
ditadura.
DW África: Não seria um sistema
ideal para a Guiné-Bissau?
JM: Não recomendaria.
Em Cabo Verde funciona o sistema semipresidencial, e muito bem. Eu sei que
o sistema de Cabo Verde é diferente da Guiné-Bissau. Mas funciona muito bem. Em
São Tomé e Príncipe é mais ou menos. Em Angola e Moçambique, falando dos
países africanos de língua portuguesa, não diria que é a ditadura, mas há um
poder pessoal muito forte do Presidente.
Em alguns outros países, a
tendência é para a concentração do poder no Presidente. Na América Latina, a
história dos últimos 200 anos é de quase ex-ditaduras presidenciais.
Braima Darame | Deutsche Welle
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