Miguel Guedes | Jornal de
Notícias | opinião
Serão quase nenhumas as saudades
que viremos a ter do momento em que o Mundo, anunciado catástrofe,
inesperadamente tombou.
Diremos que foi roleta russa, a
dado tempo. Lembraremos que ninguém conhecia toda a verdade, que cedemos à
nossa natureza de sábios precipitados, nós os que nascemos educados para
adivinhar como se ciência fosse. Congeminado o vírus por teorias da
conspiração, costumes e preconceito, remetemo-nos ao isolamento, tingimos os
dias com escapes, alimentamos a roda a evitar desesperos enquanto o Mundo,
literalmente, fechava. E teletrabalhamos, essa modernice decretada a adultos,
qual telescola imposta às crianças. Voltámos atrás. Descobrimos o espaço entre
as varandas. Alguém dirá, quando isto passar, que fomos reencontrados mais
solidários após tanta intimidade à força. Oxalá. Depois de termos descoberto o
espaço entre varandas, pode ser intimidante olhá-las do mundo cá fora.
Há uma bravura indesmentível na
forma como atravessamos um momento para o qual ninguém se preparou senão a
olhar à distância para outros países em-dias-em-curvas. Ou a antecipar como
fazer a pontuação das horas seguintes, servidas por estatísticas e percentagens
à hora de almoço que são muito mais do que números servidos a frio. Acumulam-se
mortos, salvam-se vidas. Perder a noção dos dias não é perder a noção do tempo
que passa e que será - vamos então adivinhar - muito, conceito bem indefinido. Este conteúdo heróico que nos quiseram injectar surtiu efeito, conteve-nos mais
humanos, mais finitos, mais perecíveis. A título de educação cívica, nenhum de
nós devia deixar de passar uma noite por ano num serviço de urgências. E
poderia ser o fim das aulas de educação moral e religiosa. É quase uma estranha
dependência da catástrofe, esta, a de termos de esperar por uma pandemia que
nos reconcilie com o comprometimento individual e colectivo da vida em
sociedade.
A fé nos homens é agora matéria
divina. Está nas notícias, puxada pelo frémito da economia: ouvimos dizer que a
vida, tal como a conhecemos, vai recomeçar aos poucos. Melhor seria imaginar
que começasse de novo. Tantas vezes, a força libertadora de um
"reset". A revolução que se pede na nossa relação com a natureza
exige-nos um pacto de não agressão com o Homem. Licenciada por um "bem
maior", a terrível imagem de um Mundo movido e controlado a GPS
individuais está à porta e entrará enquanto espreita pela fechadura. Convém
estar alerta ou seremos todos infectados e tratados como tal, infectados, gente
monitorizada por gente. É o tempo certo para se debater políticas e lideranças
que nos assegurem que o pelotão da frente cuida bem do carro-vassoura sem o
qual ninguém fecha a corrida. Se das varandas vimos um condomínio, lavre-se acta.
Um vírus libertador, era bem visto.
*Músico e jurista
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