Nos EUA desvela-se, sob a casca
do país mais rico do planeta, o mais indecoroso terceiro-mundismo: o povo
estado-unidense está à mercê da morte. De costa a costa somam-se sinais de uma
veloz desagregação: nunca a taxa de desemprego cresceu tanto em tão pouco
tempo; nunca os índices de criminalidade aumentaram tão rapidamente, e nunca se
venderam tantas armas em tão pouco tempo.»
Quando Marx escreveu que «há algo
podre na essência de um sistema que aumenta a riqueza sem diminuir a miséria»,
não poderia ter imaginado o engenho com que esse sistema conseguiria esconder
tanta miséria sob a casca da riqueza. Mas a pandemia veio revelar como é frágil
a casca e podre o seu interior.
Nos EUA desvela-se, sob a casca
do país mais rico do planeta, o mais indecoroso terceiro-mundismo: o povo
estado-unidense está à mercê da morte. «Entre 200 000 e 240 000 americanos vão
morrer», sentenciou Trump na semana passada, advertindo, contudo, que no dia 12
de Abril os estado-unidenses devem voltar ao trabalho. De costa a costa,
somam-se sinais de uma veloz desagregação: nunca a taxa de desemprego cresceu
tanto em tão pouco tempo — em duas semanas dez milhões de pessoas perderam o
trabalho; nunca os índices de criminalidade aumentaram tão rapidamente — só na
última semana, o número de crimes aumentou 20 por cento e nunca se venderam
tantas armas em tão pouco tempo — uma explosão de 80 por cento num só mês.
1. O presidente não agiu
atempadamente: Trump demorou 70 dias até tomar a primeira medida, desperdiçando
a fase mais crucial para a contenção.
2. Todos os níveis de governo
falharam: a arquitectura descentralizada do poder mostrou-se inapta para
enfrentar a epidemia com agilidade e consistência: de Estado para Estado, de
cidade para cidade, as estratégias de contenção foram confusas, descoordenadas
e lentas.
3. A OMS não foi ouvida: a Casa
Branca desestimou repetidamente as recomendações da Organização Mundial de
Saúde, ao ponto de recusar os kits de teste oferecidos por esta organização,
criando uma escassez sem paralelo na OCDE.
4. Não há Saúde pública: em vez
de um serviço de saúde público, gratuito e universal, os EUA têm um sistema
baseado em seguros de saúde privados e movidos pela sede de lucro, o que deixa
60 milhões de pessoas sem acesso a cuidados.
5. Desigualdade extrema: embora
Trump garanta que estão todos no mesmo barco, só alguns levam colete
salva-vidas. Os pobres e os negros são, desproporcionalmente, os que mais se
infectam e os que mais morrem com COVID-19. Em Chicago, por exemplo, os negros
compõem apenas 30% da população mas representam 70% dos infectados.
6. O grande capital recusou
sacrifícios: da indústria farmacêutica a Silicon Valley, os grandes grupos
económicos se recusaram a abrir mão de um cêntimo que fosse. A GM, por exemplo,
recusou-se a produzir ventiladores até ao início de Abril.
7. As ajudas são para os mesmos:
Trump admitiu que o programa de alívio financeiro para a pandemia, o CARES, que
pode injectar até 6,2 biliões de dólares na economia, prevê 4,5 biliões para os
grandes grupos económicos e para a banca e apenas 1,7 biliões para a saúde, as
pequenas empresas, os 50 Estados e os trabalhadores.
8. Os trabalhadores vivem num
trapézio sem rede: Nos EUA, 32 milhões de trabalhadores não têm qualquer tipo
de baixa médica paga, 45 por cento não têm poupanças e outros 25 por cento têm
menos de 1000 dólares na conta. 60% não aguenta um mês sem trabalhar.
9. Décadas de cortes: há 50 anos
que os organismos públicos úteis numa pandemia são alvo de cortes
bipartidários. Trump, por exemplo, acabou de cortar o orçamento dos Centros de
Controlo de Doenças, do Medicaid, do Medicare e do Instituto Nacional de Saúde.
10. O capitalismo: O capitalismo
não procura preservar a vida, mas os lucros. É da sua própria natureza. A
pandemia surge por isso para muitos capitalistas como uma oportunidade de
negócio, para alguns como um prejuízo e, para muitos, como um pretexto para
destruir a produção e recomeçar mais uma crise cíclica.
*António Santos | O Diário.info
*Este artigo foi publicado no
“Avante!” nº 2419, 8.04.2020
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