António Galamba |
jornal i | opinião
Se as avenças existiram e, em
quatro anos, nada foi feito, isso significa que, no atual quadro de indigência
de vendas, de publicidade, de recursos e de estabilidade laboral, tudo é
possível.
1. O funil é um acessório
marginal dos nossos quotidianos; no entanto, em sentido figurado ou funcional,
está presente em muitas das dinâmicas da sociedade portuguesa. Talvez já quase
ninguém se lembre, mas perfizeram-se, no passado dia 23 de abril, quatro anos
sobre a publicitação, com alarido, pelo Expresso de que havia um saco azul do
Grupo Espírito Santo, assente no offshore ES Enterprises, que servia, entre
outras coisas, para pagar avenças a políticos e jornalistas.
Quatro anos depois, o funil
continua invertido, com a parte estreita a proteger a publicação dos nomes dos
supostos, alegados ou reais jornalistas que, enquanto exercitavam o direito a
informar, recebiam quantias de um dos maiores grupos financeiros de Portugal.
São quatro anos de um silêncio
ensurdecedor, de uma complacência da classe e de uma vivência na penumbra de
leitores, telespetadores e ouvintes, sujeitos a serem assaltados pela dúvida
sobre se aquela notícia, aquele comentário ou aquela reportagem está enformada
pelo rigor ou terá tido alguma distorção perturbadora da credibilidade, do tipo
avença do saco azul do GES.
São quatro anos de vergonha
alheia, porque há questões que não podem ser de geometria variável em função
dos interesses particulares ou de grupo. São o que faz a diferença entre as
principais linhas de separação em qualquer sociedade democrática, de direito e
organizada segundo os padrões civilizacionais do Ocidente. Entre o sim e o não,
numa matéria de credibilidade, de seriedade do exercício e de respeito por quem
é o recetor das mensagens, a opção de quatro anos é um inacreditável silêncio.
Um silêncio que acomoda e legitima a prática que desqualifica o exercício de
escrutínio jornalístico quando dirigido a outros protagonistas do espaço
público.
O drama é o do Pedro e o Lobo. É
que, se as avenças existiram no tempo em que os órgãos de comunicação social
estavam num patamar de saúde financeira muito superior ao panorama atual, se o
princípio foi quebrado, ainda que por um dos seus membros, e nada foi feito,
isso significa que, no atual quadro de indigência de vendas, de publicidade, de
recursos e de estabilidade laboral, tudo é possível.
Não compreender, fingir que não
existem ou dar cobertura corporativa a este tipo de práticas, ao fim de quatro
anos, é colocar em causa a credibilidade do exercício, pela presença de uma ou
várias maçãs podres que prosseguem em funções jornalísticas ou no universo do
comentário, provavelmente sobre temas económicos. É que os próprios não
assumiram, as estruturas representativas não se incomodam, e tudo vai cantando
e rindo. E de vez em quando, nos temas mais díspares, quando estão em conflito
direitos individuais com o direito a informar, o interesse público, lá invertem
o funil e colocam a parte mais larga para fora, ampliando a informação ou os
factos a projetar. O problema pode ser mesmo da idoneidade do titular do uso do
funil. Quem o usa pode ter sido um dos avençados, e isso faz toda a diferença.
Quatro anos de silêncio é muito tempo. Perante tamanha suspeita, um dia já era
tarde, pelo mesmo critério jornalístico que aplicam a outros.
2. O funil dos bancos: isto anda
tudo ligado. Também na banca há um funil que se posiciona em função de se saber
se é para capitalizar o sistema bancário com dinheiro dos contribuintes, por
causa do sacrossanto risco sistémico, ou se o que está em causa é socorrer as
empresas e os empregos perante o tsunâmi económico pandémico, com soluções de
empréstimos garantidos pelo Estado. Esta é uma daquelas áreas em que não há
dúvida – ou, pelo menos, não deveria haver. Se correr mal, no final, o
posicionamento do funil é o de maior abertura do lado dos contribuintes a
carrear dinheiro para o estreito dos bancos. Infelizmente, depois do que foi
feito pelos bancos e do que fizeram com perdões imorais a devedores, o funil
permanece com a parte estreita virada para as empresas e para a manutenção do
emprego, sendo fortes as probabilidades de o dinheiro não chegar onde devia
durante esta semana e aumentar o caudal de desempregados em direção à Segurança
Social. O problema é que a reincidência de desespero individual e comunitário
tenderá a não ser tão pacífica como foi na crise pós-2008.
3. O exercício político do
afunilamento: é desqualificante para a instituição parlamentar algumas das
coisas que foram ditas em torno da cerimónia do 25 de Abril por alguns dos seus
principais representantes. Num tempo cada vez mais digitalizado e com
sustentados problemas de proximidade, por via da pandemia, é bom que existam
mínimos de senso para não apoucar impulsos de participação cívica, por mais
adversas que possam ser as considerações subjacentes a uma petição online.
Aliás, dá que pensar que o confinamento e a polémica da sessão parlamentar
tenham feito mais pela consciencialização dos mais jovens sobre o que foi o 25
de Abril do que dezenas de cerimónias em São Bento. Em casa ou nas janelas,
confinados, há muito que não se falava e comemorava tanto Abril.
O problema do uso do funil para
abafar os nomes de jornalistas que receberam avenças do saco azul do GES ao
longo de 20 anos, como para obstaculizar o acesso a apoios de mitigação dos
impactos económicos da pandemia nas empresas e no emprego, é que já ninguém é
surdo a interpretar os silêncios, as atitudes e os truques.
Portugal enfrenta desafios tão
grandes que exigem verdade, transparência e a máxima linearidade. A perceção da
realidade é cada vez maior e, ao invés da cena do funil da Canção de Lisboa,
não precisamos do funil no ouvido para compreender o que nos é pedido e o que é
exigido.
NOTAS FINAIS
AFUNILAMENTO IDEOLÓGICO. Não foi
o inebriar dos 150 anos do nascimento de Lenine que levou o PCP a defender o
controlo digital dos cidadãos na China, para conter a pandemia, e estar contra
o estado de emergência por limitações de direitos muito menos intrusivas. Não é
defeito, é feitio.
AFUNILAMENTO PRAGMÁTICO. Agora
que temos cada vez menos “Donos Disto Tudo”, o país está a ficar cheio de
“Donos de Parcelas Disto Tudo”. Vinte e Cinco de Abril, idosos, soluções para a
pandemia, certezas sobre o incerto. Está a ficar esquisito e pouco recomendável.
*Escreve à segunda-feira
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