PUSL / Jornal Tornado .- Esta
semana o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PAM) recebeu uma
contribuição inicial de 400.000 € (452.000 dólares) do governo da França (UE)
para apoiar crianças refugiadas saharauis nos campos na Argélia.
A contribuição francesa apoiará o
programa de alimentação escolar do PAM, para cerca de 40.000 crianças em
escolas e creches. Isso permitirá que cada criança receba um lanche ao meio da
manhã (biscoitos nutritivos e leite), assim que as escolas abrirem novamente.
Segundo declarações de Imed
Khanfir, representante do PAM e o diretor na Argélia esta ajuda “Será
fundamental para o futuro dessas crianças …. O PAM está muito grato ao povo e
ao governo da França pelo seu apoio ao nosso programa de alimentação escolar…”.
França será então o responsável
por dar a 40.000 crianças um pacote de leite e umas bolachas cinco vezes por
semana. Devemos ficar emocionados? Não.
França é um dos maiores
responsáveis pelo facto de estas crianças, os seus pais e avôs viverem em
campos de refugiados e estejam dependentes de ajuda alimentar.
Os 400.000 Euros divididos por
40.000 crianças dá 10 Euros por criança o que representa num ano
da educação básica com uma duração mínima de 200 dias, 0,05
Euros dia. Cinco cêntimos por dia não é o suficiente para comprar leite e
bolachas em nenhuma parte do mundo. Segundo o PAM o custo por criança lanche é
de 0,25Euros. Baseando-nos nestes dados o contributo caritativo de França
equivale a 40 lanches por criança.
40 lanches numa balança onde do
outro lado estão 45 anos de ocupação e sobrevivência em campos de refugiados,
29 anos de obstrução por parte de França no Conselho de Segurança e 16 anos de
guerra onde França apoiou de forma logística o ocupante marroquino.
Se pusermos nessa balança os
400.000Euros dos lanches e o preço de apenas um dos múltiplos aviões franceses
que foram utilizados durante a guerra para bombardear os saharauis, e cujo
custo rondava os 8 milhões de Euros[1], vemos a hipocrisia extrema da
“caridade”.
Durante a guerra, França
participou activamente desde Nouakchott em várias ocasiões, até à retirada da
Mauritânia do território saharaui, mas apoiou Marrocos com logística e
financiamento durante os 16 anos de conflicto armado entre a Frente Polisario e
Marrocos até ao cessar-fogo em 1991.
Desde o primeiro momento que
Marrocos contou com o forte apoio dos EUA e da França na ocupação do Sahara
Ocidental e no genocídio do povo saharaui.
Ainda hoje o apoio militar à
ocupação marroquina continua, como mostra a “DISCLOSE” e os seus
parceiros de investigação (Lighthouse Reports, em cooperação com a Disclose e
com o apoio da Arte, Mediapart, Radio France e Bellingcat) que analisaram
vídeos, imagens de satélite e reportagens numa investigação e descobriram que
aeronaves e navios de guerra vendidos por empresas francesas a Marrocos foram
recentemente implicados na ocupação do território do Sahara Ocidental por
Marrocos.(vídeo: https://youtu.be/omrwv419fE8).
Mas também a nível diplomático
França é o fiel defensor de Marrocos. No Conselho de Segurança das Nações
Unidas, onde França é membro permanente, a sua acção tem sido de obstaculização
activa de qualquer processo que pudesse conduzir à realização do referendo
sobre a autodeterminação do Sahara Ocidental que foi a premissa para a
assinatura do cessar fogo em 1991, entre as partes.
França ameaça anualmente com a
utilização do Veto no Conselho de Segurança (CS), de forma a impedir a inclusão
no mandato da Missão das Nações Unidas para o Sahara Ocidental de uma
componente de protecção dos Direitos Humanos. Assim a MINURSO (Missão das
Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental) não só não cumpre o seu
mandato principal, como é praticamente a única Missão de Paz da ONU sem
componente de Direitos Humanos.
O veto não foi utilizado por
nenhum dos P5 (membros permanentes do Conselho de Segurança que têm direito a
veto) na votação da questão Sahara Ocidental.
O que tem sido a prática de
França é um “veto técnico” durante as discussões privadas sobre os projetos de
resolução do CS. Dessa forma, França nunca foi forçada a dar um voto negativo
ao votar como em outros casos e assim pretende manter a sua imagem de país
democrático e de valores humanitários. Além disso, nenhum outro P5 foi tão
longe para usar um voto negativo para combater a França nesta questão.
Um exemplo claro da ingerência
francesa é a proposta (Plan Baker II) apresentada pelo então enviado pessoal do
Secretário Geral das Nações, James Baker, em 2003 que seria aceite como
uma solução aceitável para o conflito, mas mais uma vez França ameaçou com o
Veto e Marrocos recusou claramente o plano.
A hipocrisia de França vai ao
ponto de no Portal da Missão Permanente Francesa junto das Nações Unidas em
Nova Iorque se poder ler:
“O governo já não usa o seu veto
em situações de atrocidades em massa"
"Durante a 70ª Assembleia Geral
das Nações Unidas, o presidente François Hollande anunciou que a França se
comprometeu a nunca usar o seu veto em casos de atrocidades em massa: “A França
gostaria que os membros permanentes do Conselho de Segurança não pudessem
recorrer mais ao veto [poder] em casos de atrocidades em massa. Como aceitar
que a ONU, até hoje, possa permanecer paralisada enquanto o pior está a
acontecer? Também nesse caso, vamos dar o exemplo. Comprometo-me aqui pela
França a nunca usar o seu poder de veto em casos de atrocidade em massa “.
A França deseja regular o uso do
veto no Conselho de Segurança
Conforme sugerido pelo Presidente
em 2013, a regulamentação do uso do veto consistiria nos cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança (China, Estados Unidos, França, Reino
Unido, Rússia) comprometendo-se voluntária e coletivamente a não recorrer ao
veto quando numa situação se observa atrocidade em massa, como nos casos de
crimes genocidas, crimes contra a humanidade e crimes de guerra em larga
escala.”
Uma declaração bem ao estilo
francês, com toda a terminologia correcta e aparentemente muito preocupados com
os direitos humanos. Quase que nos poderíamos esquecer que França é parte
activa e apoia regimes que cometem genocídios e crimes de guerra e que no caso
do Sahara Ocidental ocupado, onde se cometeram e cometem os crimes acima
referidos diariamente, França é o padrinho de Marrocos.
Ao nível da União Europeia, mais
uma vez, França apoia descaradamente Marrocos, sendo o último escândalo o da
Eurodeputada liberal francesa Patricia Lalonde, responsável
pelas negociações do acordo do Parlamento Europeu para incluir o Sahara
Ocidental no acordo de comércio de produtos agrícolas e da pesca entre a UE e
Marrocos, a eurodeputada liberal francesa, Patricia Lalonde, que teve que
renunciar ao cargo de relatora devido ao conflito de interesses devido às suas
ligações com Rabat, após a denúncia da sua conduta impropria.
A ex-deputada francesa Patricia
Lalonde do Grupo da Aliança dos Democratas e Liberais pela Europa e do partido
Union des Démocrates et Indépendants (França) era membro da Comissão do
Comércio Internacional e da Delegação à Assembleia Parlamentar da União para o
Mediterrâneo e membro suplente da Comissão dos Assuntos Externos, o deputado
Gilles Pargneaux do Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas
no Parlamento Europeu e do Partido socialista francês é membro da Delegação à
Assembleia Parlamentar da União para o Mediterrâneo e Membro suplente da
Comissão dos Assuntos Externos e da Delegação para as Relações com os Países do
Magrebe e a União do Magrebe Árabe.
Ambos tinham posições chave para
defender os interesses de Marrocos no que respeita os acordos e parcerias com
este País e o desrespeito pelos acórdãos emitidos pelo Tribunal de Justiça da
União Europeia sobre não inclusão do Sahara Ocidental e dos seus produtos e
recursos.
O caso foi denunciado por Philippe
Lamberts, Co-Presidente do Grupo dos Verdes / ALE no Parlamento Europeu, que
escreveu em 27 de Novembro de 2018 uma carta a Antonio Tajani, presidente do
Parlamento Europeu denunciando três Eurodeputadas e um Eurodeputado que eram
activos na defesa dos interesses marroquinos, sem terem informado o parlamento
sobre os seus conflictos de interesses e pediu para que o assunto fosse
remetido ao Comité Consultivo sobre o Código de Conduta.
Lalonde fazia parte do Conselho
de Administração da Fundação EuroMedA uma fundação com laços directos com a liderança
marroquina, da qual o deputado Gilles Pargneaux era o presidente e co-fundador.
Ambos defendiam activa e
ilicitamente os interesses marroquinos contra o povo saharaui dentro da UE.
A União Europeia acaba também de
anunciar uma doação de 5,3 milhões de Euros ao PAM (https://fr.wfp.org/communiques-de-presse/lunion-europeenne-soutient-laide-alimentaire-du-pam-dans-les-camps-de)
para a ajuda aos campos de refugiados saharauis.
Recordar, que a EU atribuiu, a
Marrocos, só para combater a pandemia do COVID 19 450milhoes de Euros, ou seja
50 vezes mais que o valor anual atribuído nos últimos dois anos para a
sobrevivência de centenas de milhares de Saharauis nos acampamentos de
refugiados. Acresce a este montante os lucros multimilionários que os membros
da EU obtêm da exploração ilegal dos recursos do Sahara Ocidental. O apoio
financeiro a Marrocos no âmbito do acordo/parceria de proximidade nas ultimas
duas décadas tem sido escandaloso e sem qualquer controle de aplicação como
denunciado por vários eurodeputados.
França está envolvida no espolio
ilegal dos recursos do Sahara Ocidental, com a presença de várias empresas. Entre
as quais ao nível da agricultora a companhia “AZURA”, na área petrolífera a
“TOTAL”, várias empresas na área da energia renovável , na área de serviços os
grandes grupos bancários BNP Paribas, Société Générale, Crédit Agricole, a
companhia de seguros Axa Assurance, a companhia aérea Transavia e agência
de turismo UCPA.
Os três bancos têm subsidiárias –
BMCI, Crédit du Maroc e Société Générale Maroc – assim como a AXA Assurance com
a sua subsidiária integral marroquina AXA Assurance Maroc, todos com presença
nos territórios ocupados.
Numa vídeo conferência no passado
dia 25 de Abril organizada pela ONG sueca, Solidarity Rising, o Prof. Yahia
H. Zoubir[2] lembrou que em 2007, a
proposta de um plano de autonomia por parte de Marrocos em vez da realização de
um referendo, foi uma ideia do ex-presidente francês Giscard d’Estaing.
“De facto Marrocos nunca teve qualquer intenção de honrar a realização do
referendo acordado entre a Frente Polisario e Marrocos sob os auspícios da ONU
e da União Africana porque sabe que o resultado não lhe seria favorável. Nem
nunca Marrocos explicou do que iria consistir o plano de autonomia, apesar de
ter sido questionado várias vezes durante as negociações entre as partes.
Quando falo em “Israelização” do conflicto quero dizer que Marrocos
assim como Israel, quer impor uma situação de facto, utilizando para isso a
introdução de colonos, e mais colonos, construção do edifícios e infra
estruturas, marginalização da população saharaui, e condições
que tornem difícil uma solução, de forma a levar a comunidade internacional a
aceitar a ocupação se não de formalmente, informalmente. Nada disto seria
possível sem o apoio da França.” disse o Prof Zoubir.
Se olharmos para a União
Africana, a recente entrada nesta organização de Marrocos e o papel de França
no continente, continuamos a verificar lações estreitos e de apoio mutuo entre
os dois países. Marrocos entrou na União Africana com o apoio da maioria dos
países africanos francófonos, ex-colónias francesas que continuavam sob o jugo
do Franco CFA e assim em dependência económico-politica quase total de França.
Em dezembro de 2019 Macron anunciou o fim do CFA e uma nova moeda chamada ECO
devido à contestação intensa dentro dos países contra o controle francês e as
fortes críticas de que tem sido alvo a nível internacional e sobretudo de
Itália relacionado com a crise dos refugiados.
Marrocos tem assim o apoio dos
países francófonos africanos e outros países com economias destruídas em câmbio
de promessas de apoio económico, mas também se tornou o facilitador de França
dentro a UA.
Estas manobras têm sido evidentes
ao longo dos dois últimos anos, e recentemente com abertura de Consulados
ilegais, de países africanos sem cidadãos no local, dentro dos territórios
ocupados do Sahara Ocidental ainda ficaram mais em evidência.
Ao nível militar a interacção e
apoio Marrocos/França no continente Africano é conhecido. Na verdade, as
políticas militares de Macron nesta área do globo andam de mãos dadas com
Marrocos, que também é parceiro da NATO.
Mas porquê França tem tanto apego
à monarquia Marroquina, um país do norte de áfrica sem recursos naturais
relevantes, excepto os que rouba no Sahara Ocidental, e com problemas sociais e
revoltas cada vez maiores?
Para além do relacionamento
histórico e da nostalgia francesa, e cerca de 45 mil francesas que vivem em
Marrocos, – um numero bastante baixo e até insignificante se comparamos com os
dados de 2016 (https://www.statista.com/statistics/953695/number-expats-by-geographical-area-france/#statisticContainer),
onde a maioria dos expatriados franceses vivia na União Europeia. A segunda
área geográfica mais popular para os franceses que vivem no exterior foi a
América do Norte, com mais de 259.000 cidadãos franceses estabelecidos lá. Só
em Portugal vivem actualmente 17.245 nacionais franceses de acordo com os dados
do SEF. No entanto em França a comunidade marroquina ascende já a 18.4% do
total dos emigrantes com 755,400 imigrantes legais, estima-se que o número é
muito superior.
São pois, os factores económicos,
mas sobre tudo os geopolíticos que fazem de Marrocos o afilhado de França. Uma
entrada para África, um continente cada vez mais economicamente ligado à China
e onde França está em fase de decadência, e também uma ponte para alguns
países árabes.
Economicamente podemos referir o
facto que França é o maior investidor directo com 70% do investimento em
Marrocos e é o segundo parceiro económico de Marrocos, sendo Espanha o
primeiro.
Podemos concluir que um dos
principais factores para que Marrocos continue impunemente a ocupação do
território Saharaui é o apoio de França que prefere ignorar o direito
internacional e assim sobrepor o jogo do poder politico à legalidade. Esta
contradicção entre lei e poder politico, e apoio externo é o impedimento para a
resolução do conflito do Sahara Ocidental. O ocupante é apoiado descaradamente
pelos grandes actores políticos mundiais, nomeadamente França e EUA mas também
por Espanha que tem desempenhado um papel vergonhoso neste processo. Com França
e EUA , membros permanentes do CS da ONU, e Espanha no grupo de “amigos do
Sahara Ocidental da ONU”, qualquer solução que respeite o direito internacional
parece estar descartada à partida.
Como diz Zoubir “apresentam as
vitimas como ofensores”, o povo saharaui no entanto não desiste da sua luta
pela independência que de momento se desenrola no plano diplomático mas que a
cada minuto se aproxima mais o ponto de ruptura com esta via.
A balança da “caridade” é a
evidência da hipocrisia internacional.
Referências:
[1] 1976. Durante os meses de janeiro e
fevereiro, a invasão militar marroquina e mauritana levou à fuga maciça da
população civil saharaui, estabelecida em campos de refugiados em Tindouf, na
Argélia. A aviação marroquina bombardeou os campos saharauis em Um-Draiga,
Tifariti, Amgala, El Maltani, Guelta-Zemur com Napalm e Fósforo Branco e em
1977 os aviões Jaguar das Forças armadas francesas fizeram uma incursão no
Sahara Ocidental via Mauritânia atacando os saharauis na operação “Lamantine”.
[2] Yahia H. Zoubir é Professor Sénior de
Estudos Internacionais e Diretor de Pesquisa em Geopolítica na KEDGE Business
School, França, e atualmente Investigador Convidado no Brookings Doha Center.
Antes de ingressar na KEDGE em 2005, lecionou em várias universidades nos
Estados Unidos e foi professor convidado em várias universidades na China,
Europa, Estados Unidos, Índia, Indonésia, Coreia do Sul e Médio Oriente e Norte
da África.
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