Tempos incertos convidam a
revisitar Paulo Freire e Richard Sennett. Eles nos vêem como inacabados –
portanto, abertos a indagar, cooperar, transformar. É antídoto à competição
permanente e visão de curto prazo, que o sistema deseja impor
Roberto Rafael Dias da Silva
| Outras Palavras | Imagem: mural zapatista
Bola de meia, bola de gude / O
solidário não quer solidão /
Toda vez que a tristeza me alcança o menino me dá a mão /
Há um menino/Há um moleque / Morando sempre no meu coração /
Toda vez que o adulto fraqueja ele vem pra me dar a mão.
(Fernando Brant e Milton Nascimento)
Na experiência social que estamos
vivenciando nas últimas semanas, em decorrência da pandemia causada pelo
covid-19, são inúmeros os diagnósticos que vemos em circulação, ora sinalizando
para um recuo da globalização acompanhado de uma agenda conservadora, ora
apostando no declínio da atual forma capitalista – por um alargamento do Estado
social ou pela emergência de formas alternativas. Não resta dúvidas de que a
instabilidade experimentada nestes dias, associada às incertezas diante do
futuro, permite que arrisquemos hipóteses e, com a devida ousadia, possamos
juntos começar a construir novas pactuações com relação ao futuro. Na condição
de pesquisador das questões educacionais e um entusiasta do pós-capitalismo
como modo de vida, tenho aproveitado este momento para dialogar com meus
interlocutores privilegiados – os futuros professores – e arriscar o
desenvolvimento de uma cultura de indagação, marcadamente cooperativa, para
prospectar futuros. Entretanto, uma questão – já explorada por inúmeras
teorizações sociais – tem nos mobilizado: após a crise, seremos mais humanos?
Em termos educacionais, esta
questão configura-se como crucial, haja visto que laboramos com as qualidades
humanas e oferecemos nosso trabalho para a transmissão de nossa memória
cultural e a construção de outros futuros. O humanismo tem uma longa tradição
e, sob um prisma filosófico, atravessa a própria constituição da Modernidade
Ocidental, desde o final do século XV. Sua história é recheada de
controvérsias, o que favorece com que divulgadores e detratores tenham
disputado argumentação académica nos últimos séculos.
Respeitamos e, efetivamente,
conhecemos esta longa tradição, uma vez que a pedagogia moderna é uma das
heranças deste conceito. Porém, começarei a lançar mão de meus argumentos
valendo-me de um ensaio publicado por Richard Sennett, no verão de 2011. De
acordo com o sociólogo, vivenciamos um período no qual o capitalismo nos
orientou a agir no curto prazo, a abdicar de narrativas de vida estáveis e a
assumir a competitividade como nosso valor existencial. Em sua perspectiva, o
velho ideal humanista ainda pode nos ajudar a dar sentido a nossas vidas e
busca na biografia de Pico dela Mirandola uma possível alternativa. À medida em
que o Mestre Artesão nos criou à mercê de nosso arbítrio, precisamos encontrar
nossa própria voz. A inspiração sennettiana ainda nos direciona a pensar sobre
a valorização da diferença e a possibilidade de construir enredos bem-feitos
para nossa existência. Distanciando-se de alguns quadros valorativos sobre o
humanismo, o ensaio de Sennett compreende-o como “um símbolo de honra e não a
denominação de uma visão de mundo esvaziada”. Utilizando-me de argumentos
educacionais, poderíamos pensar que o sociólogo nos desafia a potencializar
outros modelos de formação humana (SILVA, 2015).
A alternativa de reflexão
proposta por Sennett, leva-nos a uma segunda inquietação. O humanismo ainda é
capaz de inspirar um projeto formativo? Os limites do universalismo já não
foram intensamente criticados na pedagogia brasileira? Em um exercício
heterodoxo, vamos buscar os escritos tardios de Paulo Freire para dimensionar
uma educação humanista e crítica. Em sua conhecida “Pedagogia da Autonomia”,
dentre inúmeros pontos que convergiriam para uma agenda humanista, penso que
vale a pena enaltecer a dimensão de que ensinar exige a “consciência do
inacabamento”. A radicalidade de sua esperança no humano torna-se uma aposta na
invenção de nossa existência de forma transformadora.
É na inconclusão do ser, que se
sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e
homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não
foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua
inconclusão é que gerou sua educabilidade. É também na inconclusão de que nos
tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que
se alicerça a esperança (FREIRE, 1999, p. 64).
Ainda precisamos retomar a
pergunta que nos orienta nessa reflexão: a defesa do humanismo é compatível com
uma educação pós-capitalista? Após termos retomado algumas leituras de Freire e
Sennett, considero pertinente trazer a última obra de Paul Mason, intitulada
“Clear Bright Future”. Os escritos deste jornalista, bastante perspicaz,
provocam-nos a tomar posição frente aos novos fascismos emergentes e a defesa
do humano. Em suas palavras, “para liberar o potencial de elevação do bem-estar
humano que envolve as novas tecnologias, temos que fazer algo humano para nos
proteger”. As crises que enfrentamos, em sua abordagem, estão enraizadas na
erosão do próprio significado de ser humano. Isto implica redimensionar nosso
compromisso com a democracia e a revisar o modelo económico predominante.
Reforçar o humanismo, então, apresenta-se como uma atitude de resistência e
favorece a reinscrição da formação humana sob novos princípios.
Tal como assinalamos desde a
epígrafe desse texto, o humanismo pode se constituir como um dos pilares para
uma educação pós-capitalista. Com a música de Milton Nascimento e Fernando
Brant, podemos nos inspirar a pensar em uma educação em que “toda vez que a
bruxa me assombra / o menino me dá a mão / E me fala de coisas bonitas que eu
acredito que não deixarão de existir”. Que a educação humanista e
pós-capitalista, pelo menos, ajude-nos a seguir acreditando nas coisas bonitas
que vêm de nossas meninas!
Referências:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da
Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 14a ed.São Paulo: Paz
e Terra, 1999.
MASON, Paul. Por un futuro
brillante: una defensa radical del ser humano. Barcelona: Paidós, 2020.
SENNETT, Richard. Humanism. The
Hedgehog Review, v. 13, n. 2, p. 21-30, summer 2011.
SILVA, Roberto Rafael Dias da. Sennett
& a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
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