segunda-feira, 18 de maio de 2020

Brasil | O capitão colide com os limites da necropolítica



Algo crucial à narrativa bolsonarista manqueja com a pandemia. Se o vírus ameaça a humanidade toda, como negar que estamos no mesmo barco? E se as políticas públicas tornaram-se indispensáveis, que sustentará o ultra-individualismo?

Ruy Braga | Outras Palavras | Imagem: Pieter Paul Rubens, Cabeça de Medusa (1616-17)

A aposta deste artigo é que a atual pandemia, ao esgarçar o tecido social, fatalmente mudará os rumos da política brasileira. Resta saber para onde. Ainda que opaca, uma nova agenda econômica e política está sendo delineada neste exato momento. E, se não estamos diante de uma alteração passageira da cena política nacional, quais seriam suas determinações sociológicas mais profundas? Como se deslocarão as classes, sobretudo os trabalhadores precários mais expostos aos riscos sanitários e aos efeitos economicamente deletérios da pandemia? Afinal, qual é o impacto previsível da atual crise sobre o projeto político bolsonarista?

Em primeiro lugar é necessário lembrar que o governo Bolsonaro representa um projeto necropolítico de poder cujo propósito consiste em mobilizar permanentemente parte da sociedade contra um inimigo interno desumanizado e, portanto, passível de eliminação. Até o advento da Covid-19, o papel desse “outro desumanizado” foi ocupado, com diferentes ênfases e em diferentes contextos, pelos “vagabundos” e “bandidos”, grosseiramente identificados com os militantes dos mais diferentes matizes de esquerda, em especial os sindicalistas e os corruptos ligados por laços inconfessáveis ao establishment político nacional. A conclusão é cristalina: para “salvar a Nação” de seus inimigos internos, é necessário pôr um fim à democracia tal como desenhada pela Constituição de 1988 e à sua pletora de direitos humanos e sociais, instrumentalizados por vagabundos e bandidos.

O projeto em curso de subversão da democracia brasileira alinhou-se, até o advento do coronavírus, a um conjunto de outras experiências internacionais, principalmente a estadunidense e a húngara, que pipocaram após a crise de 2008. Porém, com uma notável diferença: ao contrário dos regimes liderados por Donald Trump ou Viktor Orbán, o modelo brasileiro adotou uma estratégia econômica ultraneoliberalizante cujos cortes de gastos públicos impedem, por parte do bolsonarismo, concessões aos subalternos, como são os casos, por exemplo, do pleno emprego nos Estados Unidos e da reserva de mercado aos trabalhadores nacionais na Hungria. Em uma situação como essa, o que fazer para assegurar alguma capilaridade popular ao projeto necropolítico?


“Afinidades eletivas”

Até bem recentemente, a solução para a quadratura do círculo consistia em patrocinar uma agenda ultraconservadora de costumes alinhada aos anseios do fundamentalismo cristão, em especial da ascendente direita evangélica. Contudo, é bastante incerta e tortuosa essa passagem de valores reacionários para concessões materiais aos subalternos, ainda mais em um contexto econômico marcado por informalização das relações trabalhistas, aumento do desemprego/subemprego e subsequente compressão dos rendimentos do trabalho derivada da agenda ultraneoliberal do ministro Paulo Guedes.

Nossa hipótese é de que, até a pandemia, o alinhamento popular ao projeto bolsonarista nascido durante a campanha presidencial de 2018 deveu-se, em larga medida, a uma “afinidade eletiva” entre uma certa teologia neopentecostal e a “viração” típica do emprego informal tal como observamos nas periferias do país. Aqui, talvez seja conveniente uma rápida digressão sociológica. Desde que a expressão “afinidades eletivas” foi alçada por Max Weber à posição de conceito clássico da sociologia, a relação entre doutrinas religiosas e diferentes ethos econômicos deixou de ocupar um espaço central na atividade investigativa dos sociólogos.

Ao menos quando pensamos nos vínculos entre interesses de classe – sobretudo das classes subalternas, e visões sociais de mundo vertebradas por dogmas transcendentes –, reflexões a respeito das tais afinidades deslocaram-se para um plano subsidiário, refugiando-se, quando muito, em áreas bastante especializadas do campo científico. Em larga mirada, a preocupação com o tema deslocou-se para a historiografia, como bem demonstra, por exemplo, A formação da classe operária inglesa (1963), trabalho mais afamado de E. P. Thompson. No caso brasileiro, se os fundamentos econômicos da religiosidade popular deixaram relativamente de figurar entre as preocupações centrais de nossas pesquisas, faz falta olharmos para o espírito popular em busca de alguma iluminação para as cores sombrias que matizam a crise atual.

Assim, algo que sempre chamou minha atenção na maneira como Weber construiu seu conceito é que a relação de afinidade eletiva intermediava estruturas sociais – notoriamente a ascese protestante e a inclinação para a acumulação de capital –, sem que isso criasse uma nova substância social, uma nova síntese. Ou seja, mesmo que a interação produzisse consequências significativas, não ocorria nenhuma modificação notável na constituição dos componentes iniciais. O protestantismo, assim como o capitalismo, conservou sua própria legalidade, evoluindo historicamente de forma mais ou menos autônoma um em relação ao outro. Daí o próprio Weber lembrar-se de nos alertar que a afinidade entre a ética protestante e o espírito do capitalismo se perdeu nos tempos da acumulação originária de capital, restando quase nada nos dias atuais daquele “sóbrio capitalismo” sintetizado nas prédicas de Benjamin Franklin.

Ainda assim, exatamente um século após a edição definitiva de seu trabalho mais afamado, outra relação de afinidade eletiva, aparentada à estudada pelo sociólogo de Heidelberg, parece ter se enraizado na sociedade brasileira com a força de um preconceito popular: a doutrina neopentecostal da prosperidade e o espírito do empreendedorismo popular. Aqui, coloca-se o problema de buscar compreender em que medida a atração entre uma crença religiosa e uma ética profissional influenciou o desenvolvimento dessa cultura material que, na ausência de melhor expressão, chamaremos de neoliberalismo.

O crescimento do movimento neopentecostal no país é largamente estudado pela bibliografia especializada. Ricardo Mariano e Ronaldo de Almeida, por exemplo, são dois incontornáveis experts no assunto. Também não é segredo que o aumento expressivo das hostes evangélicas ocorreu naquelas regiões e grupos abandonados por décadas de elitização do catolicismo. Também é compreensível que a hipertrofia das favelas e das comunidades periféricas em condições notoriamente precárias tenha fortalecido entre os subalternos a busca por promessas de segurança material e consolo espiritual. O que permanece ainda um tanto opaco é por que uma teologia que advoga o direito ao bem-estar físico do crente se aproximou de forma tão íntima das formas mais ou menos tradicionais de “viração”, isto é, o empreendedorismo popular muito comumente verificado na economia informal, afastando-se, em contrapartida, da gramática dos direitos sociais.

Uma hipótese plausível arriscaria combinar duas ordens de razões: uma de natureza mais objetiva, digamos, isto é, a precarização das condições de reprodução dos trabalhadores pobres, com a consequente mitigação da promessa dos direitos, e outra um pouco mais subjetiva, ou seja, o pragmatismo popular capaz de reconhecer na doutrina neopentecostal uma poderosa aliada na interpretação de como opera o neoliberalismo. Assim, a responsabilidade financeira e o fortalecimento individual enfatizados pela teologia da prosperidade teriam condições de aderir a um contexto geral marcado pelo avanço da insegurança laboral, da regressão dos direitos sociais e da mercantilização das cidades e das comunidades.

Quando a perspectiva do progresso coletivo via fortalecimento de direitos universais desapareceu do horizonte, sobretudo dos trabalhadores jovens, como tive oportunidade de observar em 2019 ao participar de uma pesquisa sobre trabalho e sofrimento psíquico, e a competição por oportunidades de negócio na informalidade aumentou devido ao aumento do desemprego, a fé em um Deus que recompensa os esforços individuais transformou-se em aliado poderoso na labuta cotidiana. Se imaginar um futuro mais acolhedor tendo em vista, por exemplo, o acesso à aposentadoria tornou-se um desejo praticamente irrealizável para 40 milhões de trabalhadores informais, a mensagem trazida pelas Igrejas neopentecostais parece a única esperança: “Deus quer ver seu povo seguro e próspero”.

Para tanto, são necessários o dízimo e a confissão positiva. Para alguém desesperançado em relação às soluções coletivas mais tradicionais, como os partidos políticos e/ou os sindicatos, por exemplo, trata-se de um caminho crível para o progresso material. Além de um motivo poderoso de subjetivação da disciplina do trabalho. A fim de demonstrar as bênçãos de Deus sobre o crente, a ênfase no dízimo transforma-se em força motriz privilegiada para a prosperidade econômica e consequentemente para a disciplinarização do corpo do trabalhador. Quando pesquisamos o trabalho informal, tais práticas implicam jornadas em geral muito longas, a convivência com a violência social e com a irregularidade de rendimentos, os incontáveis deslocamentos pela cidade e quadros críticos de fadiga crônica. Em condições tão extremas, só mesmo a fé no cumprimento da promessa divina da prosperidade econômica é capaz de sustentar a volição do trabalhador pobre.

Até o surgimento da praga bíblica do coronavírus, a quadratura do círculo encontrada pelo bolsonarismo parecia estar funcionando relativamente bem. Afinal, o apoio daqueles que vivem com renda entre dois e cinco salários mínimos manteve-se firme, mesmo diante do crescimento econômico pífio colhido pelo governo em 2019. As principais lideranças evangélicas seguem firmes no barco bolsonarista, endossando as mais destrambelhadas atitudes do presidente autoritário. E a contraposição estimulada pelas milícias virtuais entre o “vagabundo” e o “pai de família” continuava alimentando ressentimentos no meio de amigos e parentes.

Pressionando o carisma

No entanto, algo estratégico à narrativa necropolítica começou a manquejar com a chegada da pandemia. Ao fim e ao cabo, o projeto autoritário de Bolsonaro depende de uma habilidade importante: a fabricação de um inimigo interno (o petista corrupto, o vagabundo da ONG, o favelado bandido, a “feminazi” etc.) escolhido conforme as conveniências do momento para mobilizar suas hostes reacionárias. Daí o verdadeiro curto-circuito que estamos observando no governo. Afinal, o que fazer quando o inimigo interpela a humanidade como um todo, e não apenas parte dela, aquela mais desavisada e susceptível às fake news? Como sustentar um projeto necropolítico quando estamos todos no mesmo barco ou quando o inimigo deixa de ser “desumanizável” por já não ser humano?

Até o momento, a estratégia bolsonarista tem se agarrado encarniçadamente ao modelo necropolítico, ou seja, tem buscado reinventar o inimigo interno. A Covid-19 não passaria de uma “gripezinha”. Na verdade, o perigo seria a aliança entre governadores, presidente do Congresso, juízes do Supremo e a rede Globo, que conspiram contra o governo federal por apoiarem as medidas de isolamento social. O argumento negacionista pode flutuar um pouco, às vezes admitindo certos riscos trazidos pela pandemia para os idosos. Mas o verdadeiro perigo seria a ardilosa conspiração contra o “mito”.

O que chama a atenção é que a estratégia bolsonarista logrou até certo ponto reinventar a polarização necropolítica, levando pessoas às ruas em carreatas a fim protestar contra o isolamento social. Por um lado, temos os alinhados ao discurso presidencial, segundo o qual o sistema político tradicional e a rede Globo semeiam a morte econômica da população pobre ao advogar medidas de isolamento que inviabilizam os pequenos negócios e a economia informal. Por outro lado, temos os perfilados com a Organização Mundial de Saúde (OMS), esgrimindo gráficos epidemiológicos em defesa da testagem em massa e do isolamento social como a maneira mais eficiente de evitar milhares de mortes físicas. O negacionismo bolsonarista elegeu até seu campeão na batalha contra o vírus: a cloroquina e a hidroxicloroquina. Ou seja, a guerra entre “bolsominions” e “petralhas” foi substituída por uma furiosa batalha paneleira entre “cloroquiners” e “quarenteners”. E a necropolítica agora alimenta uma escolha de Sofia: o que é preferível, a morte econômica ou a morte física?

Ao mesmo tempo que trata de reinventar sua estratégia em torno da mobilização permanente contra o inimigo interno, o governo federal tenta se livrar do ônus da crise econômica vindoura, transferindo-o para o colo de prefeitos e governadores que adotaram medidas isolacionistas. Ou seja, busca se livrar da culpa pela crise social que se avizinha, tentando assumir a capa do defensor do emprego e da renda dos trabalhadores precários. Assim, Bolsonaro imagina localizar-se confortavelmente no hipotético cenário da contenção do vírus somada a uma crise econômica branda. Poderia então surgir como único líder de um país relevante a afirmar que o remédio do isolamento era mais amargo que a cura da pandemia.

Há alguma chance de o ardil político bolsonarista alcançar êxito? Grande parte da equação montada pelo “gabinete do ódio” presidencial depende da resiliência das atuais bases populares do governo. O cálculo seria mais ou menos o seguinte: se chegar ao fim da crise contando ainda com o apoio de cerca de 20% do eleitorado, Bolsonaro termina o mandato ainda com chances de figurar em 2022 entre os dois candidatos nas urnas do segundo turno. E o medo do retorno da esquerda ao poder lhe asseguraria um novo mandato. Trata-se de uma aposta altamente arriscada, pois subsumida aos humores populares em um momento de crise social. Aqui, vale lembrar que nos referimos basicamente aos evangélicos, que em 2018 garantiram ao candidato ultradireitista uma dianteira de mais de 10 milhões de votos sobre Fernando Haddad.

No entanto, como bem nos lembra Max Weber em sua célebre sociologia política, quando a fé no cumprimento da promessa divina que sustenta a adesão do crente ao líder carismático vê-se abalada pela fragilidade das provas da graça, inicia-se um interregno reflexivo que usualmente progride na direção do abandono do chefe. Afinal, a lealdade do crente ao suposto escolhido por Deus nunca é incondicional e pode avançar na direção de um divórcio litigioso. Se o desemprego aumentar ainda mais e, por consequência, os subempregos explodirem em número, deteriorando as condições de vida e de trabalho dos mais pobres, é bem possível que testemunhemos uma reviravolta na relação de afinidade eletiva entre a ética neopentecostal da prosperidade e o empreendedorismo econômico plebeu que, até o momento, favoreceu a adesão de setores populares ao carisma de Jair Messias Bolsonaro.

O presidente ultradireitista apostou em uma crise de saúde pública mais ou menos controlada pelos governos estaduais e municipais, seguida por uma recuperação econômica rápida nos próximos anos como forma de assegurar a popularidade de seu projeto autoritário. Para tanto, conta com alguns trunfos importantes, como o pagamento do auxílio emergencial de 600 a 1.200 reais aos trabalhadores informais. Não resta dúvida de que, num primeiro momento, o governo será beneficiado pelos pagamentos emergenciais. Todavia, não está claro que efeito político de médio prazo a experiência popular em relação à renda cidadã teria sobre a massa precarizada de quase 90 milhões de pessoas que se inscreveram no programa apenas até o fechamento desta edição, no mês de abril. Afinal, o ultraneoliberalismo de Paulo Guedes preconizou sistematicamente o desmanche de direitos sociais protetivos. E seu êxito foi percebido por muitos.

Em 2019, quando participei de uma pesquisa sobre trabalho e sofrimento psíquico, tive a oportunidade de verificar que muitos jovens entrantes no mercado de trabalho informal nem pensavam em se aposentar algum dia. A maior parte nem ao menos mirava um emprego com carteira de trabalho. Esses jovens consideravam a proteção social excessivamente distante de suas possibilidades, afirmando até com certo orgulho que não precisavam receber “favores” de governo nenhum. Quando indagados sobre o futuro, esses jovens professavam sua fé na providência divina: “Deus proverá meu sustento”. Não é difícil identificar uma ética influenciada pela teologia da prosperidade vertebrando a visão social de mundo desses jovens.

No entanto, como conciliar este ethos laboral com a necessidade de acessar uma política pública emergencial desenhada para enfrentar o achatamento dos rendimentos dos informais causado por medidas de isolamento social? Ou como mitigar os riscos da pandemia quando os trabalhadores precários estão entre os grupos mais expostos à disseminação do vírus? É pouco crível o cenário futuro traçado pelo governo ultradireitista, apoiado em uma pandemia controlada seguida por rápida recuperação econômica. Resta saber como as bases populares do projeto autoritário reagirão quando perceberem que, ao contrário do que dizem o ministro da Economia e os pastores televangelistas, a ação do Estado será cada dia mais importante para assegurar a subsistência dos trabalhadores pobres em meio à pandemia.

Aparentemente, o apoio das comunidades periféricas às medidas de isolamento social esboça os contornos da mudança no humor popular. O bolsonarismo pode estar prestes a descobrir que, mesmo em sua versão neoliberal, a teologia da prosperidade deve ser capaz de agasalhar aqueles que aderirem a ela. E que, ao fim e ao cabo, o projeto necropolítico levado adiante pela “familícia”, com ou sem distribuição massiva de cloroquina e hidroxicloroquina, contradiz o amparo espiritual e a prosperidade material que o crente busca nessa religião. Afinal, o bolsonarismo não é uma nova substância social criada pelas afinidades eletivas existentes entre a teologia da prosperidade e o empreendedorismo popular. Na realidade, trata-se apenas de outro falso ídolo com a cabeça de ouro, o peito de prata, as pernas de ferro e os pés de barro.

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