sábado, 16 de maio de 2020

Fascismo e “regime de sonho”


José Goulão | AbrilAbril | opinião

Vivemos os dias de hoje envolvidos em promessas irrealistas, declarações de boas intenções e embalados pelo slogan de culto a dizer-nos que «vai ficar tudo bem».

Completaram-se 75 anos sobre a derrota militar do nazi-fascismo. Então, as chamadas democracias liberais juntaram-se às «democracias iliberais» em redor da agenda de comemorações estabelecida por estas e que apaga da História o decisivo contributo da União Soviética para a vitória – ditando assim a segunda morte das mais de 26 milhões pessoas sacrificadas neste país para que ela fosse possível. Não foi uma celebração, foi uma vingança.

Nada mais natural. O fascismo latente e em exercício nas nossas sociedades não iria tolerar que se assinalasse com rigor histórico, humanista e libertador o dia da sua derrocada. Num momento em que os herdeiros políticos dos vencidos já têm de novo rédeas de poder e ditaram o ambiente político-ideológico-económico da abordagem do epílogo da Segunda Guerra Mundial seria contra-natura qualquer evocação patrocinada pelo «espírito» da NATO que reflectisse seriamente sobre as causas e consequências da derrota do nazi-fascismo.

Os episódios associados à efeméride confirmam a influência que as tendências fascistas voltaram a exercer sobre a sociedade ocidental e a maneira como algumas importante correntes políticas não-fascistas, arrastadas pelo vigor da ditadura económica, se vão rendendo aos avanços do autoritarismo.

Não é um fascismo de botas cardadas, de impressionantes e militarizadas mobilizações de massas e apoiado no terror espalhado por grupos de choque – embora estes andem por aí, como se percebe nos Estados Unidos, no Brasil, na Colômbia, na Hungria. É um fascismo aparentemente mais polido, movendo-se ainda entre as baias da democracia política formal, insidioso, até bem-falante e elaborado na expressão do racismo e da xenofobia.

E não se pense que o fascismo que nos cerca é apenas o de grupos e movimentos facilmente identificáveis como tal na sua demagogia, no racismo primário, nas saudades por expressões fascistas de outros tempos, no restauracionismo animado por ânsias de vingança. O novo fascismo não se assume como tal, está ainda em rivalidade com essas correntes, digamos, tradicionais, e tem ambições globalizantes.


A casa-mãe e os pais do neoliberalismo

Há um conceito económico de sociedade unindo todas as manifestações de fascismo que nos ameaçam: o neoliberalismo como estado selvagem do capitalismo. O fascismo é a casa-mãe do neoliberalismo implantado em 1973 pelos Chicago Boys no Chile de Pinochet, dando corpo às ideias de Friedrich von Hayek e Milton Friedman – ambos devidamente agraciados com o Prémio Nobel. Foi «encontrado o regime de sonho do capitalismo», sentenciou então a revista The Economist, a bíblia destes assuntos.

O neoliberalismo é o «regime de sonho» que nos governa e que dita a política como qualquer coisa subsidiária da economia – a economia da «mão invisível» do mercado, como pregava von Hayek. Governa-nos à escala da União Europeia e tendencialmente global porque a sua consolidação a partir do início dos anos oitenta do século passado se processou com a chamada globalização económica, ideológica e tecnológica suportada num pensamento único decorrente das grandes centrais de informação e propaganda que formatam a comunicação social corporativa. Uma globalização neoliberal que se tornou programática e obrigatória através do «Consenso de Washington» de 1989 – a instauração do neoliberalismo como fascismo económico que viria a modelar a União Europeia e a dominar as práticas económicas e financeiras à escala mundial. Num quadro de unilateralismo geopolítico e geoestratégico sustentado pelo aparelho militar mundializante da NATO.

De Reagan e Thatcher a Merkel, de Blair a Bush, Hollande e Mark Rutte, do casal Clinton a Cavaco, Barroso, Conte, van der Leyen e muitos outros com variados rótulos políticos foi-se casando a democracia política formal com o absolutista e inquestionável fascismo económico. «Algumas das linhas aplicadas no Chile são inaceitáveis», desculpava-se Margaret Thatcher em carta ao seu guru van Hayek. «Por vezes o processo poderá parecer dolorosamente lento mas estou certa de que o concretizaremos à nossa maneira e no nosso tempo». Então, acrescentou, «ficará para durar».

Ele aí está, o neoliberalismo de hoje, ao serviço de uma elite cada vez mais restrita em número dos ultrajantemente ricos e ao mesmo tempo globalista na sua amplitude. A selectividade do grupo, a vocação arbitrária e autoritária das instituições e dos mecanismos transnacionais foi sacrificando pelo caminho algumas burguesias nacionais ambiciosas que, como reacção, foram buscar inspiração política e social ao fascismo retinto sem porem minimamente em causa o código de conduta neoliberal – abrindo uma guerra dentro do «regime de sonho»; a qual, no entanto, não é suficientemente fratricida para gerar discordâncias quanto ao espírito com que foi evocado o fim da Segunda Guerra Mundial. Olhemos também, nesse âmbito, os paninhos quentes com que as instâncias de Bruxelas, Parlamento Europeu incluído, tratam as «democracias iliberais» – o respeitoso pudor diz tudo – na Hungria, Polónia, nos Estados bálticos, na Croácia e outros para entender como prevalece a convergência em relação ao modelo económico neoliberal. Sem esquecer que foi a União Europeia, de braço dado com a corrente política de referência do neoliberalismo globalista, o Partido Democrático dos Estados Unidos, que deu o golpe dito «democrático» na Ucrânia que se institucionalizou como regime, de facto, fascista, europeísta, atlantista e neoliberal.

O efeito COVID-19

A fronteira entre o «liberal» e o «iliberal», entre a democracia formal e o fascismo de velho-novo tipo é, portanto, bastante difusa. Sobretudo nas fases de crise aguda do capitalismo como a que agora atravessamos.

É inegável que existe um confronto político aceso e estratégico entre as correntes neoliberais globalista e fascista porque há acentuados desequilíbrios na repartição do maná que resulta da gestão totalitária de um mundo onde as fronteiras não perturbam quem tem a força do seu lado. A guerra está ao rubro no coração do imperialismo e do unilateralismo, os Estados Unidos da América, onde o fascismo que tomou conta do Partido Republicano veio abalar os feudos do globalismo que se expressam fundamentalmente através do aparelho do Partido Democrático e respectivas emanações do Fórum Económico Mundial e da falsa «Agenda Verde». E a partir daí o conflito dissemina-se por todo o cenário ocidental: de um lado ainda a democracia formal como cobertura política para o totalitarismo económico; do outro, o fascismo – sem disfarces apesar dos rótulos eufemísticos que lhe aplicam.

A pandemia de COVID-19 e os problemas económicos que lhe estão associados fizeram explodir o neoliberalismo numa crise que já estava anunciada, eventualmente sem a gravidade que agora assume.

O neoliberalismo vai querer sobreviver – «ficará para durar», profetizou Thatcher. Por isso, há que esperar uma resposta ao nível da gravidade dos problemas que o sistema enfrenta para garantir os seus objectivos de sempre, o máximo fluxo de lucros.

Não surpreenderá, portanto, que entre os danos colaterais da resposta «musculada» – termo que cedo começou a fazer carreira na comunicação social corporativa – esteja a própria democracia formal. «Temporariamente», prometem; estas coisas são sempre «temporárias» antes de se eternizarem. «As restrições à democracia podem ser necessárias num período de transição», já dizia Friedrich van Hayek.

No seu afã pela sobrevivência, o neoliberalismo tenderá a encaminhar-se para a casa-mãe fascista. Para salvaguardar as leis de mercado, «um governo ditatorial pode ser mais liberal que uma democracia», escreveu o mesmo Friedrich van Hayek. E se «a opção totalitária é a única oportunidade que existe num determinado momento, então pode ser a melhor solução», acrescentou em 1981 ao jornal chileno El Mercurio, órgão oficioso da ditadura fascista de Pinochet e dos Chicago Boys.

Não será difícil imaginar o lado pelo qual o neoliberalismo vai nivelar a sua resposta política às dificuldades económicas resultantes da pandemia. O globalismo escorregará naturalmente para o autoritarismo «iliberal» na convergência recomendada pelos ideólogos históricos do neoliberalismo.

Pacote autoritário em vigor

Actos como a caça aos dados pessoais dos cidadãos a pretexto de medidas sanitárias, as restrições a direitos e liberdades sem prazo fixo, a imposição arbitrária de novas modalidades laborais, os controlos de movimentos, a multiplicação de medidas de última geração tecnológica para seguir rastos das pessoas, incluindo a aplicação de chips de detecção – como sugere Netanyahu, homem experiente em metodologias fascistas – fazem parte de um pacote autoritário já activo. Não são medidas avulsas; uma vez aplicadas entrarão no acervo dos mecanismos de controlo de pessoas que se tornarão irreversíveis, como vem alertando Edward Snowden baseado na sua experiência de trabalho nas agências norte-americanas de espionagem.

Vivemos os dias de hoje envolvidos em promessas irrealistas – como a de não existir a ameaça de mais austeridade –, declarações de boas intenções e embalados pelo slogan de culto a dizer-nos que «vai ficar tudo bem». Em paralelo, o «regime de sonho do capitalismo», de pesadelo para milhares de milhões de habitantes do planeta, vai usando o pretexto do COVID-19 e do pós-pandemia para tecer o colete-de-forças com que pretende imobilizar-nos, convencendo-nos da justeza da sua aplicação através do reforço dos mecanismos censórios contra todos os meios que tenham a ousadia de não alinharem com a opinião única, a que é manipulada pela «mão invisível» do mercado.

Unidas na negação da História da Segunda Guerra Mundial e num ritual de vingança dos que a perderam, as democracias liberais e «iliberais» convergem também na plataforma fascista que assegurará a sobrevivência do neoliberalismo como «regime de sonho do capitalismo» – que não hesitará em atropelar os colaborantes não-fascistas se a tanto for preciso chegar.

No entanto, apesar da complexidade e dos perigos da situação, com mais ou menos apertados coletes-de-forças, o problema de fundo não se alterou: para extirpar o monstro é necessário derrotar o capitalismo.

Este artigo é um exclusivo O Lado Oculto / AbrilAbril

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