José Goulão | AbrilAbril | opinião
Vivemos os dias de hoje
envolvidos em promessas irrealistas, declarações de boas intenções e embalados
pelo slogan de culto a dizer-nos que «vai ficar tudo bem».
Completaram-se 75 anos sobre a
derrota militar do nazi-fascismo. Então, as chamadas democracias liberais
juntaram-se às «democracias iliberais» em redor da agenda de comemorações
estabelecida por estas e que apaga da História o decisivo contributo da União
Soviética para a vitória – ditando assim a segunda morte das mais de 26 milhões
pessoas sacrificadas neste país para que ela fosse possível. Não foi uma
celebração, foi uma vingança.
Nada mais natural. O fascismo
latente e em exercício nas nossas sociedades não iria tolerar que se
assinalasse com rigor histórico, humanista e libertador o dia da sua derrocada.
Num momento em que os herdeiros políticos dos vencidos já têm de novo rédeas de
poder e ditaram o ambiente político-ideológico-económico da abordagem do
epílogo da Segunda Guerra Mundial seria contra-natura qualquer evocação
patrocinada pelo «espírito» da NATO que reflectisse seriamente sobre as causas
e consequências da derrota do nazi-fascismo.
Os episódios associados à
efeméride confirmam a influência que as tendências fascistas voltaram a exercer
sobre a sociedade ocidental e a maneira como algumas importante correntes
políticas não-fascistas, arrastadas pelo vigor da ditadura económica, se vão
rendendo aos avanços do autoritarismo.
Não é um fascismo de botas
cardadas, de impressionantes e militarizadas mobilizações de massas e apoiado
no terror espalhado por grupos de choque – embora estes andem por aí, como se
percebe nos Estados Unidos, no Brasil, na Colômbia, na Hungria. É um fascismo
aparentemente mais polido, movendo-se ainda entre as baias da democracia
política formal, insidioso, até bem-falante e elaborado na expressão do racismo
e da xenofobia.
E não se pense que o fascismo que
nos cerca é apenas o de grupos e movimentos facilmente identificáveis como tal
na sua demagogia, no racismo primário, nas saudades por expressões fascistas de
outros tempos, no restauracionismo animado por ânsias de vingança. O novo
fascismo não se assume como tal, está ainda em rivalidade com essas correntes,
digamos, tradicionais, e tem ambições globalizantes.
A casa-mãe e os pais do
neoliberalismo
Há um conceito económico de
sociedade unindo todas as manifestações de fascismo que nos ameaçam: o
neoliberalismo como estado selvagem do capitalismo. O fascismo é a casa-mãe do
neoliberalismo implantado em 1973 pelos Chicago Boys no Chile de Pinochet,
dando corpo às ideias de Friedrich von Hayek e Milton Friedman – ambos
devidamente agraciados com o Prémio Nobel. Foi «encontrado o regime de sonho do
capitalismo», sentenciou então a revista The Economist, a bíblia destes
assuntos.
O neoliberalismo é o «regime de
sonho» que nos governa e que dita a política como qualquer coisa subsidiária da
economia – a economia da «mão invisível» do mercado, como pregava von Hayek.
Governa-nos à escala da União Europeia e tendencialmente global porque a sua
consolidação a partir do início dos anos oitenta do século passado se processou
com a chamada globalização económica, ideológica e tecnológica suportada num
pensamento único decorrente das grandes centrais de informação e propaganda que
formatam a comunicação social corporativa. Uma globalização neoliberal que se
tornou programática e obrigatória através do «Consenso de Washington» de 1989 –
a instauração do neoliberalismo como fascismo económico que viria a modelar a
União Europeia e a dominar as práticas económicas e financeiras à escala
mundial. Num quadro de unilateralismo geopolítico e geoestratégico sustentado
pelo aparelho militar mundializante da NATO.
De Reagan e Thatcher a Merkel, de
Blair a Bush, Hollande e Mark Rutte, do casal Clinton a Cavaco, Barroso, Conte,
van der Leyen e muitos outros com variados rótulos políticos foi-se casando a
democracia política formal com o absolutista e inquestionável fascismo
económico. «Algumas das linhas aplicadas no Chile são inaceitáveis»,
desculpava-se Margaret Thatcher em carta ao seu guru van Hayek. «Por vezes o
processo poderá parecer dolorosamente lento mas estou certa de que o
concretizaremos à nossa maneira e no nosso tempo». Então, acrescentou, «ficará
para durar».
Ele aí está, o neoliberalismo de
hoje, ao serviço de uma elite cada vez mais restrita em número dos
ultrajantemente ricos e ao mesmo tempo globalista na sua amplitude. A
selectividade do grupo, a vocação arbitrária e autoritária das instituições e
dos mecanismos transnacionais foi sacrificando pelo caminho algumas burguesias
nacionais ambiciosas que, como reacção, foram buscar inspiração política e
social ao fascismo retinto sem porem minimamente em causa o código de conduta
neoliberal – abrindo uma guerra dentro do «regime de sonho»; a qual, no
entanto, não é suficientemente fratricida para gerar discordâncias quanto ao
espírito com que foi evocado o fim da Segunda Guerra Mundial. Olhemos também,
nesse âmbito, os paninhos quentes com que as instâncias de Bruxelas, Parlamento
Europeu incluído, tratam as «democracias iliberais» – o respeitoso pudor diz
tudo – na Hungria, Polónia, nos Estados bálticos, na Croácia e outros para
entender como prevalece a convergência em relação ao modelo económico
neoliberal. Sem esquecer que foi a União Europeia, de braço dado com a corrente
política de referência do neoliberalismo globalista, o Partido Democrático dos
Estados Unidos, que deu o golpe dito «democrático» na Ucrânia que se
institucionalizou como regime, de facto, fascista, europeísta, atlantista e
neoliberal.
O efeito COVID-19
A fronteira entre o «liberal» e o
«iliberal», entre a democracia formal e o fascismo de velho-novo tipo é,
portanto, bastante difusa. Sobretudo nas fases de crise aguda do capitalismo
como a que agora atravessamos.
É inegável que existe um
confronto político aceso e estratégico entre as correntes neoliberais
globalista e fascista porque há acentuados desequilíbrios na repartição do maná
que resulta da gestão totalitária de um mundo onde as fronteiras não perturbam
quem tem a força do seu lado. A guerra está ao rubro no coração do imperialismo
e do unilateralismo, os Estados Unidos da América, onde o fascismo que tomou
conta do Partido Republicano veio abalar os feudos do globalismo que se
expressam fundamentalmente através do aparelho do Partido Democrático e
respectivas emanações do Fórum Económico Mundial e da falsa «Agenda Verde». E a
partir daí o conflito dissemina-se por todo o cenário ocidental: de um lado
ainda a democracia formal como cobertura política para o totalitarismo
económico; do outro, o fascismo – sem disfarces apesar dos rótulos eufemísticos
que lhe aplicam.
A pandemia de COVID-19 e os
problemas económicos que lhe estão associados fizeram explodir o neoliberalismo
numa crise que já estava anunciada, eventualmente sem a gravidade que agora assume.
O neoliberalismo vai querer
sobreviver – «ficará para durar», profetizou Thatcher. Por isso, há que esperar
uma resposta ao nível da gravidade dos problemas que o sistema enfrenta para
garantir os seus objectivos de sempre, o máximo fluxo de lucros.
Não surpreenderá, portanto, que
entre os danos colaterais da resposta «musculada» – termo que cedo começou a
fazer carreira na comunicação social corporativa – esteja a própria democracia
formal. «Temporariamente», prometem; estas coisas são sempre «temporárias»
antes de se eternizarem. «As restrições à democracia podem ser necessárias num
período de transição», já dizia Friedrich van Hayek.
No seu afã pela sobrevivência, o
neoliberalismo tenderá a encaminhar-se para a casa-mãe fascista. Para
salvaguardar as leis de mercado, «um governo ditatorial pode ser mais liberal
que uma democracia», escreveu o mesmo Friedrich van Hayek. E se «a opção
totalitária é a única oportunidade que existe num determinado momento, então
pode ser a melhor solução», acrescentou em 1981 ao jornal chileno El
Mercurio, órgão oficioso da ditadura fascista de Pinochet e dos Chicago Boys.
Não será difícil imaginar o lado
pelo qual o neoliberalismo vai nivelar a sua resposta política às dificuldades
económicas resultantes da pandemia. O globalismo escorregará naturalmente para
o autoritarismo «iliberal» na convergência recomendada pelos ideólogos
históricos do neoliberalismo.
Pacote autoritário em vigor
Actos como a caça aos dados
pessoais dos cidadãos a pretexto de medidas sanitárias, as restrições a
direitos e liberdades sem prazo fixo, a imposição arbitrária de novas
modalidades laborais, os controlos de movimentos, a multiplicação de medidas de
última geração tecnológica para seguir rastos das pessoas, incluindo a
aplicação de chips de detecção – como sugere Netanyahu, homem experiente em
metodologias fascistas – fazem parte de um pacote autoritário já activo. Não
são medidas avulsas; uma vez aplicadas entrarão no acervo dos mecanismos de
controlo de pessoas que se tornarão irreversíveis, como vem alertando Edward
Snowden baseado na sua experiência de trabalho nas agências norte-americanas de
espionagem.
Vivemos os dias de hoje
envolvidos em promessas irrealistas – como a de não existir a ameaça de mais
austeridade –, declarações de boas intenções e embalados pelo slogan de culto a
dizer-nos que «vai ficar tudo bem». Em paralelo, o «regime de sonho do
capitalismo», de pesadelo para milhares de milhões de habitantes do planeta,
vai usando o pretexto do COVID-19 e do pós-pandemia para tecer o
colete-de-forças com que pretende imobilizar-nos, convencendo-nos da justeza da
sua aplicação através do reforço dos mecanismos censórios contra todos os meios
que tenham a ousadia de não alinharem com a opinião única, a que é manipulada
pela «mão invisível» do mercado.
Unidas na negação da História da
Segunda Guerra Mundial e num ritual de vingança dos que a perderam, as
democracias liberais e «iliberais» convergem também na plataforma fascista que
assegurará a sobrevivência do neoliberalismo como «regime de sonho do
capitalismo» – que não hesitará em atropelar os colaborantes não-fascistas se a
tanto for preciso chegar.
No entanto, apesar da
complexidade e dos perigos da situação, com mais ou menos apertados
coletes-de-forças, o problema de fundo não se alterou: para extirpar o monstro
é necessário derrotar o capitalismo.
Este artigo é um exclusivo O Lado Oculto / AbrilAbril
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