Vai-se desenhando um novo tempo
carregado de velharias e armadilhas
Carvalho da Silva | Jornal de Notícias | opinião
Só uma forte politização da
crise, um debate político que evidencie as contradições, injustiças e
irracionalidades do regime socioeconómico em que vivemos pode descobrir formas
de travar os descalabros e o sofrimento que se desenham no horizonte, e gerar
lastro para mudanças positivas. O susto "simétrico" produzido pela
pandemia no seu início já é passado. Muitas juras de solidariedade são
esquecidas e apresentam-se de volta o egoísmo e o utilitarismo.
É preciso remar contra a maré que
está a encher. A última semana confirma que não podemos ficar à espera de
solidariedade da União Europeia (UE). Dali não se perspetiva mais que uma
montanha de crédito (aumento da dívida), acompanhado de algumas subvenções para
disfarçar, na certeza de que tudo pagaremos com língua de palmo. A hegemonia do
euroliberalismo, assumida pelas maiores forças políticas e económicas
nacionais, impõe-nos o seguidismo face aos poderes dominantes na UE e o
perigoso adiamento da preparação do país para os desastres europeus que pairam
no ar. Este fechamento favorece o avanço das forças ultraconservadoras e
fascistas que agora procuram engordar cavalgando aspetos dolorosos da crise.
Esta evidência, todavia, não afasta o velho vício de alcunhar de antieuropeísta
quem afirma ser preciso pensar em novas soluções.
A profundidade dos bloqueios do
país na sua matriz de desenvolvimento, no perfil da economia, nas
insuficiências do Estado para assegurar os direitos fundamentais às pessoas, no
desequilíbrio das relações laborais em desfavor dos trabalhadores, na falta de
coesão territorial, na rutura de solidariedades e nas desigualdades, estão
muito para além dos rombos provocados pela pandemia: são estruturais. Mas
quando se ensaia a retoma da atividade ressurge em força a defesa de velhas
políticas geradoras desses bloqueios.
Com a agressividade típica de
quem se fecha por falta de razão, o velho centrão de interesses ressurge em
força, e os seus porta-vozes tentam o espezinhamento intelectual e político de
quem busca alternativas. Quem questiona a entrega de mais 850 milhões de euros
ao Novo Banco antes de uma informação clara é chamado de irresponsável, de
colocar o povo a odiar a Banca. O que o povo detesta é a corrupção, os roubos
feitos a partir da gestão e de resoluções desastrosas, a sacralidade dos
compromissos com a Banca em detrimento dos cidadãos. Ora, quando não há
respostas claras fica exposto um enorme campo de manipulação para oportunistas.
Perspetiva-se o enfraquecimento
dos compromissos para consolidar o SNS, o sistema de ensino, a proteção dos
mais pobres e dos trabalhadores. A grande prioridade colocada ao Estado e ao
Orçamento do Estado pelo centrão é salvaguardar os direitos de propriedade e
consolidar a coletivização dos prejuízos. O Estado ter posições decisivas em
setores estratégicos da economia, nem pensar. Até o primeiro-ministro é
criticado se diz que meter dinheiro na TAP deve ter como contrapartida o Estado
ficar com poder decisivo na empresa. A CIP reclama um fundo público para salvar
empresas, mas acrescenta logo que o Estado não pode meter o nariz na gestão.
Dos defensores desta conceção de
regime socioeconómico não se espera nada de novo.
* Investigador e professor
universitário
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