Ergimino Mucale | O País
(mz) | opinião
Desde a conquista da
independência do Reino Unido da Grã-Bretanha, os EUA baptizaram-se como uma
nação respeitadora dos direitos inalienáveis da pessoa humana, como o defendem
os documentos oficiais deste País. Por exemplo, a Declaração da Independência de
1776, afirma: «Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os
homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos
inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade». A
Convenção de Filadélfia, a segunda constituição moderna em vigor mais antiga do
Mundo, apresenta os EUA como uma nação de liberdade, justiça e bem-estar geral.
Estes ideais, combinados com um grande poderio tecnológico, militar e de
manipulação da informação, têm sido usados como pretextos para os Estados
Unidos da América imporem-se globalmente como uma nação democrática exemplar e
como uma autoridade moral.
Evidências históricas,
entretanto, geram cepticismo. Para começar, os EUA nasceram da violência
organizada e da lei do mais forte e foram regados com o sangue de inocentes,
desde os povos nativos, os ameríndios, até os negros. Estes últimos, ainda que
tenham chegado lá na era pré-colombiana, a sua presença massiva naquele país é
devedora ao Comércio Triangular ou Tráfico Negreiro, que os tomou como capital
vendível e comprável e principal motor das economias americana e europeia.
Mesmo depois da conquista da independência, os EUA continuaram a praticar a
escravatura. O próprio Thomas Jefferson, principal autor da Declaração da Independência,
não respeitava as verdades que considerava autoevidentes: apresentava-se como
anti-esclavagista e abolicionista em público enquanto em privado continuava a
ser proprietário de escravos.
Os EUA são um país de dois pesos
e duas medidas. A nível externo vendem-se como pais da democracia, isto é,
defensores dos direitos fundamentais dos seres humanos, um pretexto para a
expansão imperial: imposição antidemocrática da democracia, invasões
terroristas em nome de antiterrorismo, criação de insegurança em nome de
segurança, patrocínio de conflitos em certos países, chantagens económicas e
financeiras, etc. Internamente, este país é terra onde jorra leite e mel para
uma parcela dos seus cidadãos e vale de lágrimas e cemitério para outros. À
antiga linha de cor, que separava negros e brancos, jutou-se a linha social,
que divide pobres e ricos numa mesma sociedade.
A história afroamericana é
marcada pela busca angustiante e incansável de emancipação, por esforços de
transpor a barreira racial-social e aceder aos valores fundantes da nação
norte-americana que só são assegurados para os norte-americanos brancos. Desde
a guerra pela independência, passando pela guerra civil ou Guerra de Cessação
(motivada pela escravatura dos negros) até às duas guerras mundiais, negros e
brancos lutaram lado-a-lado em nome de valores e direitos inalienáveis que
nunca foram garantidos aos afroamericanos. A Guerra de Cessação, ainda que
tenha forçado uma emenda constitucional para pôr fim à escravatura, abriu
espaço para perseguições, linchamentos, sequestros e outras formas de violência
organizada e de motivação racial cujos protagonistas eram membros do Ku Klux
Klan.
É assim que as pessoas negras nos
EUA mobilizaram-se, no começo do século XX, gerando o primeiro Renascimento
Negro. O objectivo central deste movimento era a integração social e política
dos afroamericanos, que inclui a conquista dos direitos civis e da democracia
cultural. Se os artistas foram os principais porta-vozes do movimento, o seu
espírito foi melhor captado pelo filósofo Alain Locke, que lhe deu o nome e
direcção, e a sua legitimação moral foi dada pelo sociólogo W. E. B. Du Bois,
defensor do espírito de bravura e vingança como melhor forma de lidar com a
violência. É o mesmo espírito adotado por alguns dos militantes do que posso
chamar de segundo Renascimento Negro nos EUA, que vai dos anos 50 até aos
finais dos anos 60, como Malcom X. Ao lado deste jovem destemido, apologista do
Nacionalismo Negro nos Estados Unidos e fundador da Organização para a Unidade Afro-Americana,
estava Martin Luther King Jr, proponente de uma revolução negra não-violenta em
vista a construção do sonho de um mundo sem racismo. Duas personalidades
diferentes e duas visões contrastantes, mas o mesmo ideal: garantir a
emancipação política e sociocultural dos afroamericanos.
Ainda que os dois renascimentos,
juntamente com o Pan-africanismo e a Negritude, tenham corroborado para a
reconfiguração da imagem global dos negros e para o melhoramento da condição
negra no Mundo, a emancipação continua a ser negada aos afroamericanos. A
integração e a justiça social ainda são uma miragem. Os afroamericanos
continuam a ser a maior população prisional, a ter altas taxas de desemprego,
mendicidade e delinquência, propositadas para a manutenção do narcisimo branco
e da rediculação dos negros. O recente assassinato macabro do afroamericano
George Floyd por polícias, repetição de uma prática secular, desmascara a
cobardia de um país que tem feito da violência, sobretudo do racsmo e da
guerra, uma forma de fazer política. O grito de Flyod em Minneapolis, «Não
posso respirar», é repetição do já feito pelo seu concidadão Eric Garner, há
seis anos, em Nova
Iorque. É, no fundo, grito de todos os negros do Mundo
– negro é mais uma categoria social, cultural e espiritual do que um fenótipo;
grito das vítimas da necropolítica perpetrada pelo neoliberalismo, um sistema
construido sob bases elitistas, racistas e imperialistas. O sangue de Floyd e o
levantamento popular internacional que tem gerado, augura um terceiro
Renascimento Negro. Está a despontar, herdeiro dos negros do passado, o novo
negro do Século XXI!
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