quinta-feira, 30 de julho de 2020

A nova ordem mundial segundo Pequim

#Escrito e publicado em português do Brasil

Ascensão da China a potência mundial já é realidade há muitos anos, mas não está claro até onde vão as pretensões hegemônicas do gigante asiático, e que papel ele vai reivindicar para si.

Em outubro de 2017, durante o 19º congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), o presidente Xi Jinping declarou que uma nova era havia se iniciado para a China, a qual, "dia após dia, se aproxima do centro do palco mundial".

Mas o que seria uma ordem mundial com a China no centro? "Minha impressão é que as próprias forças políticas em Pequim não sabem exatamente o que querem. Eu diria que elas experimentam segundo Deng Xiaoping", comenta o cientista político alemão Gu Xuewu.

O líder político Xiaoping (1904-1997), que introduziu as reformas econômicas na China na década de 80, cunhou o slogan "Atravessar o rio tateando, pedra após pedra".

Essa incerteza se manifesta também no debate – complexo e cheio de nuances –sobre o papel da China no mundo, conduzido pelos intelectuais do país. A gama das discussões vai desde a aceitação da atual ordem mundial até a ideia de que a China é uma nação predestinada, e o mundo inteiro deve se submeter a sua vontade.

A palavra final em todos os debates na China é sempre do partido, que não tem a ordem mundial como prioridade, analisa o ex-embaixador da Alemanha no país asiático Volker Stanzel. "Ou seja, não há um interesse primário numa ordem mundial reformulada ou no funcionamento da atual ordem mundial, mas em que a China possa se mover no mundo de modo que sejam implementáveis as pretensões do Partido Comunista, as quais servem à manutenção do poder."

Segundo Gu, mesmo assim percebem-se alguns elementos centrais de como a China imagina o mundo: "Em resumo, pode-se dizer que a China deseja uma ordem mundial que seja politicamente multipolar, funcionalmente multilateral e ideologicamente pluralista."

Multipolar é um mundo com mais de um centro de poder, por exemplo Estados Unidos, China, Europa, Rússia e talvez a Índia. Multilateral é um mundo no qual nenhum país dita a agenda mundial, e ela é constantemente negociada entre os vários centros de poder. E ideologicamente pluralista significa que não há apenas uma forma de governo aceita (por exemplo a democracia liberal), mas várias formas de governo válidas.

O primeiro ponto já é realidade, afirma Gu: "Vivemos num mundo multipolar." A clara divisão bipolar entre os blocos americano e soviético, durante a Guerra Fria, e a curta fase de hegemonia americana depois da queda do Muro de Berlim há muito já deram lugar a um mundo multipolar.

Já o multilateralismo é associado pela cúpula chinesa à ideia da humanidade como uma "comunidade de destino compartilhado". Xi apresentou esse conceito no exterior pela primeira vez no Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou, em março de 2013, mencionando-o novamente em discurso no Fórum Econômico de Davos, em janeiro de 2017.

Na ocasião, o presidente chinês rejeitou o isolacionismo e posicionou a China como apoiadora do multilateralismo. Stanzel, porém, observa que o discurso chinês de uma comunidade mundial com um futuro compartilhado continua sendo um lugar-comum sem significado concreto. "Num mundo globalizado, nosso destino está interligado. Isso não chega a ser um conceito."

A expressão precisaria ser preenchida, por exemplo com a exigência de um fortalecimento do direito internacional ou das instituições internacionais. Mas nisso a China tem pouco interesse, do mesmo modo que os EUA, observa Gu. "Ambos aceitam o direito internacional quando ele serve aos próprios interesses e o rejeitam quando os contraria."

O debate sobre um mundo ideologicamente pluralista, no qual o regime autoritário da China seria uma alternativa em pé de igualdade com a democracia liberal, está há anos em andamento. A China quer melhorar sua imagem no mundo. Os Institutos Confúcio espalham a língua e a cultura chinesas. Investidores chineses compram empresas de mídia na África e moldam a imagem da China por meio das redes sociais ou dos chineses no exterior.

As Nações Unidas também estão no foco da China, observa Stanzel. "A China tem a presidência de quatro instituições internacionais, duas vezes mais que os EUA, e usa não apenas essa posição, mas também sua própria atuação nessas instituições, para consagrar seu linguajar político em documentos da ONU."

Entretanto o balanço dessas tentativas de melhorar a imagem ou de estabelecer uma narrativa chinesa é misto. Na África, elas funcionam: "Quanto mais um país africano estiver economicamente ligado à China, mais bem-sucedida ela", explica Stanzel. Já em países industrializados, como a Alemanha, a imagem tem piorado, em parte também por causa dos acontecimentos em Hong Kong e em Xianjiang.

As detenções e tentativas de conversão de centenas de milhares de muçulmanos uigures na região autônoma de Xianjiang e o amplo cerceamento à liberdade dos moradores de Hong Kong, com a entrada em vigor da nova lei de segurança, elevaram a desconfiança em relação à China na Europa e EUA.

Também a assim chamada Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), inicialmente recebida como maior projeto de infraestrutura do mundo, passou a receber críticas nos EUA e na Europa por supostamente elevar a dependência de países economicamente mais fracos em relação à China.

O politólogo Gu Xuewu não crê que a China almeje o papel de única potência global, atestando, antes, um problema de percepção de americanos e europeus, pois "quem quer liderar deve estar apto a oferecer bens gerais gratuitamente e ter uma certa ambição missionária para tentar impor determinadas ideias globalmente". E Pequim não preencheria esses requisitos: "A China não quer tomar o lugar dos EUA e até mesmo teme assumir tarefas desse tipo."

Mas mesmo se a China não almeja o status de líder global hegemônico, a liderança em Pequim certamente acredita que ao país cabe a supremacia na Ásia. Já em 2014 Xi exigiu, num discurso, "a Ásia para os asiáticos". Uma declaração do então ministro do Exterior Yang Jiechi, em 2010, durante encontro da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean), deixou claro o que isso significa na prática: "A China é um país grande, e outros países são pequenos. Isso é simplesmente um fato."

Em nenhum outro local as pretensões chinesas se tornam mais claras do que no Mar da China Meridional. A China tenta afastar de lá não apenas os EUA, mas também os seus vizinhos asiáticos, e assim colocar sob seu controle importantes rotas marítimas e matérias-primas. Para os países da periferia chinesa, isso significa instabilidade, pressão crescente para tomar partido – ou China ou Estados Unidos – e o risco de um confronto militar.

A questão mais importante é se a ascensão chinesa e o deslocamento da ordem mundial que implica necessariamente levarão a uma guerra. A crescente tensão no Mar da China Meridional pode ser um prenúncio disso, avaliam especialistas. Em 2014, o cientista político americano John J. Mearsheimer escreveu: "O resultado [da ascensão da China] será uma concorrência intensiva em segurança, com enorme potencial de guerra. Em resumo, a ascensão da China provavelmente não será tranquila".

O especialista Ming Xia, da City University de Nova York, é ainda mais enfático: "Não creio numa coexistência da China e do Ocidente, se a China mantiver seu próprio sistema". Para Stanzel, o Partido Comunista não está interessado numa guerra, mas esse perigo existe por causa do "agressivo" comportamento chinês, por exemplo no Mar da China Meridional.

Rodion Ebbighausen (as) | Deutsche Welle

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